domingo, 10 de fevereiro de 2019

[Pensando alto] Vai trabalhar, vagabundo!


A ociosidade é a mãe da filosofia.
Thomas Hobbes

A preguiça é a mãe do progresso. Se o homem não tivesse preguiça de caminhar, não teria inventado a roda.
Mário Quintana

Vai trabalhar, vagabundo!
Chico Buarque

Pedro Frederico Caldas

A coisa que dá mais trabalho é não fazer nada. Há uma conspiração de tudo e de todos contra o não fazer nada. É a conspiração de um mundo e de pessoas que vivem num eterno azáfama.

Poste-se à noite a olhar o firmamento. Veja as estrelas, a lua, tudo parecendo, lá no alto, estático, plácido, um verdadeiro convite à pessoa se quedar silente, deitada no chão para comtemplar o pacato universo.

Qual nada! Estrelas, planetas, luas, cometas, tudo, absolutamente tudo, viajando em grande velocidade, o sol cuspindo fogo, uma dinâmica incrível numa correria louca em direção ao... nada.

Parece que o universo aponta o dedo para você e diz: faça como eu, agite-se, mova-se, mesmo sem nenhum propósito. É a inconformidade geral dos que podem, mas não estão contra os que se postaram em sossego. É como se alguém tivesse abandonado o barco no meio de procela, deixando os companheiros entregues à própria sorte. Querem-no de volta, todos seguindo o mesmo destino.

Assim se passa comigo. De vez em quando alguém insinua que em vez de ficar escrevendo bobagens, lidas por quase ninguém, deveria era procurar o que fazer. Só faltam dizer: Vai trabalhar, vagabundo!

Faço-me de desentendido e busco inspiração na figura do histórico baiano Dorival Caymmi [foto abaixo], o Rei da Preguiça, uma música a cada dez anos. Apego-me também ao poema de Ascenso Ferreira:


Hora de comer, comer.
Hora de dormir, dormir.
Hora de vadiar, vadiar.
Hora de trabalhar? Pernas pro ar que ninguém é de ferro!

Quando alguém tenta passar sermão em minha vadiagem, reprovar a vida que levo, defendo-me proclamando que vivo do ócio autotélico. Lógico que o cabra, não sabendo o que significa - porque para saber há que se ter muito ócio -, se ergue sobre os ombros de sua própria insciência, afeta ares de entendido, coça o queixo e sentencia: bom, se for ócio autotélico, tudo bem...

Para jogar a última pá de terra no ataque do inimigo do não fazer nada, inclino um pouco a cabeça, franzo uma sobrancelha – atentem bem, só uma das sobrancelhas -, e obtempero: octio cum dignitatem. É tiro e queda, o cabra, para não ter que perguntar o que significa, abandona o campo da batalha contra a preguiça, levando de volta o seu aguerrido exército, vencido pela força da inércia. É mais uma batalha ganha, mais uma vitória da preguiça.

Nêga, sempre atenta a tudo e vendo que só faço coçar os países baixos, um dia desses me perguntou como estávamos de finanças. Respondi que tudo ia bem, muito bem.

Normalmente ela costuma encerrar o papo por aí. Mas dessa feita me perguntou se a conta no banco estava em bom nível. Eu disse que não tínhamos mais conta no banco. Indagado por que, respondi que encerrei a dita cuja porque notei que todo mês estavam me cobrando uma taxa de manutenção de dezesseis dólares. Expliquei que o cara do banco me disse que com o valor médio do meu saldo o banco só manteria a conta aberta mediante a cobrança dessa taxa; caso contrário, cliente como eu era prejuízo certo. Por causa disso e para parar a sangria, arrematei com ar de soberba altivez, resolvi sacar todo o nosso cabedal financeiro e dei as costas àquele banco metido a besta.

Nêga continuou me apertando, para, a final, indagar, de supetão, onde estava o dinheiro. Disse-lhe que ficasse tranquila, nossas economias estavam muito bem guardadas numa caixa de sapato, socada no fundo de um armário, ocultada por roupas velhas. Afinal, mandava minha proverbial prudência ter cuidado com aqueles mais de dois mil preciosos dólares.

