sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

[Aparecido rasga o verbo] Velhas cartas no porão

Aparecido Raimundo de Souza

HOJE PELA MANHÃ, antes que os demais acordem, resolvo descer até o porão de minha casa e me ocupar em rever velhas cartas que ali guardei por não terem mais nenhum valor, a não ser aquele bafejo do apego sentimental às coisas que devem e precisam ficar num canto esquecidas. Um calafrio repentino me conduz suavemente enquanto desço os degraus da escada sem corrimão. Por um momento me sinto como um invasor sáfaro usurpando a probabilidade do impossível.

Logo que penetro no exíguo espaço destituído de luz, a ótica à minha frente custa a se acostumar com o ambiente mal iluminado. Há um silêncio irremediável e encarniçado na escuridão que reina absoluta. Caminho alguns passos para a direita, outros tantos para a esquerda e me deparo com umas caixas de papelão onde armazenei quinquilharias obsoletas. A maioria delas amarelentas e arcaicadas pelo tempo. Num relance tenho a impressão de estar vendo pequenas coisas mortas. Todavia, assemelhando possuir vida própria. 

O que aparece diante de meu nariz, assim que abro um dos recipientes? Uma coleção de livros, discos e revistas. Um amontoado de recortes de jornais, e, quase ao fundo, meia dúzia de envelopes barbanteados. Outros igualmente carcomidos nas beiradas pelos desgastes dos anos acumulados. A maior porção embalsamada em pequenas tiras de sonhos retorcidos.


Traças e baratas se banqueteiam, se alimentam de saudades adormecidas. Afora isto, do jeito que acomodei os cacarecos, continua igual. Não fossem estes visitantes inesperados fazerem a festa, aniquilando o que um dia fez a alegria do meu coração quase saltar boca a fora, o “meu ontem” poderia ser qualificado de intocável.


Este “meu ontem”, na verdade, um baú de lembranças que procurei manter fora dos familiares. Não seria de bom alvitre que minha esposa atual, ou minhas filhas acessassem meus dias antes da chegada (ou melhor) precedentes à existência delas. Nada a esconder. Tampouco a temer. Entretanto, são pequenos registros de uma época em que me sentia feliz de uma forma soberana. Não que agora seja o contrário. Longe disto.

A ventura fecunda e loquaz que anos atrás me outorgava companhia constante, mudou de rosto. Imutou de figura. Variou de corpo. Adulterou de cor. Ficou mais pesada, mais complexa, mais densa, mais diferente de quando me visitava nos áureos janeiros em que a vida me sorria matreira e me abraçava a alma num amplexo diferente e especial.

Ao acaso, passo a mão num dos pacotes. É o de Regina Célia. Antiga namorada que num curto relacionamento de menos de um ano, engravidou e me deu a primeira filha, Erica. Regina Célia morreu de uma doença que na época não havia cura para algumas enfermidades, entre elas, a Eclampsia. Um mal, ou uma perturbação da prenhe, em que a hipertensão arterial chegava às convulsões por elevada quantidade de proteínas no sangue.  Ou algo parecido.

O fato concreto é que Regina Célia faleceu durante o parto e lembro que o médico me perguntou: “o senhor quer que eu salve a mãe ou a criança?”. Como se eu tivesse o privilégio ou o dom divino de decidir quem viveria ou quem deveria fechar os olhos para sempre.

Uma carta escrita no quarto da enfermaria me chama a atenção. Pego e leio. Acho que pela milionésima vez. “Oi, meu lindo. A nossa princesinha está dando saltos elegantes. Acho que não aguenta mais ficar presa na barriga da mamãe. Muito ansiosa, eu sinto que o fruto do nosso amor está endoidecido para ver o papai dela, de sentir o calor de seus braços e o tom mavioso da sua voz lhe acarinhando para dormir. Prometo nunca te deixar. Minha vida. Te amo muito. Sua, sempre, Regina Célia”.

De repente me invade o peito uma dor angustiante e apertada. Cresce a danada em derredor e se avoluma, no exato instante em que deixo cair um retrato de Regina Célia gestante, encostada com um sorriso radiante numa árvore que fazia sombra no quintal de nossa antiga moradia, na Ilha do Governador. Os olhos, lindos e penetrantes, por um instante tênue e grácil, me parecem perdidos nas sombras. Como se dentro dela, crescesse, apesar de não estar mais entre nós, uma inflamação impossível de dominar. 

“Pai, cadê você?”

Minha filha Amanda (lá de cima) me chama à realidade. Antes que descubra o meu paradeiro, torno a guardar tudo do jeito que estava. De pronto, sou dominado por uma intensa lassidão.  Não respondo. Flácido e lânguido, me prostro, apatetado, para não ser descoberto. Nada aqui, bem sei, contribuirá para a minha vida de agora. Enclausurado neste porão subsolado e longe da curiosidade alheia, meus dias passados deverão permanecer quietos e intocáveis. Como numa sepultura abandonada que custodia os seus enigmas à abelhudice de forasteiros. 

Estes meus dias longínquos atormentam. Não só atormentam. Ferem. Sangram. Assemelham a feridas abertas. Às vezes estes abcessos demoram sarar. Não cicatrizam. Lá em cima, a realidade se faz vestida de cores novas e brilhantes. Apesar de chamejantes, me ofuscam. Outra filha entra em cena. Desta feita, Luana Cristina: “Pai, paiêêêêê... onde você se meteu?!”.

Hora de retornar. Minhas filhas e minha esposa atual certamente rirão destas bobeiras sem nexo. Sem contar que a “cara metade”, enfurecida e abespinhada, não deixará por menos. Culminará num pé de briga em fechar o rosto e me vigiar os movimentos. A me espiar de soslaio, a dizer coisas em atravessado... quem sabe até mais tarde, trocar de mal.

Guardo e reguardo tudo direitinho, como se ninguém tivesse tocado. Ou estado por aqui. Estes cartapácios só dizem respeito ao “meu eu” frangalhado. Ao meu caminho tortuoso, ajoujado por uma via de mão única. Senda que só a mim me é permitido rever os passos. Passear de vez em quando. Saudosear os contidos do âmago. Reascender quimeras, revisitar mimos ternos e, sobretudo, rebrotar extravagancias e desvaires de um tempo que não regressa nem se restaura.

A outros estrangeiros a esta quadra, seria, ou melhor, será trazer à baila, fantasmas falecidos, enterrados e uma nostalgia dolorida, iracunda, sedimentada numa depressão de vigilâncias compridas e cenhos franzidos, que só fará machucar amargamente o meu presente. Meu hoje, meu agora, não quer chorar na frente de outras pessoas.

Não ficaria bem na minha idade. Seria devastador. Me quebrantaria me desvalorizaria, me desmantelaria. Saída? Sempre há! Melhor que tenho a fazer, por enquanto, VOLTAR!  Retorno. Dou meia volta. Lentamente a ablepsia obumbrada que me tolhe a visão se disfarça. Se torna azul celeste. Pouco a pouco, um retângulo de claridade amavioso e ridente se engrandece. Se dissemina no espaço realçando o vazio oco que perscruta a parede.
Título e texto: Aparecido Raimundo de Souza, de São Paulo, Capital. 8-2-2019



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