Sebastião Bugalho
Ao utilizar uma mentira para legitimar a
sua existência – «o fim da austeridade» –, a geringonça subtraiu a verdade do
espaço público, aumentando o risco de mais facilmente o país acolher o
populismo.
1. outubro de 2018 foi o pior mês para a bolsa norte-americana
desde a grande crise de 2009. Sem querer apostar em profecias pessimistas, é
inquestionável que o período de crescimento global a que a Europa vem
assistindo nos últimos quatro anos está a terminar. Para roubar a alegoria ao
primeiro-ministro: as vacas gordas vão descer à terra. O problema está em
perguntarmo-nos quem terá o capital político para dizê-lo e, sobretudo, para
governar dizendo-o. Num novo período de contenção orçamental, os
eleitores lembrar-se-ão, com certeza, daquilo que a ‘gerigonça’ lhes prometeu
em 2015: «um país sem austeridade».
Quando o contexto econômico
deixar de ser tão sorridente, a esquerda, agora no poder, já não poderá vender
esse sonho. Mas isso não significa que os eleitores não o quererão comprar. O
que me preocupa é quem venderá esse «país sem austeridade» quando a devolução
de rendimentos sair das prioridades do governo. Na oposição, PSD e CDS estão
limitados pela sua matriz não populista e pela sua governação mais recente, que
os impossibilita de crescer à conta do tal «país sem austeridade».
À esquerda, o Bloco de
Esquerda e o PCP estão condicionados pelos seus últimos quatro anos de
tolerância a cativações e metas de Bruxelas. No executivo, o Partido Socialista
poderá insistir que aplicará esse tipo de medidas como algo «temporário» e com
«menos dor» ou vontade do que a direita faria, mas isso também não chegará. As
pessoas quererão aquilo que a ‘gerigonça’ lhes vendeu como possível em 2015 – o
país sem austeridade – e as pessoas votarão em quem que lhes prometer isso.
Mais do que qualquer árvore genealógica,
esse é o maior risco que a atual solução de governo deixa como legado. Ao
utilizar uma mentira para legitimar a sua existência – «o fim da austeridade»
–, a ‘geringonça’ subtraiu a verdade do nosso espaço público. E não me venham
dizer que é exagero. Em três anos de governação, Costa teve mais greves, mais
cativações e mais impostos do que Passos em quatro anos de assumido rigor
financeiro. A precariedade laboral não mexeu um milímetro.
A austeridade nunca acabou e o
PS sabe-o muito bem. No entanto, fabricou e difundiu esse engodo por mera
necessidade política. Foi isso que aconteceu em 2015, senhoras e senhores:
o poder sacrificou a realidade. Desde aí, desde
que António Costa subtraiu a verdade do espaço público, que Portugal corre o
risco de mais facilmente acolher fenômenos populistas – à esquerda e à direita
– porque é isso que sucede quando se promove uma farsa: qualquer ator fica com
a cortina aberta para o teatro.
Se é previsível que o próximo
ciclo econômico seja propício a esse tipo de dramaturgia, a responsabilidade
será da esquerda, que inaugurou a encenação.
2. A questão está em como responder à universalização do disparate.
Que comportamento devem ter aqueles que sobram – e aqueles que chegam – face à
falência política da ‘geringonça’ e diante da janela eleitoral que tal
representa? Falam-se em refundações, federações, pré-coligações, pós-acordos e
futuras maiorias. Fala-se, portanto, em muita coisa. Mas faz-se pouco.
Não vejo, até agora, nenhum
partido com uma estratégia séria para lidar com o impacto de André Ventura no
próximo ciclo eleitoral. Não vejo, à exceção do CDS-PP, uma força política
preocupada em defender os três pilares que uma maioria do Partido Socialista
inevitavelmente ameaçará: o escrutínio parlamentar, a liberdade de imprensa e a
independência da justiça. E não vejo, para ser sincero, grande problema num
eventual desaparecimento do PSD como o conhecíamos. O problema está em quem
ocupará o seu lugar.
3. Quando li «A Guerra do Peloponeso», dobrei uma das páginas que
relata a revolução na Córcira. Nela, Tucídides conta como «aquilo que antes era
considerado um impensável ato de agressão passou a ser encarado como a coragem
de um militante», como «pensar no futuro passou a ser somente uma forma de
cobardia», como «qualquer ideia de moderação não era mais do que uma falta de
vigor» e como «entender um problema de diferentes pontos de vista significava
ser totalmente inapto para a ação». Escreveu o ateniense que «o entusiasmo
fanático era a marca de um verdadeiro homem», que «qualquer um que manifestasse
opiniões violentas era de confiança» e que «quem fosse contra essas opiniões
tornar-se-ia prontamente suspeito».
«Os líderes partidários de
cada cidade apresentavam programas admiráveis – de um lado, pela igualdade para
as massas; do outro, por uma governação segura para a aristocracia – mas,
enquanto afirmavam defender o interesse público, apenas procuravam prémios para
si próprios», diagnosticou Tucídides, apuradamente, há mais de 2450 anos.
Escusado será dizer que a
guerra civil na Córcira terminou num banho de sangue entre fações igualmente
extremadas, depois igualmente mortas. Sem desejar estabelecer um anacronismo
entre o mundo helénico e o regime português, creio que o caminho mais digno para
derrotar aqueles que não se importaram de prometer o irrealizável – «um país
sem austeridade» – passa por resistir à tentação de cometer erros semelhantes.
Há, evidentemente, uma janela eleitoral para candidatos a farsantes. Mas
quereremos mesmo abri-la?
Título e Texto: Sebastião Bugalho, Observador,
22-2-2019
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