Humberto Pinho
da Silva
Conheci-o, já lá vão muitos anos. Era ainda muito
jovem, e raras vezes se encontrava sóbrio. Mal rompia o sol, bebia o bagacito, e chegava à
noite, cambaleando, como boneco teimoso.
Trabalhava no escritório de fábrica. Emprego que mantinha, por caridade dos patrões, condoídos da sua triste situação.
Andava sempre a sorrir, mostrando os dentes
amarelecidos pelo tabaco. Sorria, quiçá, para abafar a dor que trazia sempre no
coração; mas, por dentro, chorava lágrimas de ingratidão e tristeza.
Certa ocasião, pelo Natal, encontrei-o – caso
raro, – totalmente sóbrio. Apertou-me a mão generosamente, e a meio da
conversa, revelou-me sua mágoa e a razão de se entregar à bebida:
Casara ainda adolescente com moça pobre,
balconista de profissão, que vivia numa “ilha” da periferia.
Os pais, e os amigos, contrariaram-lhe o enlace… Mas
a rapariga, tinha rostinho bonito, e charme que deveras cativava. Estava
apaixonado!…
”Um homem, quando ama verdadeiramente, fica
criança: só pensa no ser amado!” - Disse-me com sorriso forçado dançando nos
lábios descorados.
Decorridos meses (cansada, talvez, de ser dona de
casa,) confidenciou-lhe, que seria bom, para ambos, que ela continuasse os
estudos.
Concordou. Matriculou-a num Centro de Explicações,
com professores particulares. Conseguiu, em três anos, completar o Curso Geral
dos Liceus. Para isso, teve que abandonar o emprego.
No ano seguinte concluiu a alínea de Letras e
entrou em Direito, com boa classificação.
Era um casal feliz. Para arcar com as despesas,
trabalhava como mísero galego. Mas, sentia-se contente e orgulhoso, com o
progresso da esposa, e esperança de vida mais confortável.
Mas… já no final do curso, a mulher encantou-se: pela
simpatia, gentileza e gestos polidos, de colega; e tão entusiasmada ficou, que
assentou fugir de casa na companhia do estudante. O pobre homem, desgostoso, e envergonhado,
refugiou-se no álcool.
Com os olhos rasos de lágrimas, voz apertada e
compungida, disse-me:
”Fui buscá-la a uma ‘ilha’, eduquei-a, dei-lhe
professores particulares, e quando se apanhou, quase com o ‘canudo’,
abandonou-me, com colega. O que me dói é a ingratidão! De me ter feito bobo… Passei
a vida a trabalhar… Dei-lhe tudo… Até amor!…Entreguei-me à bebida… porque tenho
vergonha, como homem, de ter sido abandonado!”- Concluiu, retorcendo os lábios
ressequidos.
Compreendi a tragédia. Compreendi, porque nada
fere mais do que a ingratidão e o desprezo, mormente, quando provêm daquela ou
daquele, que amamos apaixonadamente.
Título e
Texto: Humberto Pinho da Silva
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