José Manuel Fernandes
Uma picardia aqui, um despacho acolá, uma
nomeação além, todos os dias vamos deixando que o governo tenha mais poder e os
cidadãos mais constrangimentos. Triste sina de um país que não ama a liberdade
Costuma dizer-se que o diabo
está nos detalhes, mas é realmente nos detalhes que se revela a natureza das
pessoas, sobretudo se políticos, sobretudo se dissimulados.
Costuma também dizer-se que a
natureza das pessoas se nota nos tempos mais difíceis, face às contrariedades.
É aí que melhor se nota que há quem não tolere ser contrariado. Até
quem não suporte a independência dos outros, das pessoas, das
organizações, das empresas ou das instituições.
Por isso começo por uma
dificuldade e por um detalhe, sendo que o detalhe que me incomoda, por ser
revelador, é a súbita fúria contra o crowdfunding. Tivemos tudo, de
teorias da conspiração a um despacho especial do primeiro-ministro, passando
pela Procuradoria Geral da República e pela ASAE. Um verdadeiro case
study.
Até aqui há uns meses o
recurso a crowdfunding era visto por todos como uma forma
moderna e solidária de apoiar causas com poucos recursos financeiros. Uma
espécie de peditório moderno, aberto a todos, acessível a partir de qualquer
canto do mundo e, vejam lá, bem mais transparente do que os peditórios
tradicionais, em que as notas depositadas nos “mealheiros” não levavam atrás o
registo de qualquer NIB. O crowdfunding era mesmo uma coisa
“cool” pois permitia aos pequeninos juntar os fundos que só estariam ao alcance
dos grandes. Nesse tempo até o PS usava crowdfunding.
Mas isto foi antes de uma
campanha de crowdfunding se virar contra a agenda política do
PS – e de António Costa. A partir desse momento passou a ser uma coisa do
diabo, a precisar de novas leis – coisa de que o grupo parlamentar se encarregou diligentemente – ou mesmo da intervenção pessoal do primeiro-ministro.
Costa fez o que não é habitual
– um despacho em cima de outro despacho e apenas para destacar um ponto do
parecer da PGR – e só com um objetivo: estabelecer claramente a “ilicitude de
greves financiadas mediante o recurso a esquemas de financiamento
colaborativo (crowdfunding”)”, algo “de extraordinária importância,
não só para o setor da saúde, mas para todos os demais setores da Administração
Pública”.
Não tenhamos, pois,
medo das palavras: o despacho do primeiro-ministro teve como objetivo limitar a
liberdade sindical limitando drasticamente as condições em que se podem
constituir fundos de greve.
O que é que está em causa
nestas singelas linhas? Conhecendo a realidade portuguesa, estão em causa
fundos de greve. Já discuti as condições da greve dos enfermeiros e
não vou voltar ao assunto, mas independentemente do que se pense da forma de atuar
dos sindicatos em Portugal é sabido que faz parte da liberdade sindical, na
generalidade das democracias liberais, permitir que estes constituam fundos de
greve. Por regra fazem-no através das quotas que cobram aos associados, algo
que o baixo índice de sindicalização no nosso país torna por regra inviável.
Neste quadro, quando uma greve se prolonga – e a greve dos enfermeiros não foi
a primeira a prolongar-se – tem havido recolha de fundos para compensar os
grevistas. Se não chamássemos crowdfunding ao “financiamento
colaborativo” talvez nem percebêssemos que este se processava numa plataforma eletrônica
e não através da circulação de caixas mealheiro.
Não tenhamos, pois,
medo das palavras: o despacho do primeiro-ministro teve como objetivo limitar a
liberdade sindical limitando drasticamente as condições em que se podem
constituir fundos de greve. Sendo que o fez suportado num parecer da
Procuradoria Geral da República que, no dia em que Costa assinou o despacho, já
estava parcialmente ultrapassado pela realidade.
Como é habitual no
nosso país, poucos se terão dado ao trabalho de ler esse parecer, o que é pena.
