Rui Ramos
O pior que nos poderia acontecer era
deixarmos de ser portugueses, para passarmos a ser “brancos”, “negros” ou
“ciganos”. Não contem comigo para macaquear o pior que tem a sociedade
americana.
Fui aluno de Maria de Fátima
Bonifácio, admiro a sua obra como historiadora, e, tão ou mais importante do
que isso, sou seu amigo. Mas não foi só por essas razões, que ficam declaradas
para ninguém ter o trabalho de as lembrar, que me repugnou a canalhice das
calúnias e das ameaças com que, a pretexto de um artigo de jornal, a gente do costume a
pretendeu cercar durante o fim de semana. Nesse ataque, houve muito da
precipitação de alcateia que define as redes sociais. Mas houve também a
inspiração de um dos mais asquerosos projetos políticos do nosso tempo.
Porque a má fé e a estupidez
dominam este debate, vou tentar ser muito claro.
Fátima Bonifácio está certa na
rejeição do sistema de quotas étnicas. Mas não evitou alguns equívocos. Por
exemplo, o de aparentemente sugerir – se percebi bem — que o problema da
integração dos ciganos ou dos chamados “afrodescendentes” se deve a serem estranhos
à sociedade portuguesa, à sua história ou aos seus valores. Ora, os ciganos
estão em Portugal há mais de meio milénio. Falam a língua e têm a religião da
maioria da população. São cidadãos portugueses, e tão portugueses como
quaisquer de nós. Os “afrodescendentes” não são um grupo homogéneo, mas, na sua
maioria, são indivíduos originários de antigas colónias europeias. Representam
uma das mais intensas Cristandades dos dias de hoje, e sempre se exaltaram com
as ideologias ocidentais (a Revolução Francesa também aconteceu no Haiti).
Nada disto, porém, faz da
autora uma “racista” e muito menos do seu artigo um “manifesto racista”. Vamos
entender-nos: uma coisa são preconceitos, ou desconfianças derivadas de certos
comportamentos – se isso fosse racismo, então toda gente, em todo o mundo, foi,
é e será sempre racista; outra coisa são instituições e doutrinas que, com fins
políticos, visam a classificação e discriminação das pessoas como membros
de “raças”, e nesse sentido, nem toda a gente foi, é ou será racista, e é aí
que deve assentar a expectativa de que a humanidade resistirá a propostas para
usar características “étnicas” com fins políticos.
A esquerda radical confunde as
duas coisas, para melhor esconder que quer praticar uma delas. Tal como sempre
precisou de fascistas, precisa agora de racistas. Precisou de fascistas, porque
se toda a gente que não pensa como Catarina Martins for fascista, está
legitimado o uso da força para perseguir e calar quem não pensa como Catarina
Martins. E precisa agora de racistas, porque só havendo muitos racistas é que
pode justificar o sórdido projeto com que substituiu a “luta de classes”: usar
cinicamente as migrações para segmentar as sociedades ocidentais em “raças”
mutuamente hostis. A pretexto da causa da “integração” e da denúncia do
“racismo”, o objetivo desta esquerda que trocou Marx por Fanon é tentar
reduzir certas pessoas a membros de “minorias”, e estas “minorias” a meros coletivos
identitários de “vítimas”, dependentes do Estado e controlados por demagogos.
Estou a dizer que em Portugal,
ciganos e migrantes não são frequentemente pobres e marginalizados? Não. Mas
pergunto: são os únicos pobres e marginalizados? Não há pobres e marginalizados
entre os outros portugueses? E se são pobres e marginalizados, isso deve-se a
“racismo”? Não tem nada a ver, no caso dos ciganos, com uma velha cultura de
nomadismo? Não tem nada a ver, no caso dos migrantes, com o facto de serem
trabalhadores pouco qualificados chegados recentemente (os primeiros
cabo-verdianos desembarcaram há menos de 50 anos)?
Estou a dizer que não merecem
nenhum cuidado? Não. Mas a ciganos e a migrantes falta sobretudo o que falta
aos outros portugueses pobres: uma economia próspera e aberta, onde todos – e
não apenas os clientes do poder — sintam que vale a pena trabalhar, poupar e
investir; uma escola exigente, com os devidos apoios sociais, que compense as
desvantagens e não que as agrave, em nome da “diversidade”; serviços públicos efetivos,
que não sejam sacrificados ao emprego de clientelas partidárias; uma lei que
seja igual para todos, e que tolere diferentes culturas, mas não comportamentos
contrários à coexistência pacífica dos cidadãos. O que ciganos e migrantes não
precisam – nem eles nem ninguém — é de serem metidos em guetos legais e
estigmatizados pela dependência do poder político.
O pior que nos poderia
acontecer em Portugal era deixarmos de ser portugueses, para passarmos a ser
“brancos”, “negros” ou “ciganos”. Não contem comigo para macaquear o pior que
tem a sociedade americana. Eu não me identifico nem nunca me identificarei como
“branco”. Sou português como Eusébio, um dos nossos maiores futebolistas, ou
como Marcelino da Mata, um dos nossos militares mais condecorados. É do país
deles que eu quero ser mais um cidadão, e não dessa caricatura do Alabama dos
anos 50 a que a extrema-esquerda convertida ao racialismo gostaria de reduzir
Portugal.
Título e Texto: Rui Ramos,
Observador,
9-7-2019
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