A ociosidade é a mãe da filosofia.
Thomas Hobbes
A preguiça é a mãe do progresso. Se o homem não tivesse preguiça
de caminhar, não teria inventado a roda.
Mário Quintana
Vai trabalhar, vagabundo!
Chico Buarque
Pedro Frederico Caldas
A coisa que dá mais trabalho é
não fazer nada. Há uma conspiração de tudo e de todos contra o não fazer nada.
É a conspiração de um mundo e de pessoas que vivem num eterno azáfama.
Poste-se à noite a olhar o
firmamento. Veja as estrelas, a lua, tudo parecendo, lá no alto, estático,
plácido, um verdadeiro convite à pessoa se quedar silente, deitada no chão para
comtemplar o pacato universo.
Qual nada! Estrelas, planetas,
luas, cometas, tudo, absolutamente tudo, viajando em grande velocidade, o sol
cuspindo fogo, uma dinâmica incrível numa correria louca em direção ao... nada.
Parece que o universo aponta o
dedo para você e diz: faça como eu, agite-se, mova-se, mesmo sem nenhum
propósito. É a inconformidade geral dos que podem, mas não estão contra os que
se postaram em sossego. É como se alguém tivesse abandonado o barco no meio de
procela, deixando os companheiros entregues à própria sorte. Querem-no de
volta, todos seguindo o mesmo destino.
Assim se passa comigo. De vez
em quando alguém insinua que em vez de ficar escrevendo bobagens, lidas por
quase ninguém, deveria era procurar o que fazer. Só faltam dizer: Vai
trabalhar, vagabundo!
Faço-me de desentendido e
busco inspiração na figura do histórico baiano Dorival Caymmi [foto abaixo], o Rei da
Preguiça, uma música a cada dez anos. Apego-me também ao poema de Ascenso
Ferreira:
Hora de comer, comer.
Hora de dormir, dormir.
Hora de vadiar, vadiar.
Hora de trabalhar? Pernas pro
ar que ninguém é de ferro!
Quando alguém tenta passar
sermão em minha vadiagem, reprovar a vida que levo, defendo-me proclamando que
vivo do ócio autotélico. Lógico que o cabra, não sabendo o que significa -
porque para saber há que se ter muito ócio -, se ergue sobre os ombros de sua
própria insciência, afeta ares de entendido, coça o queixo e sentencia: bom, se
for ócio autotélico, tudo bem...
Para jogar a última pá de
terra no ataque do inimigo do não fazer nada, inclino um pouco a cabeça, franzo
uma sobrancelha – atentem bem, só uma das sobrancelhas -, e obtempero: octio
cum dignitatem. É tiro e queda, o cabra, para não ter que perguntar o que significa,
abandona o campo da batalha contra a preguiça, levando de volta o seu aguerrido
exército, vencido pela força da inércia. É mais uma batalha ganha, mais uma
vitória da preguiça.
Nêga, sempre atenta a tudo e
vendo que só faço coçar os países baixos, um dia desses me perguntou como
estávamos de finanças. Respondi que tudo ia bem, muito bem.
Normalmente ela costuma
encerrar o papo por aí. Mas dessa feita me perguntou se a conta no banco estava
em bom nível. Eu disse que não tínhamos mais conta no banco. Indagado por que,
respondi que encerrei a dita cuja porque notei que todo mês estavam me cobrando
uma taxa de manutenção de dezesseis dólares. Expliquei que o cara do banco me
disse que com o valor médio do meu saldo o banco só manteria a conta aberta
mediante a cobrança dessa taxa; caso contrário, cliente como eu era prejuízo
certo. Por causa disso e para parar a sangria, arrematei com ar de soberba
altivez, resolvi sacar todo o nosso cabedal financeiro e dei as costas àquele
banco metido a besta.
Nêga continuou me apertando,
para, a final, indagar, de supetão, onde estava o dinheiro. Disse-lhe que
ficasse tranquila, nossas economias estavam muito bem guardadas numa caixa de
sapato, socada no fundo de um armário, ocultada por roupas velhas. Afinal,
mandava minha proverbial prudência ter cuidado com aqueles mais de dois mil
preciosos dólares.
