“Vem, vamos embora, que
esperar não é saber,
Quem sabe, faz a hora,
não espera acontecer”
É conhecido, os dois versos,
símbolos das agitações de 1968 no Brasil, fazem parte de “Caminhando”, letra de
Geraldo Vandré (ou “Para não dizer que não falei de flores”), ainda hoje
repetidos a propósito de tudo e de nada. Não vou aqui discorrer sobre as
disputas no interior da esquerda (inclusive a terrorista) refletidas nos
mencionados versos. Quem conhecia as táticas revolucionárias, era a ilusão,
poderia precipitar acontecimentos, passar por cima de atitudes prudenciais,
enfatizadas por outros setores da esquerda, que postulavam a necessidade de
esperar, em vista da apatia da opinião pública brasileira. “Pelas ruas
marchando indecisos cordões”. O conhecimento traria a tática revolucionária
eficaz, geradora da hora revolucionária, desencadearia engajamento nos
vacilantes e apáticos; finalmente, causaria o acontecimento revolucionário
decisivo.
Balelas. O amazônico
acontecimento era outro. Ainda que escamoteado naqueles tempos em tantas
análises, a apatia da opinião pública, que não aderia à pauta revolucionária,
emperrava as possibilidades das correntes revolucionarias e inviabilizava seus
planos. O povão estava noutra. Ainda hoje está noutra.
Com efeito, para ódio das
lideranças comunistas e comunistoides, naquele ambiente de guerra fria, de
choques entre comunismo e democracia liberal, entre religião e ateísmo, de
tensões entre Rússia e Estados Unidos, o desinteresse popular pela esquerda no
Brasil não publicado (ou divulgado) impedia o triunfo do programa revolucionário,
favorecedor do bolchevismo.
Havia um matiz a pôr em
relevo, existe forte ainda hoje: aderia de fato ao programa revolucionário
apenas fatia minoritária da burguesia, do dinheiro ou da inteligência,
enquistada sobretudo no alto empresariado, no clero, na academia e nos meios de
divulgação. É a opinião publicada (diferente de opinião pública), gente muito
divulgada. E, outrora como hoje, pois o quadro nas linhas gerais se mantém
inalterado, tal fatia do público de forma arbitrária se julgava e ainda se
julga porta-voz popular.
Convém lembrar, o ápice das
mencionadas agitações foi a batizada pela mídia “Passeata dos 100 mil”,
realizada em 26 de junho no Rio de Janeiro, várias vezes glosada entre outros
por Nelson Rodrigues. Abaixo pincei um de seus comentários mais pertinentes:
“Vocês se lembram da
Passeata dos Cem Mil, a famosíssima Passeata dos Cem Mil? Os meus leitores, se
é que os tenho, já repararam que eu a cito muito. E por quê? Quem quiser
entender as nossas elites e o seu fracasso encontrará nos Cem Mil um dado
essencial. Não havia, ali, um único e escasso preto. E nem operário, nem
favelado, e nem torcedor do Flamengo, e nem barnabé, e nem pé-rapado, nem
cabeça de bagre. Eram os filhos da grande burguesia, os pais da grande
burguesia, as mães da grande burguesia. Portanto, as elites. E sabem por que e
para que se reunia tanta gente? Para não falar no Brasil, em hipótese nenhuma.
O Brasil foi o nome e foi o assunto riscado. Picharam o nosso Municipal com um
nome único: — Cuba. Do Brasil, nada? Nada. As elites passavam gritando: —
“Vietnã, Vietnã, Vietnã!”.
Já disse, a situação continua
hoje no miolo parecida à exposta pelo jornalista recifense décadas atrás: o
povo distante das metas revolucionárias e um naco das elites, em parte por
mimetismo e subserviência a modas estrangeiras, a elas atrelado. Formam um
Brasil desnaturado, repito, mimetista e subserviente. Falador, expansivo — e
divulgado. O mutismo toma conta da maioria. Será preciso que para felicidade
nossa um dia os mudos falem. Para expandir uma boa influência.