Com ar de incredulidade, injustificada, perguntou como estava nosso fluxo de caixa. Estufei o peito e disse que ficasse tranquila pois o INSS continuava depositando pontualmente todo mês o valor da aposentadoria. E ainda averbei, para insuflar o despojamento cristão, que o pouco com Deus é muito e o muito sem Deus é pouco. Uma tirada dessa funciona como uma anestésico, mas, justo no caso, Nêga olhou para mim e disse que os amigos e parentes tinham razão: por que eu não procurava trabalhar?

Frisei que tinha minhas razões, se fosse trabalhar poderia à noite dizer a ela que estava cansado e coisa e tal. Olhou de soslaio, deu um sorriso maroto, passou por mim, fingiu me dar um beliscão, e murmurou no meu ouvido: sendo assim, melhor não fazer nada mesmo...

Pensei com meus botões: isso é que é mulher...

Mas a vida de quem não faz nada não é fácil. Não desejo esse mal a ninguém, nem mesmo aos inimigos que não tenho. Há sempre uma pessoa muito dedicada ao trabalho que, se achando insultada pelo meu não fazer nada, começa uma conversa de “cerca Lourenço” e termina por me sugerir o início de um empreendimento para ganhar dinheiro. Como dinheiro não faz mal a ninguém, nem mesmo a mim, sinto uma certa cobiça e vou entrando na conversa mole do estafermo.

Dia desse, um bom amigo, Antônio Machado, pessoa de dinamismo de vento leste, daqueles que procuram empurrar o planeta com os próprios ombros, sempre bolando novas iniciativas empresarias, me pagou a visita costumeira, acompanhado de outro amigo, Roberto Primo, este plácido como lago suíço, baiano com jeito de “mineirin”, caçador emérito de boas oportunidades lucrativas, ambos para me expor uma boa oportunidade de investir dinheiro numa empresa construtora. Ocioso proclama-los verdadeiros Midas: onde tocam, jorra ouro.

Primeiro me perguntaram se tinha feito algum investimento nos últimos tempos. Respondi de bate-pronto que tinha colocada algumas economias em uns três ou quatro livros. Disseram-me que esse negócio não dava camisa a ninguém, só fazia enriquecer os idiotas que escreveram, bom mesmo eram os investimentos capitalistas e que só mesmo o capitalismo, de tão eficiente, conseguia sobreviver à praga dos intelectuais.

Conversa vai, conversa vem, já entornadas duas garrafas de vinho, feitos todos os cálculos através de projeções de fluxo de caixa, tabela price, simulações vetoriais, cálculos logarítmicos e bolada a equação final E = mc2,  chegaram à conclusão que era uma grande oportunidade de ganhar dinheiro, coisas que eles sabem fazer como poucos que conheço. Arremataram que deveríamos agir com rapidez, pois André Nelinho, comandando um grupo de investidores tipo André Azin, Romildo Pessoa, Josuelito Brito, J. Matheus, Eduardo e um tal de Chafa, já tinha partido na frente, e, alertaram, se Nilão e Antônio Fineza entrarem no grupo, não sobrará cotas para mais ninguém.

Atônito, sem entender muito bem os cálculos e as projeções financeiras, principalmente a equação que formularam, mas inflado pelas perspectivas por eles projetadas, bati o martelo e disse que estava dentro. Eles, cada um com um cheque de cem mil dólares em mãos, mandaram eu fazer o meu. Disse a eles que meu negócio era na puba, na bucha, cash, sempre em dinheiro vivo, não tinha esse negócio de cheque não, que quem tem dinheiro, tem, quem não tem usa cheque! Isso dito, mandaram que eu fosse pegar o dinheiro no cofre. Não me fiz de rogado, fui ao armário, peguei a caixa de sapato e contei na frente deles as minhas economias. Com ar incrédulo, sorveram os últimos goles de vinho, entreolharam-se com certa estupefação, um murmurou para o outro, entredentes, de forma quase inaudível, “o mínimo é cem”, e mandaram que eu esquecesse assunto.

Lá foram os dois amigos, elevador abaixo, para continuarem a escrever a saga de um eterno ganhar dinheiro. Não viram nem ouviram, mas abanei a mão e lhes desejei os bons fados e que continuassem a empilhar dinheiro, pois que uma das boas coisas desta vida é ter amigos ricos.

