Com o rombo nas contas públicas e o colapso
da economia, a pauta das reformas ganha urgência, mas enfrenta as resistências
de sempre
Selma Santa Cruz
Imagine um sujeito que perdeu
o emprego, entrou no cheque especial, está com prestações atrasadas, mas não
quer vender o carro para sair do vermelho. A analogia com a situação do país,
feita em entrevista à Revista Oeste pelo empresário liberal
Salim Mattar, fundador da Localiza e até recentemente secretário de
Desestatização, vai além de sua frustração com a resistência do establishment à
venda de estatais para sanear as contas públicas. Ela ajuda a ilustrar os
contornos do impasse mais amplo que paralisa o Brasil. Com o rombo no orçamento
em função dos gastos causados pela pandemia e o aprofundamento da recessão, as
contas públicas já não fecham. E a questão das reformas necessárias para atacar
os problemas estruturais que travam o desenvolvimento, as quais vêm sendo
continuamente proteladas, volta finalmente à pauta e ganha urgência.
O desafio é que seria preciso
vontade política e espírito republicano para ir fundo nas mudanças, em vez de
improvisar ajustes incrementais ou manobras fiscais para continuar com a
gastança, como tem sido a norma. Pois, apesar da narrativa que tenta atribuir
todos os problemas nacionais à pandemia, ou a erros em sua gestão, qualquer
pessoa com um mínimo de informação e boa-fé sabe que não é de hoje que o país
está encalacrado. Ou pior, andando para trás. Tanto na economia, estagnada há
uma década, quanto na piora de quase todos os indicadores sociais, como também
na frente da política, na qual tropeçamos de crise em crise, sem conseguir
enfrentar os reais entraves ao crescimento.
A injeção de mais de R$ 500
bilhões de reais na economia para enfrentar a covid-19 contribuiu certamente
para atenuar as consequências da aterrissagem forçada da atividade. E ainda
trouxe, de quebra, como resultado do auxílio emergencial, um alívio no nosso
insolúvel drama social, com a redução momentânea da pobreza extrema para o
menor nível em 40 anos. Ainda assim, com as projeções de retração do PIB
variando entre 4% e 9% neste ano, a dívida pública e os índices de desemprego e
falências disparando, será obviamente preciso ir muito além de medidas
emergenciais ou manobras na alocação de recursos para evitar um 2021
catastrófico.
A torcida pela extinção do projeto liberal perdeu qualquer
constrangimento
Embora a pandemia castigue
indistintamente quase todos os países, o Brasil paga o preço adicional de ter
entrado no lockdown já fragilizado pelas recessões de 2015 e
2016 — e por mais uma década perdida, na qual os brasileiros sofreram, segundo
alguns cálculos, o maior empobrecimento médio em um século. Agora, a
perspectiva é que, como num daqueles jogos de dados em que se volta várias
casas ao perder uma rodada, iremos retroceder, na melhor das hipóteses, ao PIB
de quatro anos atrás. A renda per capita, por sua vez, poderá
regredir ainda mais, lançando-nos de volta, conforme projeções, aos patamares
de 2007 ou 2009.
Como a recuperação será árdua
e longa, reformas seriam fundamentais para acelerar o processo. A começar pela
administrativa, com o fim de reduzir o gigantismo do Estado e melhorar a
qualidade do gasto público. Simplesmente não dá mais para continuar com a
apropriação — ou, melhor, desapropriação — de 32,4% de toda a riqueza produzida
pelos brasileiros para sustentar uma máquina estatal onerosa e ineficiente, que
gasta anualmente quase R$ 1 trilhão de reais — R$ 985,5 bilhões ou 13,5%
do PIB — somente para bancar os salários e benefícios de seus 11,5 milhões de
servidores nos três poderes e níveis de governo.
E ainda cobrir os prejuízos de
parte das 689 empresas estatais — número que inclui as de controle direto, mais
subsidiárias, coligadas e aquelas em que o Estado detém participações —, nas
quais se torraram, só nos últimos dez anos, assombrosos R$ 190 bilhões.
O problema, como sabem até as
pedras de Brasília, é que a casta de privilegiados instalada no poder não está
disposta a abrir mão de sua fonte de renda e bloqueia qualquer tentativa de
correção desse estado de coisas. E a demissão, duas semanas atrás, de Salim
Mattar e Paulo Uebel, secretário de Desburocratização, seguida por um desabafo
público do primeiro, sinalizou claramente quem está vencendo esse embate.
“O establishment não quer as privatizações para não acabar com
o toma lá, dá cá e o rio da corrupção”, resumiu Mattar. Desde
então, a mal disfarçada torcida pela capitulação do ministro da Fazenda, Paulo
Guedes, e de seu projeto liberal, evidente desde o início do governo, aumentou
e perdeu qualquer constrangimento.
Deve continuar no plano das intenções talvez a mais crucial das
reformas: a política
Mesmo assim, não falta quem
enxergue justamente na gravidade da crise uma fresta de oportunidade. Nessa
perspectiva, com o país no fundo do poço e contando centavos, seria inevitável
desbloquear algumas iniciativas. Além dos projetos de lei para mudanças pontuais
já em análise — como a PEC do Pacto Federativo, por exemplo —, as reformas
administrativa e tributária teriam, quem sabe agora, uma chance de sair das
gavetas. Até porque, realisticamente, ficará inviável continuar aumentando
impostos num país que já arca com uma das mais altas cargas entre trinta países
desenvolvidos, maior do que as dos Estados Unidos, da Suíça e da Austrália, por
exemplo.