É útil entronizar tal situação
no alto de nossas reflexões ao analisar a presente crise a propósito da
Amazônia e das queimadas que ali acontecem. Tal crise é muito mais presente no
Brasil divulgado (o Brasil da opinião publicada) que no Brasil mudo. Aliás, a
crise no presente está tomando rumo favorável ao Brasil. No curto prazo.
E no longo prazo? Só Deus
sabe. É o que mais interessa, contudo. Desta crise, sob olhar de longo prazo,
só vou pôr aqui em evidência um aspecto saneador, indispensável para sua boa
solução, mas desconhecido quando não silenciado, como se poderá ver abaixo.
Nunca devíamos nos esquecer dele.
Em síntese, agora um pouco
utópico, mas que volte a ter relevância decisiva gente que represente de fato o
Brasil no que tem de melhor em todos os âmbitos. É representação natural,
nascida do fato, transcende a representação parlamentar e tende a moldá-la.
Conta na vida real, ex facto oritur ius. Se não caminharmos nessa
direção, o Brasil terá dias tristes pela frente. No caso, que seja excelente na
correção, na inteligência, na habilidade, na firmeza. O clima seria outro,
outros seriam os rumos e os resultados.
Existem ainda entre nós pelo
menos raízes que, desenvolvidas, poderão dar origem a densa vegetação e
finalmente dominar a paisagem, resgatando assim a imagem pátria, hoje maculada
por quem não lhe quer bem. Será maneira de apagar incêndios, abafar queimadas,
eliminar sequelas prejudiciais decorrentes da presente crise, se conduzida
desastradamente. E de futuras.
Sem tal pano de fundo, o senso
da necessidade de que o Brasil tenha uma representação à sua altura, será a bem
dizer impossível escapar do ambiente tóxico em que a boçalidade, primarismo,
oportunismo, arrogância, prepotência envenenam, por exemplo, as relações entre
Brasil e França, de momento o entrevero mais doloroso, mas não único. É urgente
que o vento leve embora tal fumaça e se restaure o clima puro, fresco,
oxigenado, que em tempos passados começava a existir. Só nele os dois países
poderão buscar seus melhores objetivos, sem sequelas de choques desnecessários,
para dizer o mínimo. Pode demorar, é certo, mas que haja um trabalho nessa
direção e se esperem os bons resultados. Esperar é saber.
Analiso então em rápidos
traços a situação mais candente na crise atual, França e Brasil. A maior
fronteira da França é com o Brasil. Mais importante que a linde extensa, a
perder de vista, é a preservação e melhoria já de mais de século das relações
especiais de apreço e consideração existentes entre os dois países; diria mais,
tantas vezes de encanto mútuo. O francês já foi a segunda língua de todo
brasileiro educado. E por sintomático repiso (já evoquei as palavras outras
vezes) o que disse Fernand Braudel (1902-1985), dos maiores intelectuais
franceses do século XX: “Foi no Brasil que me tornei inteligente. O
espetáculo que tive diante dos olhos era um tal espetáculo de história, um tal
espetáculo de gentileza social que eu compreendi a vida de outra maneira. Os
mais belos anos de minha vida, eu passei no Brasil”.
Também emblemático, fato
narrado por Gilberto Amado (1887 – 1969) em suas memórias deixa ver a
relevância de se manter tal clima. Corria 1933, o homem público sergipano havia
sido convidado para falar sobre Direito Penal na Sorbonne para professores de
Direito e pessoas ligadas à área jurídica. Auditório benévolo, mas muito
exigente, parte da alta cultura francesa ali presente. Um professor da
Sorbonne, Georges Dumas (1866 – 1946), amigo do conferencista, o havia
apresentado sob luz favorável. A expectativa era grande. Gilberto Amado assim
começou sua conferência: “En venant du Brésil, ce pays du soleil, vers la
France, je viens de la lumière vers la clarté” [Vindo do Brasil, este país
do sol, para a França — venho da luz para a clareza]. Conquistados e encantados
com o gancho, os presentes aplaudiram vivamente. A conferência foi um êxito.
