Cristina Miranda
Quando se ouve falar em
violência doméstica associa-se logo às agressões físicas, àquelas que deixam
marcas profundas no corpo visíveis a qualquer um. Mas há outra forma de
violentar quase tão “mortífera” como a primeira: a violência psicológica. Nesta
o agressor não precisa de se munir de facas ou espingardas. Precisa apenas de
abrir a boca e usar a força das palavras cruéis e vis que destroem até à alma.
E por não ser entendida, na maior parte das vezes, esta forma bárbara de
relacionamento é confundida com mau feitio. É desculpada pela vítima que pensa
apenas tratar-se de um carácter “forte” ou difícil como tão banalmente é
apelidado. Mas não é. A violência psicológica é praticada por gente com
patologias e tem de ser denunciada. Também.
O agressor psicológico é por
natureza, um indivíduo que não valoriza a mulher nem a respeita. Olha-a como
ser inferior, seu subalterno que lhe deve toda a obediência sem pestanejar.
Para reforçar este estatuto, humilha-a e despreza-a a cada minuto elevando o
seu ego até à altura do chão onde assim o pode pisar sempre que quer, fazendo
nascer na sua vítima o sentimento de pessoa sem valor.
Frequentemente culpabiliza-a
por tudo o que lhe acontece: se perdeu o emprego, a culpa é dela; se está
aborrecido, a culpa é dela; se os filhos andam mal na escola, a culpa é dela;
se não é bem-sucedido na vida, a culpa é sempre dela. Pelo meio, expressa-se
com violência, de forma gratuita e vã enquanto ainda exige sorrisos e boa
disposição todos os dias quando chega a casa… vê-lhe apenas obrigações sem
direitos e não perde uma oportunidade de apontar falhas ignorando por completo
o elogio quando ela o merece. Não se interessa pelos seus sentimentos nem deixa
que fale neles. Não entende a tristeza da vítima nem lhe admite lágrimas. Afinal
de que se queixa ela se ele só está a reagir assim por aquilo que supostamente
ela não lhe dá?
Para o agressor, tudo
nela é irritante e motivo de discussão:
ou porque conversa demais, ou porque conversa de menos; ou porque se exprime
demais, ou porque se exprime de menos; ou tem iniciativas a mais, ou
iniciativas a menos… Sempre assim. Irrita-se facilmente quando ela fala ou faz
algo por muito inocente que seja. Corta a palavra ao meio, levanta-se da mesa
abruptamente, atira objetos contra as paredes, bate as portas com violência
pontapeando tudo o que se atravessa na frente. Responde com atitudes violentas
à irritabilidade que ela lhe provoca.
A agressividade é quase diária
sem motivo aparente. E a vida passa a ser como um jogo de póquer: nunca sabemos
qual a cartada seguinte que vai ser jogada… não se importa que ela vá malvestida
ou malcuidada para o trabalho, mas ai dela se ousar um dia colocar um pouco de
batom antes de sair. Logo lhe inventará amantes escondidos à espera dela ao
sair do trabalho. E basta uns minutos de atraso para que lhe massacre
violentamente a mente com comentários sinuosos de sexo fora de casa. Por isso
frequentemente lhe exigirá bom sexo como prova de amor e de fidelidade. E se nada corresponder ao esperado rebentará
de raiva como se estivesse a ser traído. Pouco se importa se as razões da
vítima são a falta de mimo, atenção e apreço e que com esse défice não se
consiga entregar como gostaria.
Em contrapartida, ele terá
muitos “affairs” fora do casamento que ele justificará como inevitáveis pela
falta de atenção que ela lhe dá. Do ponto de vista do agressor, ele não é
culpado de nada. E se a vítima não corresponde é porque não o ama. Na verdade,
são abundantes as vezes que lhe repete essa tão desejada palavra. Quase com a
mesma frequência com que a violenta, repete-lhe que é a mulher da vida dele e
que não vive sem ela. É o paradoxo em
pessoa confundindo a sua vítima e prolongando assim uma relação que sem isso já
teria morrido há muito tempo.
Pelo caminho fica uma mulher
totalmente destruída, castrada de vida e sentimentos, manipulada e controlada
até ao limite, aprisionada a uma relação mortífera sem o saber. Ama o homem que
conheceu, acredita que ele continua ali, mas desculpa-o constantemente por
acreditar ou querer acreditar que tudo não passa de uma má fase, de um feitio
difícil originado por qualquer trauma de vida.
Fui vítima de violência
psicológica e apesar de já terem decorrido 30 anos desde que fugi do meu
agressor, as marcas que me deixou continuam abertas. Jamais me vou esquecer do
quanto ele me aprisionou impedindo-me de voar, de ser “eu”. Confinada a viver
dentro de uma “caixa” cuja chave só ele tinha, tudo me era imposto: a forma de
falar, de agir, de vestir, de viver… Não me esqueço das humilhações na frente de
todos, em qualquer lugar, em qualquer momento. Dos choros constantes. Dos
sorrisos ausentes. Da dureza de viver. Era manipulada para não ser nada, e
“morri” em vida. Quando o deixei no meio de uma coragem sem igual, renasci. Ao
ponto de me tornar irreconhecível aos olhos de quem me viu.
Pôr um basta numa relação
destas não é fácil. Mas também não é impossível. Exige muita coragem,
determinação e resiliência. Há que ter presente que o agressor não vai desistir
facilmente e que não aceitará um “não quero mais” com leveza. Usará da maior
violência para exercer o seu sentimento de posse de “coisa” que ele pensa ser
sua.
Mas no fim, por muito
machucada que saia, ficará feliz por ter sobrevivido e verá que a vida, mesmo
sozinha, é bela. Aprenderá que o amor maior é o seu por si e que por nada deste
mundo deverá permitir que o destruam.
Título e Texto: Cristina Miranda, Blasfémias,
8-3-2019
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