Helena Matos
Rui Rio faz um remake do telefonema de Raúl
Solnado para o inimigo. O Estado importuna mais Berardo por causa de um WC do
que pelos milhões que deve à CGD e o PM desenvolve teorias da conspiração.
Graças ao papel dos úteis, a
começar por esse Grande Útil que é o PR e acabando na anedota útil de Rui Rio
que coloca cartazes a pedir que lhe telefonem a dar ideias, Portugal desliza
num plano inclinado que o afasta do crescimento econômico, o torna menos
democrático e o faz cativo da oligarquia. Esta semana, o sagrado direito à
greve tornou-se no sagrado direito restrito aos devotos com o credo socialista
na boca; o PS entrou na fase da cabala desenvolvendo teorias da conspiração
sobre o financiamento da greve dos enfermeiros: Marcelo prosseguiu no seu papel de animador de programas de televisão e Paulo Macedo declarou que
falar do que aconteceu na CGD é uma perda de tempo. Em resumo, Portugal é um
rábula.
O direito à greve é sagrado, mas uns grevistas são mais sagrados que
outros.
De um momento para o outro a
greve dos enfermeiros tornou-se o inimigo público nº 1 e o seu financiamento é objeto
de teorias várias, algumas delas mais de conspiração que de reflexão: para o
primeiro-ministro os enfermeiros querem destruir o Serviço Nacional de
Saúde (SNS). Na mesma linha o Grupo Parlamentar do PS alega que “nada impede
que interesses contrários ao SNS, sejam eles privados ou de qualquer outra
índole, possam utilizar este mecanismo para fragilizar o sistema público.”
Oh inclemência! Oh martírio!
Após anos e anos a termos de achar normal ligar a televisão e vermos Mário
Nogueira de olhos faiscantes a garantir-nos que a escola dos nossos filhos não
vai funcionar e Arménio Carlos anunciando-nos com aquele sorrisinho boçal
que “vamos ter um ano quentinho”, ou seja, com greves nos transportes dia sim dia sim, a
esquerda vem informar-nos que o direito à greve é sagrado desde que se escolha
o credo certo. Apetece perguntar: se os enfermeiros chamassem Socorro Vermelho
ou Peditório Solidário ao crowdfundig já não havia suspeitas
sobre a origem do financiamento? E se trabalhassem no setor privado a sua greve
já era aceitável?
O que está a acontecer com a
greve dos enfermeiros faz parte da cartilha dos governos populistas, sobretudo
quando apoiados por radicais. Num primeiro momento, o discurso é dominado pela
promessa. Os governantes não só prometem tudo como acusam os seus antecessores
de terem sido incapazes de dialogar e descrispar (era esse o doce tempo em que,
por exemplo, o primeiro-ministro se declarava “surpreendido pela polêmica” em torno da aplicação das 35 horasde trabalho na função pública).
Num segundo momento passam a
fazer um discurso mais cauteloso: é a fase em que, invocando o realismo, os
ilusionistas da véspera começam a aludir a cálculos que ficam sempre para
amanhã. (Desta passagem do ilusionismo para o realismo procrastinado é
particularmente representativa a atitude Marcelo Rebelo de Sousa ao promulgar o
diploma das 35 horas na função pública: “Presidente da República promulga 35 horas deixando em aberto recurso ao Tribunal Constitucional em caso de aumento real de despesa”. )
Num terceiro momento, os mesmo
que gritaram e juraram pela descrispação recorrem a tudo aquilo que condenavam
quando eram oposição para reprimir os que não se submetem ao seu discurso e que
automaticamente caem no campo do anti-patriotismo e ligação a interesses
obscuros, regra geral do setor privado, imperialismo, fascismo… ou o que
estiver a dar como facto gerador de indignações fáceis. É nesse momento em que
estamos relativamente à greve dos enfermeiros. Para os devidos efeitos já foi
convocada essa polícia para todo o serviço dos senhores primeiros-ministros que é a ASAE. Mais
se verá nos próximos dias, tudo evidentemente com a conivência e aplauso dos
mesmos que andam há anos a jurar pelo sagrado direito à greve.
Foi assim logo no PREC quando
as greves passaram a ser reacionárias e Carlos Carvalhas, que então ainda não
era secretário-geral do PCP, mas sim secretário de Estado do Trabalho, pretendia
que a RTP não viesse perturbar a aprovação da unicidade sindical com debates
inúteis e evidentemente fascistas. E não fosse a esquerda dona e senhora da
narrativa oficial sobre o presente e o passado – essa narrativa em que que a
direita surge invariavelmente como inimiga dos trabalhadores – e não estariam
reduzidas à condição de notas de rodapé os episódios mais severos de repressão
dos trabalhadores em Portugal. Afinal casos como o do vagão-fantasma de 1919,
em que um governo português obrigou os ferroviários grevistas a viajarem num
vagão aberto à frente das locomotivas para evitar atos de sabotagem,
aconteceram quando o governo em questão era chefiado pelo muito jacobino, maçônico
e querido no Largo do Rato, Afonso Costa. Logo, mesmo atropelando um pouco as
datas, é difícil incluir casos como o vagão-fantasma (1919) ou os “fuzilamentos
de Setúbal” levados a cabo pela GNR (1911) na presente musealização das lutas
operárias como sinónimo de anti-salazarismo. Consequentemente dessas lutas e
desses protagonistas pouco ou nada reza a História.