É que um dos pilares da argumentação daquele organismo para considerar ilícito
o crowdfunding é, e cito, “os titulares das plataformas de
financiamento estão obrigados a preservar a confidencialidade dos dados
fornecidos pelos investidores, designadamente a sua identidade”, o que não
“permite controlar a origem dos donativos”.
Ora no mesmo dia em
que o primeiro-ministro assinou o seu despacho a sempre ciosa Comissão Nacional
de Proteção de Dados considerou que a ASAE podia ter acesso livre aos dados dos
doadores “anónimos”, o que ou mostra que a PGR desconhece a lei, e afinal não
há obrigação de proteção de confidencialidade dos dados, ou que a CNPD violou a
lei para agradar à ASAE. Nenhuma das respostas é boa.
Mas o interessante é
que é com base nesse anonimato dos doadores que a PGR fala de poder “vir a
apurar-se a existência de donativos que são ilícitos”, situação em que “a
ilicitude desses donativos poderá provocar a ilicitude da greve caso se
demonstre que estes, pela sua dimensão, foram determinantes dos termos em que a
greve se desenrolou”.
Em Portugal há uma
enorme tolerância para atropelos à liberdade quando são protagonizados por
socialistas. Em Portugal também só se toleram ativismos e radicalismos (ou se
saúdam grandoladas) se tiverem a bênção da esquerda.
Ou seja, temos o
alinhamento de uma sequência de “ses” – “se” os donativos forem anónimos, “se”
forem ilícitos, “se” forem muito grandes, “se” tiverem sido determinantes – de
que resulta uma limitação geral e abstrata da liberdade sindical por proibição
do financiamento colaborativo como forma de constituição de fundos de greve.
Isto por despacho do primeiro-ministro. Isto sem sequer admitir que o
crowdfunding possa ser gerido pelas organizações sindicais (a outra fonte de
ilicitude levantada no parecer da PGR, mas cirurgicamente ignorada no despacho
do PM).
Não quero sequer
imaginar a gritaria que por aí iria se algo de semelhante tivesse sido decidido
por um governo não socialista ou no quadro de uma greve organizada por um
sindicato da CGTP. Mas não. Em Portugal há uma enorme tolerância para atropelos
à liberdade quando são protagonizados por socialistas. Em Portugal também só se
toleram ativismos e radicalismos (ou se saúdam grandoladas) se tiverem a bênção
da esquerda.
Agora passemos do
detalhe para o quadro mais geral. E este é, desde que este governo tomou posse
e esta maioria se instalou, sempre o mesmo: existindo oportunidade, aumenta-se
o poder do governo, limita-se a liberdade dos cidadãos e trata-se controlar
tudo o que atrapalhe o poder tendencialmente tentacular do executivo.
Atente-se na guerra
às entidades reguladoras, a que Helena Garrido chamou, justamente, “a captura das instituições, outra vez”. O cerco começou no primeiro dia, do
Banco de Portugal ao Conselho de Finanças Públicas, das obscenas nomeações para Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos aos
choques com a presidente do Infarmed, e o padrão é sempre o mesmo: este governo
e esta maioria dão-se mal com gente independente e vozes críticas, preferem
quem obedeça e, sendo “boys”, quem se sinta subordinado e agradecido.
Recorde-se como a
primeira guerra ideológica do executivo foi contra o ensino privado, que na 5
de Outubro se detesta que os pais tenham liberdade para escolherem a escola dos
seus filhos, e que agora esse vírus chegou ao Ministério da Saúde, onde
genuinamente se gostaria de destruir a ADSE e a liberdade que este sistema dá a
quem dele beneficia, uma liberdade que horroriza os defensores da total
estatização da saúde sobretudo porque é imensamente apreciada – perigosamente
apreciada – pelos funcionários públicos.
