sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

[Aparecido rasga o verbo] Esquisito

Aparecido Raimundo de Souza

“O estranho deixa de ser estranho, quando não vemos a coisa pelo lado erradamente estranho e incomum aos olhos”.
“Pity” pensadora maluca – Estação do Metrô Siqueira Campos, Rio de Janeiro. 

TENHO VISTO COISAS ESTRANHAS, do arco da velha por este mundão de meu Deus. Algumas pitorescas que fogem ao comum e, por esta razão, acho interessante. Por norma, costumo anotar num pedacinho de guardanapo para não esquecer e rever depois, usando ou não como ilustração para um de meus próximos textos. Outras vezes, atiro o que anotei no primeiro cesto de lixo e fim de papo. Dia destes, parei para almoçar em São Roque, interior de São Paulo, num restaurante beira de estrada às margens da Rodovia Raposo Tavares. A placa de papelão mal escrita, anunciava: “CUMIDA CAZEIRA A PRESOS MODICOS”. Grafado desta forma, sem a correção das aberrações linguísticas.

Antes de sentar numa das mesinhas justapostas no salão enorme e pedir a refeição, resolvi tirar a água dos joelhos e lavar as mãos. Pois bem. O que me chamou a atenção, logo que entrei no pequeno reservado, no fundo do corredor que terminava numa escada em caracol. O local destinado aos mictórios. Ali não havia conspicuidade e alinho. O WC era unissex, e servia, igualmente, para os clientes e funcionários.  Deduzi que final do expediente, os funcionários tomavam banho e se aprontavam ali, aos trancos e barrancos. Poucos lavabos de restaurantes oferecem chuveiros. Os locais destinados a estes particulares geralmente são exclusivos para empregados e o público não tem acesso. Como opção, todavia, este, por algum motivo, fugia completamente à regra. Não havia sequer mijatório. Uma única bacia imunda e fedida sem a cordinha da descarga servia à galera, sem distinção. No fundo dela, uma bosta de olhos rubros me encarou numa visão meio que animalesca.

Esqueçamos a bosta. Vou me concentrar descrevendo não a latrina emporcalhada e ascorosa (não confundir com asquerosa, até porque é a mesma coisa), mas o chuveiro. Sensacional. Nunca havia visto algo tão casculoso. O troço se constituía num cano fino e comprido, no fim do qual, uma regadera de plástico completava vedando-lhe a boca. Até aí tudo bem, não fosse pelo fato da ducha estar virada totalmente para o teto. Imaginei de pronto, uma pessoa tomando banho, com aquela geringonça incomum, posicionada em linha antagônica. Teria que ser malabarista. E dos bons. Certamente, ao abrir a torneira, fazê-lo somente quando estivesse totalmente em pelo, e ensaboado, dos pés à raiz dos cabelos, levando em conta que a água esborraria para o estuque.

Intencionasse, pois, se livrar do sabão, ou do calor, necessitaria subir no vaso sanitário. Trepar com cuidado, como se pisasse em ovos, para não escorregar e se estatelar no chão. Antes, grudar, na alça do vitrô que ficava ao lado. Todavia, se assim agisse, se se agarrasse no minúsculo basculante (com um dos vidros quebrados, e no furo do vitral, uma calcinha suja enfiada), o jorro da água estaria encharcando literalmente o infinito. Ora, bolas! Para ficar na postura da ducha, seria igualmente impossível e improvável, além de penoso e martirizante, a não ser que a criatura tivesse parentesco, ainda que distante, com a mulher gato ou com o homem-aranha, se fixando, como eles, na parte de cima da edificação, de cabeça para baixo.