Com ar de incredulidade,
injustificada, perguntou como estava nosso fluxo de caixa. Estufei o peito e
disse que ficasse tranquila pois o INSS continuava depositando pontualmente
todo mês o valor da aposentadoria. E ainda averbei, para insuflar o despojamento
cristão, que o pouco com Deus é muito e o muito sem Deus é pouco. Uma tirada
dessa funciona como uma anestésico, mas, justo no caso, Nêga olhou para mim e
disse que os amigos e parentes tinham razão: por que eu não procurava
trabalhar?
Frisei que tinha minhas razões, se fosse
trabalhar poderia à noite dizer a ela que estava cansado e coisa e tal. Olhou
de soslaio, deu um sorriso maroto, passou por mim, fingiu me dar um beliscão, e
murmurou no meu ouvido: sendo assim, melhor não fazer nada mesmo...
Pensei com meus botões: isso é
que é mulher...
Mas a vida de quem não faz
nada não é fácil. Não desejo esse mal a ninguém, nem mesmo aos inimigos que não
tenho. Há sempre uma pessoa muito dedicada ao trabalho que, se achando
insultada pelo meu não fazer nada, começa uma conversa de “cerca Lourenço” e
termina por me sugerir o início de um empreendimento para ganhar dinheiro. Como
dinheiro não faz mal a ninguém, nem mesmo a mim, sinto uma certa cobiça e vou
entrando na conversa mole do estafermo.
Dia desse, um bom amigo,
Antônio Machado, pessoa de dinamismo de vento leste, daqueles que procuram
empurrar o planeta com os próprios ombros, sempre bolando novas iniciativas
empresarias, me pagou a visita costumeira, acompanhado de outro amigo, Roberto
Primo, este plácido como lago suíço, baiano com jeito de “mineirin”, caçador
emérito de boas oportunidades lucrativas, ambos para me expor uma boa
oportunidade de investir dinheiro numa empresa construtora. Ocioso proclama-los
verdadeiros Midas: onde tocam, jorra ouro.
Primeiro me perguntaram se
tinha feito algum investimento nos últimos tempos. Respondi de bate-pronto que
tinha colocada algumas economias em uns três ou quatro livros. Disseram-me que
esse negócio não dava camisa a ninguém, só fazia enriquecer os idiotas que
escreveram, bom mesmo eram os investimentos capitalistas e que só mesmo o
capitalismo, de tão eficiente, conseguia sobreviver à praga dos intelectuais.
Conversa vai, conversa vem, já
entornadas duas garrafas de vinho, feitos todos os cálculos através de
projeções de fluxo de caixa, tabela price, simulações vetoriais, cálculos
logarítmicos e bolada a equação final E = mc2,
chegaram à conclusão que era uma grande oportunidade de ganhar dinheiro,
coisas que eles sabem fazer como poucos que conheço. Arremataram que deveríamos
agir com rapidez, pois André Nelinho, comandando um grupo de investidores tipo
André Azin, Romildo Pessoa, Josuelito Brito, J. Matheus, Eduardo e um tal de
Chafa, já tinha partido na frente, e, alertaram, se Nilão e Antônio Fineza entrarem
no grupo, não sobrará cotas para mais ninguém.
Atônito, sem entender muito
bem os cálculos e as projeções financeiras, principalmente a equação que
formularam, mas inflado pelas perspectivas por eles projetadas, bati o martelo
e disse que estava dentro. Eles, cada um com um cheque de cem mil dólares em
mãos, mandaram eu fazer o meu. Disse a eles que meu negócio era na puba, na
bucha, cash, sempre em dinheiro vivo, não tinha esse negócio de cheque não, que
quem tem dinheiro, tem, quem não tem usa cheque! Isso dito, mandaram que eu
fosse pegar o dinheiro no cofre. Não me fiz de rogado, fui ao armário, peguei a
caixa de sapato e contei na frente deles as minhas economias. Com ar incrédulo,
sorveram os últimos goles de vinho, entreolharam-se com certa estupefação, um
murmurou para o outro, entredentes, de forma quase inaudível, “o mínimo é cem”,
e mandaram que eu esquecesse assunto.
Lá foram os dois amigos,
elevador abaixo, para continuarem a escrever a saga de um eterno ganhar
dinheiro. Não viram nem ouviram, mas abanei a mão e lhes desejei os bons fados
e que continuassem a empilhar dinheiro, pois que uma das boas coisas desta vida
é ter amigos ricos.