Bem como será difícil
continuar justificando um sistema tributário insanamente complexo e injusto,
que, além de perpetuar pobreza e desigualdades, estrangula as forças produtivas
e penaliza o empreendedorismo. As empresas brasileiras já pagam 34% em
tributos, o maior volume entre 109 países, acima da média global de 20% e de
nações como a França, reconhecida pela qualidade dos serviços públicos que
presta à população.
Deve continuar no plano das
intenções, contudo, talvez a mais crucial das reformas: a política. Até porque
o modelo vigente parece ter sido arquitetado sob medida para assegurar a
manutenção no poder de uma oligarquia que trabalha basicamente para garantir
o status quo, tirando partido de distorções como o
presidencialismo de coalizão, o voto proporcional, o foro privilegiado e o
financiamento público dos partidos, entre outras, que comprometem a legitimidade
da representação. E transformaram a política no Brasil em um bom negócio — já
são 33 os partidos subsidiados pelo pagador de impostos e outros 76 aguardam na
fila para habilitar-se ao seu quinhão.
A origem da maioria das distorções está na “Constituição Cidadã”
O resultado de tantas
disfuncionalidades, na visão de juristas como Modesto Carvalhosa, é um
simulacro de democracia. Afinal, lembra ele, com base no pensamento do filósofo
italiano Norberto Bobbio e de constitucionalistas norte-americanos, democracia
não se resume à realização de eleições de tempos em tempos. Ela requer uma
série de mecanismos legais para assegurar a participação efetiva e igualitária
da cidadania na gestão pública, além de transparência e prestação de contas.
Como a origem da maioria das
distorções está inscrita na Constituição de 1988, no entanto, mudar esse quadro
revela-se uma missão quase impossível, já que ela é praticamente blindada
contra mudanças por suas cláusulas pétreas e pelos complexos processos para
aprovação de emendas — como se viu recentemente com a que possibilitou, como
que a fórceps, a reforma da Previdência.
Celebrada como “Constituição
Cidadã”, por ter buscado consagrar os direitos individuais — que o Supremo
Tribunal Federal, paradoxalmente, anda empenhado em desprezar —, ela é hoje
objeto de críticas generalizadas. Além de excessivamente detalhista, com a
pretensão de regular quase todas as minudências da vida nacional, criou por
canetada uma longa lista de direitos sociais, sem levar em conta as capacidades
do país, como se o mero texto da lei fosse suficiente para provê-los.
Para muitos críticos, porém,
seu principal defeito advém do fato de ter sido concebida como reação ao regime
militar, ou seja, com os olhos voltados para o passado. Em vez de direcionada
para o futuro, num momento em que o mundo passava por mudanças aceleradas, com
a queda do Muro de Berlim e o advento da revolução digital.
Depois de 35 anos, a democracia brasileira ainda não entregou suas
promessas
Nessa visão, a real solução
para os impasses do Brasil passaria por uma nova Constituição. “Precisamos de
uma Constituição verdadeiramente democrática”, defende Carvalhosa. “Fundada nos
princípios da isonomia, na igualdade de direitos e deveres de todos os
cidadãos, no princípio da responsabilidade e sobretudo na hegemonia da
sociedade sobre o Estado.” Ou seja, exatamente o contrário do que temos hoje.
Como não se vislumbra a
possibilidade de reformas substantivas, nem de uma Constituinte no curto prazo,
corremos o risco de continuar paralisados ou nos movendo para os lados.
Alega-se que seria inoportuno, e mesmo perigoso, promover uma revisão da Carta
Magna num momento de tamanha radicalização ideológica, o que faz sentido. Mas
talvez seja o caso de levar em consideração, igualmente, os perigos do
imobilismo em meio a uma crise tão profunda e prolongada como a que nos
confronta.
Um desses perigos é o crescente
desencanto com a democracia, a percepção de que, depois de 35 anos, ela ainda
não teria conseguido entregar suas promessas. E é difícil negar que o Brasil
sobrecarregado de mazelas em que vivemos em nada se assemelha àquele retrato
idealista projetado na “Constituição Cidadã”. Década após década, além disso,
os brasileiros veem cair por terra, uma após a outra, seguidas tentativas de
colocar o país na rota das modernas nações democráticas. Enfrentar mais um
revés, caso o atual projeto de modernização também naufrague, não traz um bom
augúrio.
Talvez por isso esteja
voltando a circular a piada, popular nas décadas de 1980 e 1990, segundo a qual
a única saída para o Brasil seria o aeroporto. Só que, desta vez, diante das
restrições a viagens e à imigração, nem com isso os brasileiros podem mais
contar.
Título e Texto: Selma Santa
Cruz foi editora e correspondente internacional do jornal O
Estado de S. Paulo e da revista Veja, na França e nos
Estados Unidos, antes de se dedicar à comunicação corporativa como
sócia-diretora da TV1, grupo de agências especializadas em marketing digital,
conteúdo, live marketing e relações públicas. É mestre em
comunicação pela USP e estudante permanente da História. Revista Oeste,
21-8-2020
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-