Ao contrário do que diz o PS e seus apoiantes (quando estão na oposição) não acho que o direito à greve possa ser absoluto e há serviços – como o das forças policiais – em que nem sequer considero que seja aceitável o direito à greve. E entre as razões porque não aceito que o SNS seja sinônimo quase exclusivo de hospitais públicos (ou privados) conta-se precisamente a convicção de que só a existência de prestadores de serviços públicos e privados na área da saúde (como na do ensino) e a possibilidade de os utentes puderem livremente escolher a que mais de se lhes adequa, permite aos cidadãos-contribuintes-utentes não ficarem reféns dos muitos grupos e interesses que se cruzam no mundo dos cuidados de saúde: sindicatos, ordens, grupos econômicos, partidos. administrações, partidos políticos, seguradoras, empresas farmacêuticas, igrejas, maçonarias…
Nos próximos dias veremos a
quantas mãos se escreve o capítulo do “direito à greve é sagrado, mas uns
grevistas são mais sagrados que outros”. Mãos úteis para tal redação não vão
faltar.
Não é minimamente do seu interesse, mas é maioritariamente do nosso.
“A minha perda de tempo com o passado será apenas a necessária. Primeiro porque é uma perda de tempo e, depois, porque isso é um desfocar do presente, da missão e das 7.000 pessoas que trabalham na Caixa. O meu interesse é que estas não estejam totalmente desfocadas. Perder tempo com o passado? Não é esse, minimamente, o meu interesse.” – Portanto vários milhares de
milhões de euros perdidos em operações que só o compadrio explica não só são
assunto que interesse a Paulo Macedo discutir como este até considera que essa
discussão “causará danos”. Acontece que Paulo Macedo aceitou ser gestor da CGD.
Não foi forçado. Não foi enganado. Sabia ao que ia e sabia muito bem que esse
passado existia. Se não quer falar dele ou se não consegue lidar com essa
desfocalização o melhor será mudar de emprego.
Como qualquer pessoa que tem
de gerir instituições, empresas, associações… que estão a ser investigadas por
factos do seu passado recente, Paulo Macedo detesta que lhe falem de decisões
por que não foi responsável. Não costumam é essas outras pessoas responder com
a sobranceria manhosa usada por Paulo Macedo na sua recente ida ao parlamento.
Quem se comporta como Paulo Macedo se comportou na comissão parlamentar sabe
que tem poder e Paulo Macedo tem-no. (Tem tanto poder que nem sequer saiu beliscado pelo aparente mistério da CGD ter entregue um relatório em que se podia ler o que oficialmente fora rasurado).
Por enquanto, a esquerda está
disposta a tolerar Paulo Macedo, a pagar-lhe bem (os 432 mil euros pagos a
Paulo Macedo não escandalizam a esquerda que anda entretida a querer acabar com
as assimetrias no sector privado. Para quê falar da CGD quando temos o Pingo
Doce à mão?) Até se faz de conta que Paulo Macedo não foi ministro de Passos
Coelho enquanto os seus créditos como gestor forem úteis para que não se questione
a CGD enquanto banco público. Se de caminho Paulo Macedo fizer o prestimoso
serviço ao PS de contribuir para que não se fale do que aconteceu na CGD muito
particularmente entre 2006 e 2008, quando Armando Vara era administrador, então
melhor.
Todo este maravilhoso cenário
só tem um problema: os portugueses enquanto acionistas forçados de um banco têm
o direito de saber como foi possível os pareceres da direção de risco de a
CGD serem ignorados na hora de conceder créditos a determinadas pessoas e a determinadas
empresas. Mais, e por muito que isso penalize o ego de Paulo Macedo – cada
vez mais um nome a ter em conta na composição de uma geringonça à
direita – temos o direito e o dever de perceber não só como aconteceram
tais descalabros, mas também que garantias temos de que factos semelhantes não
voltarão a acontecer.
Foi também por gente com
responsabilidades ter optado pelo silêncio e ter preferido focar-se no que não
penalizava as instituições que Portugal se tornou num país em que
um homem é mais importunado pelo Estado porque construiu uma casa-de-banho num terraço do que pelos milhões que pediu a um banco. Milhões esse que não pagou. Ao pé do que
somos em 2019 o telefonema de Raúl Solnado para o inimigo é um assunto sério.
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