domingo, 17 de fevereiro de 2019

[Daqui e Dali] Entregou-se à bebida, por vergonha

Humberto Pinho da Silva

Conheci-o, já lá vão muitos anos. Era ainda muito jovem, e raras vezes se encontrava sóbrio. Mal rompia o sol, bebia o bagacito, e chegava à noite, cambaleando, como boneco teimoso.


Trabalhava no escritório de fábrica. Emprego que mantinha, por caridade dos patrões, condoídos da sua triste situação.

Andava sempre a sorrir, mostrando os dentes amarelecidos pelo tabaco. Sorria, quiçá, para abafar a dor que trazia sempre no coração; mas, por dentro, chorava lágrimas de ingratidão e tristeza.

Certa ocasião, pelo Natal, encontrei-o – caso raro, – totalmente sóbrio. Apertou-me a mão generosamente, e a meio da conversa, revelou-me sua mágoa e a razão de se entregar à bebida:

Casara ainda adolescente com moça pobre, balconista de profissão, que vivia numa “ilha” da periferia.

Os pais, e os amigos, contrariaram-lhe o enlace… Mas a rapariga, tinha rostinho bonito, e charme que deveras cativava. Estava apaixonado!…

”Um homem, quando ama verdadeiramente, fica criança: só pensa no ser amado!” - Disse-me com sorriso forçado dançando nos lábios descorados.

Decorridos meses (cansada, talvez, de ser dona de casa,) confidenciou-lhe, que seria bom, para ambos, que ela continuasse os estudos.

Concordou. Matriculou-a num Centro de Explicações, com professores particulares. Conseguiu, em três anos, completar o Curso Geral dos Liceus. Para isso, teve que abandonar o emprego.

No ano seguinte concluiu a alínea de Letras e entrou em Direito, com boa classificação.

Era um casal feliz. Para arcar com as despesas, trabalhava como mísero galego. Mas, sentia-se contente e orgulhoso, com o progresso da esposa, e esperança de vida mais confortável.

Mas… já no final do curso, a mulher encantou-se: pela simpatia, gentileza e gestos polidos, de colega; e tão entusiasmada ficou, que assentou fugir de casa na companhia do estudante. O pobre homem, desgostoso, e envergonhado, refugiou-se no álcool.

Com os olhos rasos de lágrimas, voz apertada e compungida, disse-me:
”Fui buscá-la a uma ‘ilha’, eduquei-a, dei-lhe professores particulares, e quando se apanhou, quase com o ‘canudo’, abandonou-me, com colega. O que me dói é a ingratidão! De me ter feito bobo… Passei a vida a trabalhar… Dei-lhe tudo… Até amor!…Entreguei-me à bebida… porque tenho vergonha, como homem, de ter sido abandonado!”- Concluiu, retorcendo os lábios ressequidos.

Compreendi a tragédia. Compreendi, porque nada fere mais do que a ingratidão e o desprezo, mormente, quando provêm daquela ou daquele, que amamos apaixonadamente.
Título e Texto: Humberto Pinho da Silva


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Isaura Correia Santos

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