domingo, 2 de janeiro de 2011

A conduta dos príncipes e a boa-fé

Nicolau Maquiavel
1. Todos sabem que é louvável um príncipe manter a palavra empenhada, e viver com integridade e não com astúcia. Entretanto, a experiência dos nossos dias mostra que os príncipes  que tiveram pouco respeito pela palavra dada puderam com astúcia confundir a cabeça dos homens e chegaram a superar os que basearam sua conduta na lealdade.

Nicolau Maquiavel, óleo de Santi di Tito,
Palácio Vechio, Florença, Itália
2. Como sabemos, pode-se lutar de duas maneiras: pela lei e pela força. O primeiro método é próprio dos homens; o segundo, dos animais. Porém, como o primeiro pode ser insuficiente, convém recorrer ao segundo. É necessário, portanto, que o príncipe saiba usar bem quer o procedimento dos homens, quer o dos animais. É o que ensinaram, veladamente, os antigos escritores, ao narrar como Aquiles e muitos outros príncipes de outrora foram confiados à  tutela de centauro Quironte, para que este os educasse sob sua disciplina. A parábola deste professor meio-humano e meio-animal, adverte que um príncipe deve saber usar as duas maneiras, e que qualquer uma delas sem a outra não é duradoura.

3. Sendo obrigado a saber agir como um animal, deve o príncipe valer-se das qualidades da raposa e do leão, pois o leão não sabe se defender das armadilhas, e a raposa não consegue defender-se dos lobos. É preciso, portanto, ser raposa para reconhecer as armadilhas, e leão para afugentar os lobos. Aqueles que desejam ser apenas como o leão não compreendem isto. Um príncipe prudente não deverá pois agir com boa-fé quando, para fazê-lo, precise agir contra seus interesses, e quando os motivos que o levaram a empenhar a palavra deixarem de existir. Este preceito não seria bom se todos os  homens fossem bons; mas como eles são maua, e não mantém a palavra, não se está obrigado a agir de boa-fé. E  nunca faltaram razões legítimas para mascarar a inobservância das promessas. Seria possível apresentar incontáveis exemplos atuais, mostrando como muitas vezes tratados de paz foram rompidos e promessas anuladas pela infidelidade dos príncipes; e que os mais capazes de imitar a raposa lograram maior êxito. Mas é necessário saber disfarçar bem essa natureza, e dissimular perfeitamente; os homens são tão pouco argutos, e se inclinam de tal modo às necessidades imediatas, que quem quiser enganá-los encontrará sempre quem se deixe enganar. **
** Comentário de Napoleão Bonaparte:Mentes atrevidas. O mundo é composto de tolos. Na multidão essencialmente crédula contam-se pouquíssimas pessoas que duvidem, e estas não ousarão manifestar suas dúvidas."

4. Não quero silenciar um exemplo moderno: o de Alexandre VI, que em sua vida só fez enganar os homens. Nunca pensou em outra coisa, e encontrou sempre oportunidade para isso. Ninguém jamais afirmou com tanta convicção – e prometendo com tanto vigor cumpriu tão pouco o prometido. Contudo, sempre se beneficiou com a mentira, pois conhecia bem esta arte.

Não é necessário que um príncipe tenha de fato todas as qualidades acima enumeradas, mas é muito necessário que as aparente todas. Ousaria mesmo afirmar que possuí-las todas, e sempre as observar, chega a ser nocivo, mas aparentar possuí-las todas é útil. Assim, é bom ser e parecer misericordioso, leal, humanitário, sincero e religioso; mas é preciso ter a capacidade de se converter aos atributos opostos, em caso de necessidade. Deve-se entender que um príncipe, especialmente se for novo no poder, nem sempre pode observar tudo o que é considerado bom nos outros homens, sendo muitas vezes obrigado, para preservar o Estado, a agir contra a fé, a caridade, a humanidade e a religião. Precisa, portanto, ter a mente apta a se modificar conforme os ventos que sopram, seguindo as variações da sorte – evitando desviar-se do bem se for possível, mas guardando a capacidade de praticar o mal, se forçado pela necessidade.

5. Deve o príncipe ter muito cuidado para que suas palavras nunca deixem de aparentar estar ele repleto das cinco qualidades acima indicadas, de forma que quem o veja e ouça pense ser todo ele piedade, fé, integridade, humanidade e religião. Nada é mais necessário do que a aparência da religiosidade. De modo geral, os homens julgam mais com os olhos do que com o tato: todos podem ver, mas poucos são capazes de sentir.Todos vêem nossa aparência, poucos sentem o que realmente somos, e estes poucos não ousarão opor-se à maioria que tenha a majestade do Estado a defendê-la. Na conduta dos homens, especialmente dos príncipes, contra a qual não há recurso, os fins justificam os meios. Portanto, se um príncipe pretende conquistar e manter o poder, os meios que empregue serão sempre tidos como honrosos, e elogiados por todos, pois o vulgo  atenta sempre para as aparências e os resultados; o mundo se compõe só de pessoas do vulgo e de umas poucas que, não sendo vulgares, ficam sem oportunidade quando a multidão se reúne em torno do soberano.

Há em nossos dias um certo príncipe, que é melhor não nomear, que só faz pregar a paz e a boa-fé, embora na verdade seja um inimigo visceral de ambas as coisas; se observasse uma ou outra, teria em muitas oportunidades perdido seus domínios ou a reputação.
Nicolau Maquiavel, in "O Príncipe", edição Martin Claret, capítulo XVII
Digitação: JP

Qualquer semelhança é mera coincidência...

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