O-Lidador
Tem havido aqui uma interessante discussão sobre o socialismo e o seu significado. Estamos tão agarrados à ideia da bondade das intenções do socialismo que mesmo aqueles que com ele recusam qualquer identificação não conseguem deixar de lhe prestar um tributo ético.
Tem havido aqui uma interessante discussão sobre o socialismo e o seu significado. Estamos tão agarrados à ideia da bondade das intenções do socialismo que mesmo aqueles que com ele recusam qualquer identificação não conseguem deixar de lhe prestar um tributo ético.
É como uma mão amputada que continua a doer. A mão é fantasma, mas a dor é real.
O socialismo morreu no fim do século XX e eu fui dos que celebrou a sua morte.
Contudo esta morte fez desaparecer do horizonte político da nossa civilização provavelmente a única alternativa real, estruturada e com raízes nos valores judaico-cristãos, ao capitalismo liberal,

É verdade que muita gente continua a reclamar-se socialista, partidos e regimes socialistas é o que não falta por aí mas a essência do ideal socialista, essa é bastante vaga e não pode deixar de o ser, face às tenebrosas realidades que gerou no século passado e que acabaram por lhe selar o caixão. Existe também um núcleo duro de fiéis que afirmam que não se pode julgar o socialismo pelas suas realizações. Para estes, Cuba, URSS, RDA, Líbia, Iraque, Venezuela, não eram/são verdadeiramente socialistas, nem as políticas seguidas pelos partidos socialistas são verdadeiramente socialistas (o nosso PCP chama-lhes sempre “politicas de direita”).
Esta argumentação não é séria. O socialismo é aquilo que faz, e o lamento dos crentes, de que o verdadeiro socialismo nunca foi realizado, é uma falácia obstinada que poderá ser invocada por qualquer ideologia falhada. Por exemplo, os fascistas podem dizer que Mussolini não realizou o “verdadeiro fascismo” e os apaziguadores do Islamismo que o islão violento e intolerante não é o “verdadeiro islão”.
A relação do socialismo com a realidade parece ser como a do potássio com a água: ao mínimo contacto volatiliza-se, o que suscita a questão de saber o que há então no ideal socialista que o torne tão incompatível com a realidade quando parecia aos seus defensores um sistema racional, que expunha os defeitos óbvios da sociedade capitalista.
O primeiro socialismo era utópico, como Marx lhe chamou. Insatisfeito com a modernidade, essa insatisfação era basicamente uma versão secular da crítica católica a um mundo cada vez mais surdo ao seu discurso. Saint-Simon acreditava até ser uma espécie de Messias que trazia a revelação final.
A sua principal crítica era a de que a liberdade não é o mais importante porque uma sociedade fundada apenas nos direitos individuais não tem lugar para certas virtudes que devem caracterizar uma comunidade política, nomeadamente um núcleo moral comum e uma ideia do que deve ser uma vida “boa”. Na verdade a sociedade capitalista descrita por Adam Smith e outros, de certo modo negligenciava essas virtudes, remetendo-as para a esfera privada. Fazia-o, não porque as considerasse desnecessárias, mas porque tinha como assumido e inabalável o acervo moral judaico-cristão. O indivíduo era “formatado” nesses valores e, mesmo que rejeitasse a crença religiosa, os valores estavam lá, já faziam parte dele. O capitalismo respirou nesta e desta atmosfera moral que, contudo, se foi desgastando face à emergência de conceitos relativistas e niilistas, de certa forma gerados no e pelo próprio espírito do capitalismo
O socialismo cativou tanta gente inteligente e bem intencionada, porque foi um esforço moderno para resistir à corrupção ética da própria modernidade. É, por isso, uma religião secular, conceito de resto assumido como necessário pelos próprios “saint-simonianos”. Contém um núcleo religioso, um conjunto de princípios de “mal” e “bem”, no qual são endoutrinados os fiéis. A experiência israelita do kibbutz é, por isso, extraordinariamente similar à pequena comunidade religiosa, uma comunidade socialista que funciona, mas apenas na medida em que as pessoas aderem ao núcleo de valores, a comunidade se mantém suficientemente pequena para evitar a divisão do trabalho e as classes sociais que isso implicaria, e manifeste alguma indiferença para com os bens materiais não essenciais, sem a qual não existiria igualdade.