Fui um pouco mais longe na minha louca viagem: imaginei uma das atendentes (duas gatinhas lindas, diga-se de passagem), no final do expediente, entrando, apressada, para o asseio das partes, apreensiva, com o horário do ônibus para chegar em casa mais cedo. Encarar o marido, tirar umazinha rápida, de galo no cio, antes da novela das nove e depois, aos peidos, cair, de vez, nos braços de Morfeu. Que ofício ou que encargo difícil! Careceria, num primeiro momento, se utilizar do vaso como cadeira, correndo o risco da boca porcelanada se quebrar e, num piscar de olhos, a pessoa se ver, incontinente, num conjunto de situações constrangedoras. Por segundo, esticar uma das mãos (tendo a outra apoiada na parede) malabarizando, certeira, voltando o chuveiro com os furinhos à posição normal.

Efetivamente, um chute nos colhões (se homem) ou nas “piriquitas”, se mulher. A cobertura alta demais. Sem contar com tudo no antagônico dos avessos. Até com o uso de uma escada destas pequenas, não daria pé. Resumindo, não havia forma de segurar na pinguelinha da miúda veneziana. Para completar, o fato de que o corpo, com o peso, escorregaria fazendo forte pressão para baixo. A carcaça não se sustentaria (por mais que encorajado, esse alguém possuísse compleição forte e robusta), e, por último, levando em conta que o usuário fosse não encorpado, porém, magro e seco como bacalhau de porta de venda, seria deveras trabalhoso um asseio normal sem complicações por menor que elas se apresentassem.

Em paralelo, outro problema saltava corroído e suado.  Os fios que ligavam a eletricidade. Os dois polos vagavam desencapados e expostos. Por azar, qualquer um que passasse por todas as etapas conseguisse se equilibrar feito malabarista em corda bamba, poderia, no minuto seguinte, levar um choque tremendo e cair de supino, na bacia da privada, de cara na merda, ou no pior dos mundos, morrer eletrocutado e fedido. Sem mencionar o fato de que o mísero ambiente ficaria completamente inundado. Ainda por esta ótica, dos males o menos “mau”. A porta não possuía chave, nem qualquer tipo de tranca ou tramela.

Chegasse um gaiato inesperado, desavisado, na hora em que o infeliz (ou uma das moças estivesse se aprontando para se dependurar), sem mais nem menos, metesse a mão e empurrasse a porta -, o que acha que aconteceria? Se fosse uma dama, flagrada de cabeça para baixo, nua da sola ao altaneiro, como explicaria um vexame de tamanhas proporções?  Ao contrário, mesmo modo, um macho, a coisa igualmente se consubstanciaria penosa e ridícula. Em síntese: até o sujeito que abrira a porta entender a história de estar o sujeito com as partes expostas, de cabeça para baixo, seria vítima de uma aguerrida confusão.

Achei por bem parar com esta mania de divagar e voltar à realidade. Melhor coisa, sem dúvida, consagrar o estômago mastigando alguma coisa que me fizesse esquecer a fome que começava a dar sinais de impaciência. Acabei meu xixi, lavei as mãos e regressei ao salão, onde prontamente me vi atendido por uma das graciosas barwoman que se acercou de mim, rebolativa, com um sorriso de canto a canto da boca, num rosto tímido que me comoveu pela simplicidade. Devido ao abraso reinante, sua pele brilhava e a alma, aprisionada pela tensão da correria, parecia eletrificada por um amontoado de cordéis invisíveis. Se alguém a tocasse provocaria faíscas e as luzes do seu eu interior certamente se acenderiam como lâmpadas de um letreiro com lampejos ínsguios de neons multicoloridos.     

Juro por tudo quanto é sagrado. Gostaria de ser o imprudente travesso, o babaca do momento e flagrar aquela linda mocinha, ali na minha frente, à espera do meu pedido (pelada -, peladinha, sem nada -, como saiu do ventre da mãe, às voltas com o impossível, tomando seu banho) se deformando, se contraindo, como uma macaquinha peralta fazendo um milhão de traquinagens naquele quartinho invulgar debaixo daquele pedaço de cano com o crivo do coador de água direcionado estapafurdicamente na proa do telhado.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro.   22-2-2019

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Do fruto, o amargo

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