Alberto Gonçalves
A preocupação dessa gente, que de resto
enxovalha com jovialidade os homens, os brancos, os heterossexuais, os “ricos”,
os cristãos ou os judeus, não são as calamidades, mas as liberdades
Há racismo em Portugal? Claro
que sim: ainda há dias, uma deputada (socialista) apresentou um relatório que
aconselha quotas para negros e ciganos em sectores sortidos. Chamar “positiva”
a esta forma de discriminação é mera cosmética. É evidente que o principal aqui
é a discriminação, que no fundo pressupõe a inferioridade dos beneficiários das
quotas – e garante que, sem ajuda, as “minorias” são incapazes de chegar onde
chega a “maioria” (?). É igualmente notório que nenhum negro ou cigano com um
pingo de dignidade aceitaria por exemplo entrar no ensino superior à custa de
medidas que decretam a sua inata estupidez. Sucede que, suponho, a percentagem
de estúpidos entre negros e ciganos será próxima da percentagem de estúpidos
entre brancos e esquimós, pelo que as propostas descaradamente racistas do tal
relatório teriam sempre quem as aproveitasse.
O chato, porém, não é que se
atafulhe o ensino, a política ou o que calhar com tontinhos. A política é o que
é, e a universidade que acolhe Boaventura Sousa Santos poderia acolher uma
embaixada da tribo Sentinela sem qualquer decréscimo de sofisticação
intelectual. O chato é os racistas que defendem as quotas chamarem racistas às
pessoas que se opõem às quotas. O método é velho, tão velho quanto os fascistas
que descobrem um fascista em cada esquina (e que em geral coincidem com os
racistas que descobrem um racista em cada esquina, a mesma esquina, entretanto
repleta): atribuir ao inimigo as características que nos definem. Como a
atribuição é feita aos berros, o espectador distraído pode ser tentado a
acreditar nos racistas (ou fascistas), e a julgar que racistas (ou fascistas)
são os outros.
Veja-se o que aconteceu esta
semana a propósito de Maria de Fátima Bonifácio. Em artigo no “Público”, a
historiadora escreveu umas linhas sobre “raças”, incluindo a crítica às quotas
e certas generalizações esquisitas. Admito que a senhora seja racista, não sei.
Sei que a turba furiosa que exige a delapidação, às vezes literal, da dra.
Bonifácio é coisa pior. Nenhum ou quase nenhum dos furiosos, esmagadoramente
brancos, está de facto preocupado com o alegado racismo. Em circunstâncias
similares, também não estariam preocupados com a xenofobia, a “masculinidade
tóxica” (pausa para alívio cómico), a homofobia e demais calamidades da época.
A indiferença desses virtuosos
às calamidades em si prova-se nos momentos em que eles próprios as cometem. Os
virtuosos não se manifestaram quando o capataz da CGTP chamou “escurinho” a um
representante da “troika”, ou quando meio mundo queria enxotar os
brasileiros que votaram Bolsonaro, ou quando o revolucionário Otelo exibiu
famílias paralelas, ou quando o dr. Louçã produziu uma observação canalha para
atingir um adversário político. A preocupação dessa gente, que de resto
enxovalha com jovialidade os homens, os brancos, os heterossexuais, os “ricos”,
os cristãos ou os judeus, não são as calamidades, mas as liberdades. E o objetivo
dessa gente não é acabar com as primeiras, mas abolir as segundas.
É por isso que as “ofensas” em
que a atualidade é pródiga não inspiram aos “ofendidos” um esboço de
contraditório, e sim uma vontade imensa de calar e punir o “ofensor”. Ao
suposto “ódio” respondem com ódio inequívoco e, se possível, consequente.
Mamadou Ba, chefe de uma metástase do Bloco de Esquerda intitulada SOS Racismo,
esclareceu: não basta que a dra. Bonifácio peça desculpa, tem de pagar pelo que
disse. O sr. Ba não informou se o pagamento ideal seria através de coima, pena
de prisão ou fogueira na praça. À cautela, apresentou queixa ao Ministério
Público contra a dra. Bonifácio, no que foi imitado por inquisidores de calibre
semelhante. Há promessas de “boicote” dos jornais que publiquem a dra.
Bonifácio (já suficientemente boicotados pelo mercado). Há rumores de pressões
dentro da universidade. Há ameaças veladas e explícitas. E há, em suma, o
desejo ardente de destruir alguém que, com maior ou menor acerto, se limitou a
emitir uma opinião, hoje elevada a crime.
A opinião em causa não
importa. Neste episódio e em recorrentes episódios afins, as opiniões
“inaceitávelis”, “inadmissíveis”, “intoleráveis” e etc. são apenas pretextos
para alimentar indignações e excitar trogloditas em potência. No processo, que
implica a escrupulosa troca dos argumentos pela raiva primária, formam-se
fanáticos sem nada a exibir exceto a força do ressentimento.
Privados de razão, sobra-lhes
a intransigência, o ruído e a propensão para linchamentos coletivos,
ingredientes que, conforme a História demonstra, são essenciais à expansão do
totalitarismo. Repito: as opiniões não importam. O importante é utilizá-las
para excitar as massas e criar legiões de acéfalos, industriados a engolir
inomináveis patranhas e a obedecer aos respectivos autores. Após dezenas de
milhões de mortos e centenas de milhões de miseráveis, não se conseguiria
manter viva a chama do comunismo e do socialismo sem essas multidões, cegas e
boçais, coléricas e servis. Aliás, só servem para isto.
Título e Texto: Alberto
Gonçalves, Observador,
13-7-2019
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