Os socialistas utópicos esperavam abolir a pobreza, mas visavam padrões modestos, típicos de uma comunidade Amish, por exemplo, porque a exaltação de apetites individuais que fossem para além disso, necessariamente criariam tensões no seio da comunidade, como de facto aconteceu nos kibbutz. A comunidade socialista deveria também produzir um tipo de indivíduo socialista, um homo novus que estivesse acima do materialismo e da vulgaridade dos apetites burgueses, típica do indivíduo capitalista.
Contudo o tipo de socialismo que varreu a história não foi este, mas sim o “socialismo científico” de Marx e seus discípulos, que alimentou a ambição, muito mais vasta, de transformar rapidamente toda a sociedade. O seu ímpeto moral era também decorrente da luta contra a modernidade mas acabou, nas suas várias vertentes (comunismo, social-democracia, etc.,) por fazer caminhos muito diferentes.
Todas as variantes do socialismo científico acreditavam em políticas manipuladoras e dirigistas que, pela acção governativa de uma elite iluminada, sobre as populações ignorantes ou alienadas, criariam a comunidade virtuosa.
Mas, ao contrário do seu antecessor utópico, o socialismo científico criticava o capitalismo por este ser incapaz de produzir a abundância que a tecnologia possibilitava e, em vez de uma igualdade assente na escassez, trombeteava a igualdade na abundância. Não é por isso de admirar que tenha atraído imediatamente todos aqueles que se sentiam frustrados por aquilo que o sistema capitalista lhes dava. As massas não queriam uma vida virtuosa e modesta, mas sim ter tudo aquilo a que se julgavam com direito.
O socialismo científico cristalizou em duas correntes que chegaram ao poder no séc. XX: uma que entendia que a comunidade socialista devia manter o sistema liberal de democracia parlamentar e outra que considerava isso indesejável.
O socialismo totalitário, falhou rotundamente. O planeamento centralizado foi incapaz de lidar com a complexidade da realidade moderna e da natureza humana. É certo que foram realizadas grandes obras e projectos, mas não há nisso nada que se possa creditar ao socialismo. A História está cheia de grandes realizações levadas a cabo por poderes autocráticos, desde as Pirâmides, à Grande Muralha da China. Naquilo que interessava ou seja, criar uma sociedade de abundância para todos, este socialismo falhou em toda a linha e revelou-se mais “utópico” do que o socialismo utópico propriamente dito.
A vertente social-democrata não leninista, não teve muito melhor sorte e onde aparentou algum êxito, foi sempre à custa da própria doutrina.
O caso sueco é paradigmático. Décadas de governação social-democrata, desembocaram num país próspero, com uma economia que, no início da década de 70, se dividia a meio entre capitalismo privado e capitalismo de estado. Mas a pressão ideológica socialista para nacionalizar ainda mais e fazer uma redistribuição mais igualitária dos rendimentos, conduziu ao abrandamento económico, inflação galopante, baixa de produtividade, quase bancarrota e ao descontentamento que acabou por determinar a derrota dos social-democratas e o regresso a um caminho mais próximo do capitalismo liberal.
Na Inglaterra, então designada pelo “doente da Europa”, aconteceu mais ou menos o mesmo, tendo finalmente emergido Margaret Tatcher que pôs fim à deriva socialista e salvou o país.
Hoje, face à crise e à retórica socializante que se ouve de novo, as sociedades precisam de se vacinar contra o regresso de um fantasma que morreu, mas ainda pensa estar vivo.
O ingrediente estritamente económico da vacina está mais do que identificado, e passa por um Estado-Previdência que evite a lei da selva e associe compulsividade e livre escolha, de resto perfeitamente compatível com o capitalismo liberal.
O ingrediente ético é um osso mais duro de roer. O declínio das crenças religiosas e dos valores tradicionais, é uma das mais sérias contradições, no sentido dialético, do capitalismo, uma vez que resulta da própria ideia liberal de que estas coisas são da esfera privada.
Mas é um osso que tem de ser roído pelo próprio sistema capitalista liberal, sob pena de a morte do socialismo redundar no aparecimento de fantasmas pseudo-socialistas que assentam os seus gritos lancinantes de além-túmulo no repúdio da liberdade individual em nome da “igualdade”.
E esse caminho já sabemos onde conduz.
O-Lidador, do blogue "O triunfo dos porcos", 09-03-2011
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