sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Quem vai vender o sonho do “país sem austeridade”?

Sebastião Bugalho

Ao utilizar uma mentira para legitimar a sua existência – «o fim da austeridade» –, a geringonça subtraiu a verdade do espaço público, aumentando o risco de mais facilmente o país acolher o populismo.

1. outubro de 2018 foi o pior mês para a bolsa norte-americana desde a grande crise de 2009. Sem querer apostar em profecias pessimistas, é inquestionável que o período de crescimento global a que a Europa vem assistindo nos últimos quatro anos está a terminar. Para roubar a alegoria ao primeiro-ministro: as vacas gordas vão descer à terra. O problema está em perguntarmo-nos quem terá o capital político para dizê-lo e, sobretudo, para governar dizendo-o. Num novo período de contenção orçamental, os eleitores lembrar-se-ão, com certeza, daquilo que a ‘gerigonça’ lhes prometeu em 2015: «um país sem austeridade».

Quando o contexto econômico deixar de ser tão sorridente, a esquerda, agora no poder, já não poderá vender esse sonho. Mas isso não significa que os eleitores não o quererão comprar. O que me preocupa é quem venderá esse «país sem austeridade» quando a devolução de rendimentos sair das prioridades do governo. Na oposição, PSD e CDS estão limitados pela sua matriz não populista e pela sua governação mais recente, que os impossibilita de crescer à conta do tal «país sem austeridade».

À esquerda, o Bloco de Esquerda e o PCP estão condicionados pelos seus últimos quatro anos de tolerância a cativações e metas de Bruxelas. No executivo, o Partido Socialista poderá insistir que aplicará esse tipo de medidas como algo «temporário» e com «menos dor» ou vontade do que a direita faria, mas isso também não chegará. As pessoas quererão aquilo que a ‘gerigonça’ lhes vendeu como possível em 2015 – o país sem austeridade – e as pessoas votarão em quem que lhes prometer isso.

Mais do que qualquer árvore genealógica, esse é o maior risco que a atual solução de governo deixa como legado. Ao utilizar uma mentira para legitimar a sua existência – «o fim da austeridade» –, a ‘geringonça’ subtraiu a verdade do nosso espaço público. E não me venham dizer que é exagero. Em três anos de governação, Costa teve mais greves, mais cativações e mais impostos do que Passos em quatro anos de assumido rigor financeiro. A precariedade laboral não mexeu um milímetro.

A austeridade nunca acabou e o PS sabe-o muito bem. No entanto, fabricou e difundiu esse engodo por mera necessidade política. Foi isso que aconteceu em 2015, senhoras e senhores: o poder sacrificou a realidade. Desde aí, desde que António Costa subtraiu a verdade do espaço público, que Portugal corre o risco de mais facilmente acolher fenômenos populistas – à esquerda e à direita – porque é isso que sucede quando se promove uma farsa: qualquer ator fica com a cortina aberta para o teatro.

Se é previsível que o próximo ciclo econômico seja propício a esse tipo de dramaturgia, a responsabilidade será da esquerda, que inaugurou a encenação.

2. A questão está em como responder à universalização do disparate. Que comportamento devem ter aqueles que sobram – e aqueles que chegam – face à falência política da ‘geringonça’ e diante da janela eleitoral que tal representa? Falam-se em refundações, federações, pré-coligações, pós-acordos e futuras maiorias. Fala-se, portanto, em muita coisa. Mas faz-se pouco.

Não vejo, até agora, nenhum partido com uma estratégia séria para lidar com o impacto de André Ventura no próximo ciclo eleitoral. Não vejo, à exceção do CDS-PP, uma força política preocupada em defender os três pilares que uma maioria do Partido Socialista inevitavelmente ameaçará: o escrutínio parlamentar, a liberdade de imprensa e a independência da justiça. E não vejo, para ser sincero, grande problema num eventual desaparecimento do PSD como o conhecíamos. O problema está em quem ocupará o seu lugar.

3. Quando li «A Guerra do Peloponeso», dobrei uma das páginas que relata a revolução na Córcira. Nela, Tucídides conta como «aquilo que antes era considerado um impensável ato de agressão passou a ser encarado como a coragem de um militante», como «pensar no futuro passou a ser somente uma forma de cobardia», como «qualquer ideia de moderação não era mais do que uma falta de vigor» e como «entender um problema de diferentes pontos de vista significava ser totalmente inapto para a ação». Escreveu o ateniense que «o entusiasmo fanático era a marca de um verdadeiro homem», que «qualquer um que manifestasse opiniões violentas era de confiança» e que «quem fosse contra essas opiniões tornar-se-ia prontamente suspeito».

«Os líderes partidários de cada cidade apresentavam programas admiráveis – de um lado, pela igualdade para as massas; do outro, por uma governação segura para a aristocracia – mas, enquanto afirmavam defender o interesse público, apenas procuravam prémios para si próprios», diagnosticou Tucídides, apuradamente, há mais de 2450 anos.

Escusado será dizer que a guerra civil na Córcira terminou num banho de sangue entre fações igualmente extremadas, depois igualmente mortas. Sem desejar estabelecer um anacronismo entre o mundo helénico e o regime português, creio que o caminho mais digno para derrotar aqueles que não se importaram de prometer o irrealizável – «um país sem austeridade» – passa por resistir à tentação de cometer erros semelhantes. Há, evidentemente, uma janela eleitoral para candidatos a farsantes. Mas quereremos mesmo abri-la?
Título e Texto: Sebastião Bugalho, Observador, 22-2-2019

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