José Manuel Fernandes
Não apoio a greve dos enfermeiros, mas o
que nela está a irritar Costa e a provocar a fúria da esquerda não é a defesa
do SNS e dos seus doentes, é ela fugir ao controle dos sindicatos da
geringonça.
Sem meias-palavras, que não
cultivo, assumo desde já que desconfio por princípio de greves na Administração
Pública. Porque são, por regra, greves de setores mais protegidos (os grevistas
não correm o risco de perderem os seus empregos, por exemplo, se as suas
reivindicações forem irrealistas), tal como são greves contra os contribuintes,
que no fim pagarão a fatura, assim como afetam geralmente mais os mais fracos e
mais pobres, os que mais dependem dos serviços públicos. Não é por acaso que,
em Portugal, a esmagadora maioria das
greves são ou na Administração Pública ou em empresas públicas.
Faço esta introdução por uma
razão simples: à partida não tenho nenhuma razão para simpatizar com a greve
dos enfermeiros. Posso perceber algumas reivindicações, até concordar com elas,
discordar de outras (e discordar mesmo radicalmente, como sucede com a
reivindicação de reforma aos 57 anos), mas não é esse o ponto deste artigo.
Tenho é todas as razões para simpatizar com o seu sentimento de que estão a ser
tratados como enteados por um poder político por não terem padrinhos na
geringonça.
Por isso mesmo o que hoje me
interessa é verificar como a nossa esquerda, começando no governo de Costa e
acabando no Bloco, passando pelo inevitável PCP, voltou a mostrar a
intolerância de sempre: quem não é dos nossos, quem não está conosco, só merece
ser tratado à pedrada – sobretudo se se atreverem a serem sindicalizados fora
da tutela da CGTP e UGT e falarem em nome dos trabalhadores. Nesse exercício de
flagelação vale tudo, em mais uma demonstração de que, em Portugal, a cultura
democrática é um verniz fino que estala à primeira contrariedade.
Vejamos pois, alguns pontos
muito reveladores.
1. Para António
Costa as greves cirúrgicas dos enfermeiros são “selvagens” e “absolutamente ilegais”. Disse-o durante uma ação de propaganda,
visivelmente enervado, e já deve ter percebido que a tese não tinha pernas para
andar, algo que resulta claro por o Conselho de Ministros nem sequer ter
decretado a requisição civil em todos os hospitais que estão em greve.
É que “selvagem” é uma greve
espontânea, convocada sem pré-aviso, à margem das estruturas sindicais. Não é o
caso. E quanto à “ilegalidade”, o Conselho Consultivo do Ministério Público
validou a legalidade da primeira “greve cirúrgica”, porque seria a segunda
ilegal? O primeiro-ministro, que é um jurista, parece padecer de alguma irascibilidade verbal às sextas-feiras, mas o que transparece da sua
irritação é que não é bonito de ver: a legitimidade de uma greve não é função
de os sindicatos que a convocam serem ou não controlados pelos partidos da
geringonça.
2. Um ponto de
fixação das críticas a esta greve é o seu carácter “cirúrgico”. De repente
multiplicam-se as indignações por, como escreve o filho de um sindicalista
Daniel Oliveira, a greve não ter “qualquer custo relevante para quem a faz” (por existir o
fundo de greve reunido por crowdfounding). Eu espanto-me, pois se
há coisa comum nas greves da administração pública é elas serem montadas de
forma a não terem custos para quem as faz, ou esses custos serem mínimos, e
nunca vi gente como o pressuroso colunista minimamente incomodada com isso.
Dois exemplos. Na recente greve dos professores às avaliações, também ela uma
greve muito prolongada e “cirúrgica”, o método usado pelos sindicatos foi
fazerem rodar os grevistas pois bastava que faltasse um professor ao conselho
de turma para este não se realizar. Assim a greve tinha efeito máximo com custo
mínimo para os grevistas (ou mesmo custo nenhum, pois o “grevista” na função
pública tem formas de justificar a falta sem perder o direito ao seu salário…).