Outro que sempre tenta me desentortar é um compadre meu, outro Midas, conhecido, dentre os que empurram a roda da fortuna, como Wandinho, verdadeiro mogul da área dos transportes e de muitos outros negócios.

Ele sempre me pergunta quando vou iniciar um negócio lucrativo.

 Certa feita disse a ele que já estava tomando as necessárias providências, mas, como um homem prevenido, estava começando pelo começo. Ante o seu ar interrogativo, respondi que li as biografias de alguns homens ricos, como Rockfeller, Bezzos, Bill Gates e, por cautela, ainda coletei todas as informações sobre os filhos do Lula. Minha meta, falei com firmeza, era ficar rico ao ponto de poder ter uma coleção de relógios como a de Jaques Wagner.

Naquela ocasião, minhas economias eram consideráveis, equivaliam a umas três caixas de sapato. Disse-lhe com indisfarçável vaidade que dava para iniciar algo de algum porte. Perguntado se já tinha elaborado um plano, respondi que pretendia iniciar uma rede de barbearias na Arábia Saudita, pois notei que havia muita gente barbada por lá.

O compadre colocou a mão em meu ombro e disse que eu saísse dessa, era uma fria. Acrescentou que sauditas são proibidos de fazer barba. Como vocês podem ver, o homem tem faro para negócios.
Na sequência da conversa jogada fora, ele perguntou por que eu tinha tantas visitas. Disse a ele que desconfiava que era para ficarem na varanda olhando a soberba paisagem, sentados em minha “cadeira gravidade zero”, criada por um nerd da NASA.

Olhou para mim e disse que estava ali a oportunidade de um bom negócio. Eu continuaria em casa sem fazer nada e alugava a cadeira. Fiquei entusiasmado com a ideia. Era uma sacada maravilhosa ganhar dinheiro sem sair de casa, sem fazer nada, e ainda ficar de papo com os queridos amigos, a coisa de que mais gosto.

Feitos todos os cálculos, concluímos que uma sentada de uma hora pela quantia de dez dólares daria, tento em visto o fluxo de visitantes, uma boa renda mensal. Prometi que iniciaria no dia seguinte o promissor negócio.

Passada uma primavera e um verão, lá pelos meados do outono, chega de novo o querido compadre. Trocados abraços e apertos de mão fraternos, me entrega dez dólares e senta na cadeira gravidade zero, a cobiça e realização de todos os amigos visitantes.

Batido um bom papo, vem a pergunta de como estava o negócio do aluguel da cadeira. Disse-lhe que ia de vento em popa.

Bem, disse ele, então suas economias já engordaram e você já deve estar com umas cinco caixas de sapato cheias de dinheiro.

Ante minha resposta de que, em vez de três, agora só havia duas caixas com minhas prudenciais reservas, pegou uma calculadora e começou a inventariar tudo. Chegou à conclusão de que o lucro encheria umas três caixas a mais e que meu cabedal deveria estar aumentando e não diminuindo tão rapidamente!

Aí ele me perguntou o que o pessoal ficava fazendo ali sentado, além de apreciar a vista. Respondi que sempre fumavam um charuto, como de costume, oferta da casa. Indagado quanto custava cada charuto, respondi que entre quinze a vinte dólares.

Em seguida, com o ar de estupefação dos outros dois amigos acima citados, se levantou, pôs a mão em meu ombro, olhou para mim compassivamente e sacou uma frase profunda: “onde as necessidades do mundo e o seu talento se cruzam, aí estará a sua vocação, compadre”.

Repliquei, todo alvissareiro, que a frase era de Aristóteles. Aí ele arrematou: “não importa, continue a não fazer nada, que isso é o que você faz de melhor, compadre”.

Fiquei aliviado. Até que enfim alguém me compreendia e me incentivava a não fazer nada.

Daqui, olhando a paisagem, sentado em minha cadeira gravidade zero, pitando meu charuto semanal e continuando a não fazer nada, desejo um domingo descansado para todos.
Título e Texto: Pedro Frederico Caldas

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