Grave é não perceber que, ao rejeitar o
horror nazi e acarinhar o horror comunista, se legitima o horror todo. Grave é
presumir nuances na desumanização do indivíduo em nome de princípios
“superiores”
Alberto Gonçalves
Mediante pagamento, o
cançonetista Olavo Bilac cantou num comício do Chega e apareceu sorridente
numas fotografias ao lado do dr. Ventura. O gesto foi o suficiente para que
irrompesse um pequeno escândalo. E o escândalo foi o suficiente para que o sr.
Bilac viesse às “redes sociais” admitir o “erro”, negar qualquer associação ao
Chega e pedir mil desculpas à humanidade em peso.
É evidente que o sr. Bilac,
naturalmente carecido de ganhar o sustento, ficou em pânico. Por um lado, o
dinheirinho do espetáculo dá-lhe jeito. Por outro, o dinheirinho dos espetáculos
que se arrisca a perder faz-lhe falta. Suponho que, antes do referido evento, a
popularidade do sr. Bilac não fosse extraordinária. Após o evento, a
popularidade é nula. A julgar pelo ódio que suscitou, será mais provável uma
autarquia alentejana patrocinar um concerto de António Calvário do que o sr.
Bilac animar uma feira do gado em Valpaços. Embora eu não ouviria o sr. Bilac
nem que o Chega (ou uma autarquia alentejana) me pagasse, espero estar enganado
e desejo uma carreira próspera ao homem. O problema, de resto, não é esse.
O problema é a quantidade de
vigilantes que se uniu de imediato na condenação do sr. Bilac. O problema é a
fúria que os vigilantes dedicaram aos pouquíssimos, como o apresentador Manuel
Luís Goucha, que defenderam o direito do sr. Bilac cantar onde quiser. O
problema é a impressão crescente de que quem não está com “eles” está não só
contra “eles” mas será por “eles” aniquilado profissional, social e
pessoalmente. O problema é o medo. O problema é o medo se espalhar por toda a
parte. O problema é o medo enquanto modo de vida. O problema é que uma vida
assim não é vida: é um sintoma inevitável da opressão institucionalizada que o
país iniciou em 2015. Não há ditadura sem estes exercícios de ameaça e humilhação,
de castigo e arrependimento. O engraçado, se as tragédias dessem para rir, é
que as ditaduras avançam a chamar antidemocráticos aos inimigos, com frequência
imaginários, no mínimo exacerbados para efeito cénico. É, dizem “eles”, o “novo
normal”.
Não tenciono perder muito
tempo a falar do Chega. O dr. Ventura, que se notabilizou a defender um clube
da bola, tem tanta legitimidade para abolir a corrupção e refundar o regime
quanto Linda Lovelace para criticar a pornografia. Além disso, e de uns repelentes
laivos “patrióticos”, o oportunismo do dr. Ventura tende a entusiasmar-se e
roçar a demência: há tempos, confessou que gostaria mesmo era de castrar
fisicamente os pedófilos. Recentemente, jurou proibir as ofensas a juízes e
polícias. Agora já se declara orientado por Deus Nosso Senhor, que decerto lhe
surgiu num intervalo do Benfica.
A questão é que o episódio do
sr. Bilac, de ascendência africana, e a interferência do sr. Goucha,
homossexual, complica um bocado o “nazismo” atribuído ao Chega. As habituais e
simpáticas, referências a Israel também não combinam. Não sendo totalmente
improvável que o Chega seja avesso à democracia, a verdade é que não é claro
que seja a força de inspiração totalitária que dizem ser. De resto, a esquerda
chama “nazi” ao Chega com a exata facilidade com que chamaria “nazi” ao CDS ou
ao PSD, caso o CDS existisse e o PSD fizesse oposição. Porém, admita-se para
conveniência de conversa que o Chega realmente adopta ideologias responsáveis
por milhões de mortos. Não é precisamente isso que define o PCP e, removido o
verniz beato, o BE?
O facto – que convém lembrar
semanalmente, se necessário – é que o parlamento português possui dois partidos
comunistas, ambos com uma quantidade de deputados muito superior ao Chega e,
para o que importa, ambos fervorosos adeptos de regimes sanguinários. É
possível que o Chega aprecie regimes assim. É garantido que PCP e BE apreciam
regimes assim. E quantos cançonetistas ou aparentados já apresentaram desculpas
pela participação em festanças de qualquer dos dois? Se não estou em erro,
nenhum. Se não estou em erro, centenas de “artistas” nacionais até retiram
regularmente vantagens da conotação com o comunismo, simpatia que desfilam com
o orgulho natural de quem se orgulha das chacinas, dos fuzilamentos, das
torturas, das prisões e da fome habituais nos lugares onde o comunismo iluminou
os povos.
São profissionais? Pois são.
Aliás, o sr. Bilac é tão profissional que chegou a atuar na Festa do “Avante!”,
sem que à época as virgens se contorcessem de indignação. Não é especialmente
grave, ou comprometedor, que sujeitos se deixem contratar pelo “Avante!”, pelo
Acampamento de Verão do BE, pelos concertos em prol do Hamas ou por homenagens
a Rudolf Hess: o profissionalismo pode ser sinónimo de estupidez. Grave é que,
conscientemente, se cantarole e saltite ao ritmo de massacres, comunistas,
nazis ou dos psicopatas que calhar. Grave é a quantidade de tontinhos,
incluindo na “geração mais informada de sempre”, que de acordo com a vulgata
desprezam Hitler e imaginam intenções redentoras nas aplicações terrenas do
marxismo. Grave é não perceber que, ao rejeitar o horror nazi e acarinhar
o horror comunista, se legitima o horror todo. Grave é presumir nuances na
desumanização do indivíduo em nome de princípios “superiores”. Uma sociedade
civilizada não é seletiva nas abominações. A portuguesa, por exemplo a
portuguesa, é seletiva. E evidentemente não é civilizada.
Título e Texto: Alberto
Gonçalves, Observador,
15-8-2020
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