Repare-se na falta de
respeito pela Assembleia da República exemplarmente refletida na ficção
orçamental e, sobretudo, na opacidade da execução do OE, que tem permitido
aprovar orçamentos que não são para cumprir, viver de promessas sempre adiadas
e sonegar aos organismos de fiscalização a informação mínima para estes
cumprirem o seu papel.
Note-se o registo no
limite da pura má-criação – quando não bem para lá dele – com que o
primeiro-ministro aborda sistematicamente os debates com a líder do CDS e não
esqueçamos a baixeza da carta que enviou ao líder parlamentar do PSD,
sinais de que lida mal com a crítica mais assertiva, sobretudo quando os dias
lhe são menos favoráveis.
Registe-se que, mesmo
não sendo uma obsessão do PS (mas do PSD de Rui Rio), continua na agenda a
intenção de alterar a composição do Conselho Superior do Ministério Público,
uma mudança que limitaria fortemente a independência daquele órgão. Isto depois
da não recondução de Joana Marques Vidal como procuradora-geral da República,
uma decisão de elevado poder simbólico.
Sublinhe-se por fim o
nível de desfaçatez a que chegaram as pressões para alterar o relatório da OCDE sobre Portugal, em especial as
relativas ao combate à corrupção, que fizeram desaparecer do documento final as
referências à Operação Marquês, as recomendações para se criar um tribunal
especial e as sugestões de revisão do sistema de recursos.
E veja-se agora,
deliciosa cereja a coroar este bolo, como se considera normal, mesmo banal e
recomendável, que marido e mulher, e pai e filha, se sentem à mesa de um
Conselho de Ministros de um governo de muitos velhos companheiros, num círculo
cada vez mais fechado sobre si mesmo que mal disfarça cumplicidades feitas de
um longo convívio pessoal ou político. Sim, é verdade, parece-se mesmo cada vez
mais a lista de convidados para os anos de António Costa.
Notem agora nas
palavras que escrevi a itálico no segundo parágrafo deste texto. Têm 11 anos.
Foram escritas por António Barreto em janeiro de 2008. Foram imensamente
polémicas, porque vinham acompanhadas da pergunta impossível de fazer. Aqui
fica a ideia completa: “Não sei se Sócrates é fascista. Não me parece, mas,
sinceramente, não sei. De qualquer modo, o importante não está aí. O que ele
não suporta é a independência dos outros, das pessoas, das organizações, das
empresas ou das instituições. Não tolera ser contrariado, nem admite que se
pense de modo diferente.”
Mas há outra face,
a que se revela quando juntamos tudo e nos surge o velho padrão de um partido
que, confortável no centro de um poder de onde sabe que muito dificilmente será
apeado, continua a agir segundo a velha máxima de Jorge Coelho: “quem se mete
com o PS, leva”.
Já sei: Costa não é
Sócrates, e Sócrates é muita coisa, mas não é fascista. O ponto não é esse. O
ponto é que a caricatura exagera – por definição – o detalhe, mas é sempre o
detalhe que, na caricatura, melhor identifica o todo. Barreto, há 11 anos,
exagerava. Eu, agora, também exagero no paralelo. Mas ele era certeiro ao
identificar a má relação de Sócrates com a liberdade, uma má relação de que
hoje já não duvidamos.
O detalhe de que
parti neste texto não é coisa menor, e um país e um povo mais ciosos das suas liberdades
teriam estado mais atentos. Da mesma forma que teriam reagido aos todos os
atropelos que fui enumerando. Essa é a primeira face do nosso mal.
Mas há outra face, a
que se revela quando juntamos tudo e nos surge o velho padrão de um partido
que, confortável no centro de um poder de onde sabe que muito dificilmente será
apeado, continua a agir segundo a velha máxima de Jorge Coelho: “quem se mete
com o PS, leva”.
No país do
respeitinho – e assim é o nosso Portugal, com honrosas excepções –, não esquecer essa máxima continua a ser um
princípio de sobrevivência. E uma razão do nosso atávico atraso.
Título e Texto: José Manuel Fernandes, Observador,
27-2-2019
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