As greves em empresas de transportes como o Metro ou a CP também seguem
processos semelhantes: a circulação pára por razões de segurança bastando
estarem em greve alguns trabalhadores em pontos vitais. A novidade desta greve
dos enfermeiros foi que estes encontraram uma forma de fazer o mesmo no Serviço
Nacional de Saúde.
3. O crowdfounding é
a besta negra desta greve. Um mecanismo que no passado sempre vi elogiado como
uma forma de promover a participação popular tornou-se na arma do diabo.
Compreendo que António Costa, que em 2013, usando exatamente a mesma plataforma
dos enfermeiros, só conseguiu mobilizar 67 doadores para a sua campanha
eleitoral para a Câmara de Lisboa tenha alguma fúria quando verifica que só a
segunda campanha da “greve cirúrgica” teve 10 842 doadores. Compreendo menos
que em editoriais da nossa imprensa “de referência” se diga
que este é um “crowdfunding secreto, uma espécie de saco azul com
contribuições sabe-se lá de quem” quando bastava ir ao site da plataforma PPL
para aí encontrar a listagem dos doadores e verificar que a esmagadora maioria
deu o nome, a cara e às vezes até p serviço em que trabalha. Há anônimos? Sim:
1 536, ou seja 14%. Um em cada sete. Mas que deixaram as suas referências
bancárias na plataforma, a qual não é nenhuma offshore opaca
sediada no Panamá. A ASAE deu-lhe um súbito sobressalto cívico e vai investigar. Ótimo: pode ser que
assim desapareçam as teorias da conspiração segundo as quais seriam os grupos
privados da saúde que estavam a financiar o “saco azul”. Na verdade, não creio
que quem já meteu isso na cabeça mude de ideias, pois essa narrativa vai tão
bem com o seu fanatismo como todas as fake News que agradam às mais
distorcidas visões do mundo.
[Já depois deste artigo
estar escrito e publicado tive conhecimento de que muitos doadores anônimos
começaram a responder positivamente ao apelo dos promotores do crowdfunding
para que revelassem as suas identidades, pelo que o número daqueles que não se tinham identificado estava a diminuir rapidamente.]
4. O financiamento
colaborativo de uma greve – porque é disse que falamos quando falamos do crowdfunding –
levantará problemas, e os nossos juristas já por aí andam a ver se inventam
regulamentos ou descobrem irregularidades. Mas acho que vai ser preciso muita
imaginação para impedir que um grupo de pessoas que juntou dinheiro para apoiar
um conjunto de outras pessoas que perdeu dias de salário por ter feito greve
não consiga fazê-lo. Não é um fundo de greve tradicional, é verdade, mas fundos
de greve é coisa que em Portugal quase não há. Por isso, e não sendo eu
jurista, diria que do ponto de vista formal é como se se tivesse junto dinheiro
para apoiar as vítimas do fogo de Pedrógão e, em vez de o entregar a quem aparentemente o malbaratou, o tivesse doado diretamente a quem ficou
sem as casas. De resto, quando foi da greve dos professores às avaliações,
estes também criaram “fundos de maneio” nas escolas para compensar os grevistas
com uma “compensação solidária” e ninguém gritou que era ilegal.
5. Tenho visto
muitos comentários sobre a “crueldade” desta greve, o que me causa uma certa
perplexidade pois nunca ouvi a mesma gente criticar a “crueldade” de outras
greves no SNS. Assumindo que recorrem ao SNS os portugueses que não têm meios
para recorrerem à medicina privada, parece-me evidente que qualquer greve no
SNS é “cruel”. Devem por isso ser proibidas, como são nas forças de segurança?
Não creio. Devem ser limitadas, para limitar os danos? Sem dúvida. Mas uma das
particularidades desta “greve cirúrgica” é ela ser… “cirúrgica”. Não afeta
todos os doentes, não afeta as urgências, não afeta os casos mais graves, não afeta
a maioria dos hospitais do país. Afeta cirurgias programadas não urgentes.