Outro que sempre tenta me
desentortar é um compadre meu, outro Midas, conhecido, dentre os que empurram a
roda da fortuna, como Wandinho, verdadeiro mogul da área dos transportes e de
muitos outros negócios.
Ele sempre me pergunta quando
vou iniciar um negócio lucrativo.
Certa feita disse a ele que já estava tomando
as necessárias providências, mas, como um homem prevenido, estava começando
pelo começo. Ante o seu ar interrogativo, respondi que li as biografias de
alguns homens ricos, como Rockfeller, Bezzos, Bill Gates e, por cautela, ainda
coletei todas as informações sobre os filhos do Lula. Minha meta, falei com
firmeza, era ficar rico ao ponto de poder ter uma coleção de relógios como a de
Jaques Wagner.
Naquela ocasião, minhas
economias eram consideráveis, equivaliam a umas três caixas de sapato.
Disse-lhe com indisfarçável vaidade que dava para iniciar algo de algum porte.
Perguntado se já tinha elaborado um plano, respondi que pretendia iniciar uma
rede de barbearias na Arábia Saudita, pois notei que havia muita gente barbada
por lá.
O compadre colocou a mão em
meu ombro e disse que eu saísse dessa, era uma fria. Acrescentou que sauditas
são proibidos de fazer barba. Como vocês podem ver, o homem tem faro para
negócios.
Na sequência da conversa
jogada fora, ele perguntou por que eu tinha tantas visitas. Disse a ele que
desconfiava que era para ficarem na varanda olhando a soberba paisagem,
sentados em minha “cadeira gravidade zero”, criada por um nerd da NASA.
Olhou para mim e disse que
estava ali a oportunidade de um bom negócio. Eu continuaria em casa sem fazer
nada e alugava a cadeira. Fiquei entusiasmado com a ideia. Era uma sacada
maravilhosa ganhar dinheiro sem sair de casa, sem fazer nada, e ainda ficar de
papo com os queridos amigos, a coisa de que mais gosto.
Feitos todos os cálculos,
concluímos que uma sentada de uma hora pela quantia de dez dólares daria, tento
em visto o fluxo de visitantes, uma boa renda mensal. Prometi que iniciaria no
dia seguinte o promissor negócio.
Passada uma primavera e um
verão, lá pelos meados do outono, chega de novo o querido compadre. Trocados
abraços e apertos de mão fraternos, me entrega dez dólares e senta na cadeira
gravidade zero, a cobiça e realização de todos os amigos visitantes.
Batido um bom papo, vem a
pergunta de como estava o negócio do aluguel da cadeira. Disse-lhe que ia de
vento em popa.
Bem, disse ele, então suas
economias já engordaram e você já deve estar com umas cinco caixas de sapato
cheias de dinheiro.
Ante minha resposta de que, em
vez de três, agora só havia duas caixas com minhas prudenciais reservas, pegou
uma calculadora e começou a inventariar tudo. Chegou à conclusão de que o lucro
encheria umas três caixas a mais e que meu cabedal deveria estar aumentando e
não diminuindo tão rapidamente!
Aí ele me perguntou o que o
pessoal ficava fazendo ali sentado, além de apreciar a vista. Respondi que
sempre fumavam um charuto, como de costume, oferta da casa. Indagado quanto
custava cada charuto, respondi que entre quinze a vinte dólares.
Em seguida, com o ar de
estupefação dos outros dois amigos acima citados, se levantou, pôs a mão em meu
ombro, olhou para mim compassivamente e sacou uma frase profunda: “onde as
necessidades do mundo e o seu talento se cruzam, aí estará a sua vocação,
compadre”.
Repliquei, todo alvissareiro,
que a frase era de Aristóteles. Aí ele arrematou: “não importa, continue a não
fazer nada, que isso é o que você faz de melhor, compadre”.
Fiquei aliviado. Até que enfim
alguém me compreendia e me incentivava a não fazer nada.
Daqui, olhando a paisagem,
sentado em minha cadeira gravidade zero, pitando meu charuto semanal e
continuando a não fazer nada, desejo um domingo descansado para todos.
Título e Texto: Pedro Frederico Caldas
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