A sombra de qualquer perigo para um corpo
que se supõe imaculado deixa as cabecinhas à nora e a reclamar proteção divina.
Na ausência de Deus, irrompe o poder político.
Alberto Gonçalves
Na sua página do Facebook, um
médico português, devidamente identificado, afirma que se tiver um único
ventilador para dois doentes com covid, o atribuirá ao cidadão que usou sempre
máscara, incluindo ao ar livre. Não seria muito diferente se, entre dois
pacientes com HIV, o senhor doutor fornecesse os antirretrovirais ao monge.
Porém, esse nem é o ponto. O ponto é que os comentários na tal página do
Facebook são quase todos favoráveis à decisão de uma criatura que, em vez de
ganhar elogios, devia perder a licença para exercer. E uma comentadora exige:
“Porrada nessa gente sem máscara. Levavam tantas que na próxima nem pensavam
não usar.”
Nas últimas semanas tenho
andado a cirandar pelo país, literalmente de Norte a Sul, com passagens breves
por Espanha. O cenário é melancólico. Há gente com máscara nos sítios onde a
regulamentação desconexa e grotesca obriga a usar máscara. Há gente com máscara
nas ruas. Há gente com máscara a passear isoladíssima no cimo de uma colina só
discernível com binóculos. Há, eu fique ceguinho, gente com máscara a conduzir
sem passageiros no carro (já vi um condutor com máscara e viseira,
provavelmente numa candidatura espontânea ao Campeonato Mundial da Foleirice).
E depois há gente com máscara que, não satisfeita com a prova de bom
comportamento, ainda faz questão de se desviar seis metros ao cruzar-se com os
inconscientes de rosto à mostra. Comigo ninguém foi tão longe, mas contaram-me
episódios em que malucos gritam ao transeunte desmascarado: “Chegue-se para
lá!” Em suma, estamos perante uma humilhação coletiva sem grandes precedentes.
O problema nem é a humilhação:
é a facilidade com que as pessoas a aceitam, o orgulho com que a ostentam, os
exageros com que a alimentam e o empenho com que odeiam os renitentes. Não
ocorre por um instante a estes devotos da submissão que as regras que postulam
a utilização da máscara foram evoluindo, para a frente e para trás, de acordo
com alucinações diversas – e com a capacidade de socialistas criarem empresas
para importar o pechisbeque.
E os devotos da submissão não
se lembram de questionar decretos produzidos pelos exatos gênios que, em sete
meses de “pandemia”, deixaram os velhos nos “lares” entregues ao abandono e,
desculpem a redundância, ao PS.
E os devotos da submissão não
duvidam da propaganda espalhada pelos “media” ligados à vida por subsídios
governamentais.
E os devotos da submissão não
ligam às opiniões de especialistas que desaconselham a máscara e, em caso de
hereges terminais, desvalorizam a covid.
Os devotos da submissão não
questionam coisa nenhuma, nem sequer as exceções abertas para que comunistas
festejem o estalinismo, pasmados aplaudam comediantes, o dr. Costa assista à
bola e o prof. Marcelo finja resgatar banhistas em apuros.
Os devotos da submissão
limitam-se a obedecer às mais absurdas diretivas a propósito dos mais absurdos
pretextos. O curioso é que os devotos da submissão julgam que os indivíduos sem
açaime os ameaçam com um vírus gripal, e não reparam que eles é que nos
condenam a todos ao vírus da tirania, que parecendo que não é ligeiramente
pior.
Resistir? É escusado. Por mim,
não cedo à máscara salvo por alguns minutos mensais, a fim de pagar o
combustível ou operação similar. Nos restaurantes, ainda não me obrigaram a
semelhante embaraço para percorrer o caminho da porta à mesa (se obrigassem,
comeria noutro lado).
Contas feitas, não uso máscara
ou aquela gosma para desinfectar as mãos, não vejo canais de “notícias” e,
logo, sinto-me teoricamente distante da histeria em curso. A não ser, claro,
quando transito na via pública, repleta de mascarados que me recordam a
inutilidade de ter vergonha na cara, ao invés de um farrapo pendurado nas
orelhas. Em matéria de servidão, o voluntarismo da maioria arrasta a população
em peso.
Para cúmulo, nem a tradicional
propensão nacional para curvar a espinha explica a resignação demonstrada. Em
Espanha, sob uma mescla de socialistas corruptos e socialistas doidos, descobri
que é proibido não usar máscara em espaços públicos, fechados ou abertos.
Também é verdade que, ao contrário de Portugal, célebre pela mansidão a que
aqui se chama civismo, em Espanha já aconteceram protestos contra o enxovalho.
E na Alemanha. E na Bélgica. E na Inglaterra. E na América. Infelizmente,
trata-se de raridades, ou anomalias. Em geral, nos países onde os governos
fomentam o enxovalho (os nórdicos, curiosamente ou não, dispensaram-no), os
cidadãos têm acatado as ordens sem estrebuchar.
É engraçado, sobretudo para
apreciadores de tragédias, que em 2020 se consinta de cara alegre a prepotência
que em 1920, ou 1930, ou 1940 exigiria pancadaria firme para ser implantada.
Suponho que a diferença passa pela saúde. O aumento dos níveis de conforto,
assistência e infantilização levou a que, nas últimas décadas, o ocidental
médio decidisse achar-se imortal. A sombra de qualquer perigo para um corpo que
se supõe imaculado deixa as cabecinhas à nora e a reclamar proteção divina. Na
ausência de Deus, irrompe o poder político, que vê no pavor dos simples uma
oportunidade para redobrar o domínio sobre eles.
Para o poder político,
passadas as fases do desnorte e da incompetência, a covid foi uma oportunidade
e uma bênção, apenas variáveis de acordo com os escrúpulos de cada um.
Governos minimamente
escrupulosos procuraram evitar o pânico e privilegiar a economia e, afinal, a
sobrevivência.
Governos pouco escrupulosos
aproveitaram para testar o grau de tolerância ao despotismo e à arbitrariedade.
Governos nada escrupulosos
fizeram o que o governo português tem feito. Sobre os escombros de uma nação
falida e as vítimas de doenças graves, o dr. Costa já promete vacinas
inexistentes – e gratuitas (não riam) – às massas aturdidas pelo medo de uma
doença que mata, se mata, duas ou três alminhas por dia.
É muito difícil recuperar a
liberdade que se perdeu pela força. É quase impossível recuperar a liberdade de
que se abdicou livremente. A máscara, tradicional símbolo de assaltantes, é
agora emblema de assaltados, uns e outros cúmplices deste gigantesco roubo.
Título e Texto: Alberto
Gonçalves, Observador,
22-8-2020
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