Antes de começar a lição, vê-se bem, o conferencista, na época das maiores
expressões da inteligência brasileira, inclinava-se contente diante de uma das
principais características da cultura francesa e a homenageava. Ali as elites
da inteligência, de um e outro país, se oscularam para bem dos povos francês e
brasileiro. É insano desprezar acervos assim, nutridos pela História,
existentes nos mais variados âmbitos da vida social, determinantes, quando bem
utilizados, para as relações benéficas entre os povos. Sem tal perfume, as
reações entre a França e o Brasil (e também relações com outros países) terão
sempre um travo azedo.
Falei da inteligência.
Tratarei agora da inteligência, tato e firmeza. Um último fato. Há maneiras
superiormente eficazes de lidar com os atentados à soberania e nós já as
presenciamos. Em 1905 e 1906 (o caso Panther) foi violada a soberania
brasileira em Itajaí, caso de marinheiro que trabalhava na canhoneira Panther.
De um lado, estava uma das grandes potências do mundo, grande poder militar, a
poderosa Alemanha do imperador Guilherme II. De outro, um país fraco e agrícola,
com as relações exteriores a cargo do barão do Rio Branco (1845-1912) [Foto
ao lado]. Hábil, seguro, educado e firme, o barão conduziu o caso de modo a
que, a Alemanha julgasse melhor pedir desculpas formais ao Brasil. Qualquer
biografia objetiva do barão do Rio Branco descreve bem o incidente. Por nota
datada de 2 de janeiro de 1906, o representante alemão no Brasil, barão de
Teutler, asseverou, não houvera intenção alguma de se desrespeitar a soberania
do Brasil, bem como reiterou os votos de amizade. Mais ainda, informou que os
responsáveis pelo incidente seriam submetidos a julgamento militar. Aqui está
nota da pena do chefe da diplomacia brasileira: “O Governo Brasileiro
aprecia devidamente a retidão e presteza com que o Governo Imperial procedeu no
exame e decisão deste caso, dando mais uma prova dos seus elevados sentimentos
de justiça. Não pode, entretanto — quaisquer que sejam os usos das marinhas de
guerra em outros países — deixar de lamentar que o Comandante da Panther
tivesse incumbido oficiais e praças da sua guarnição de fazer indagações em
terra, mesmo obrando com a maior reserva e prudência, para verificar o
paradeiro de um desertor, tanto mais quanto o mesmo Comandante declara que
contava com a boa vontade das autoridades territoriais, às quais compete,
incontestavelmente, praticar as diligências de polícia necessárias para a
descoberta, captura e entrega de desertores”.
Por que recordo tudo isso?
Preliminarmente, para tirar do mutismo (ou melhor, do olvido e do
desconhecimento) fatos que merecem ser divulgados. Em segundo lugar, para subir
os padrões de comparação, é sempre estimulante ter diante dos olhos modelos de
excelência. Em terceiro, para lembrar a importância de criar ambiente permeado
de elevação, em que floresçam a compreensão e a admiração mútuas (prévio ao
surgimento de problemas), que facilite o bom encaminhamento das soluções. Todos
os brasileiros que prestam esperam que passem as nuvens tóxicas, acabem as
queimadas em nossa reputação (e as desautorizadas na Amazônia), para que o ar
se torne cada vez mais impregnado de civilidade, inteligência e busca efetiva
dos interesses nacionais. Como no exemplo de Gilberto Amado e do barão do Rio
Branco que, nos casos relatados, agiram de maneira eficaz favorecendo
interesses do Brasil. Esperemos e trabalhemos com paciência, com a esperança de
chegar a bom porto. Em muitas ocasiões, esperar é saber.
Título e Texto: Péricles
Capanema, ABIM,
29-9-2019
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