Claro que afeta milhares de doentes, mas não mais do que as ineficiências do
SNS já afetam. De resto chega ser paradoxal que os serviços mínimos
estabelecidos para os grevistas são serviços que muitos hospitais do SNS rotineiramente não cumprem.
6. Só que esta
greve tem uma característica: proporcionalmente afeta mais as contas do SNS do
que os doentes. Para recuperar as cirurgias que ficam por fazer o ministro da
Saúde de facto, Mário Centeno, terá de gastar mais dinheiro em
programas de recuperação de operações em atraso. No Governo das cativações isso
é intolerável e isso explica muita da irascibilidade de Costa. Quando o Metro
ou a Transtejo fazem greve o povo que comprou o passe fica em terra, mas a
empresa não perde a receita, até poupa despesa, exatamente o contrário do que
sucede nesta greve. Também isto desorienta as rotinas dos nossos governantes.
Lembram-se do ativismo
tonitruante de Marinho e Pinho quando era bastonário da Ordem dos Advogados?
São porventura capazes de recordar do número de vezes que o anterior bastonário
da Ordem dos Médicos, José Manuel Silva, apelou a greves da sua classe? Na altura cheguei mesmo a
chamar-lhe o Mário Nogueira do estetoscópio, tal o seu ativismo reivindicativo, mas a
civilidade de então ministro da Saúde (Paulo Macedo) não impediu que
fosse recebido em conjunto com os representantes sindicais.
Agora o PS e o Governo
descobriram que estes ativismos são intoleráveis nas ordens profissionais e
ameaçam a bastonária – que tem sido bem mais moderada e cordata que esses
outros dirigentes – com queixas à procuradoria e cortes de relações. Mais: apesar de os dirigentes dos sindicatos que convocaram a
greve terem sido candidatos à Ordem dos Enfermeiros em listas que se opunham à
da bastonária, a ladainha é que essas organizações são marionetas de Ana Rita
Cavaco. Pessoalmente estou onde sempre estive: prefiro as ordens profissionais o
mais longe possível do mundo sindical, e isso inclui a Ordem dos Enfermeiros.
Já para os que só funcionam em função da sua claque a bastonária é pestífera
porque… é do PSD. Que nas redes sociais se gritasse assim era normal, que no
Governo se decidisse em função deste preconceito já diz muito sobre o país que
somos.
7. Todos sabem,
desde as histórias das Mil e Uma Noites, “é muito difícil voltar a
meter o gênio dentro da lâmpada”, e quem libertou o gênio foi António Costa ao
fazer subir as expectativas com o fim da austeridade e a “recuperação de
rendimentos”. Esta greve dos enfermeiros não se distingue de forma radical
naquilo que reivindica de nenhum dos outros milhentos conflitos que borbulham
em todo o sector público. O que a torna diferente são duas características
novas: o seu carácter inovador, que a torna mais eficaz e permita que seja mais
duradoura, e ter
fugido ao controle político dos sindicatos da geringonça. É por
isso, e não por qualquer consideração jurídica, que ela desconserta
profundamente António Costa, que ele genuinamente a considera “selvagem” –
“selvagem” porque fora do seu quadro mental e para além do seu longo braço
político. É também isso que irrita profundamente uma esquerda genuinamente
apanhada de surpresa.
Mas há mais neste movimento,
do caráter inorgânico, basista, do crowdfounding, ao grau de
irritação patente nos grupos formados nas redes sociais para organizar a greve,
que nos indicia podermos estar a assistir a fenômenos novos em Portugal. Há que
saber ler os sinais.
O povo é manso, mas pode não
ser manso sempre. Ninguém deve brincar com o fogo – mesmo quem não detesta o
Governo.
Título e Texto: José Manuel Fernandes, Observador,
11-2-2019
Marcações: JP
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