terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

1984: A Distopia de Eric Arthur Blair – Trabalho de Filosofia Política

Ernesto Ribeiro e Israel Alexandria

Unitermos
Totalitarismo; modernidade; tempo; poder; intimidade; subjetividade.

Análise
O casal Winston Smith e Julia se apresentam como um par amoroso aos olhos onipresentes do Big Brother. Mas essa história de amor heróico está longe de ser apenas mais um romance proibido.

Julia é um enigma. Em Julie ou La Nouvelle Heloise, Rousseau teria feito a descrição de uma mulher angelical, a própria expressão da inocência e da virtude.

A Julia de Orwell não é virtuosa. “Sou corrupta até os ossos” ela declara; longe de ser angelical, ela é satânica; interpõe-se no caminho de Winston para seduzi-lo. Esta é morena, a outra é loira. Teria Orwell baseado sua obra num antagonismo da Julia de Rousseau?

O filme trata de uma moderna invenção de um exercício do poder institucional, feita nos moldes de uma linha de montagem: o totalitarismo. Uma forma de domínio em que o poder se institui como fim e não como meio. Se Thomas Hobbes (1588-1679) e Hugo Grotius (1583-1645) pudessem ter lido esse livro e considerassem a possibilidade da ficção tornar-se real, provavelmente mudariam alguns aspectos de seus pontos de vista sobre a política. O primeiro iria repensar se “A doutrina das linhas e figuras não se interpõe a nenhuma ambição, proveito ou apetite humano.” (Leviatã, cap. 11).

O segundo talvez reconhecesse a inutilidade de sua frase “Mesmo Deus não pode fazer com que duas vezes dois não seja igual a quatro.”


1984 é a suprema obra-prima da literatura política, ideológica, filosófica, poética do século XX, centrada na apresentação e dissertação de uma Filosofia do Poder. É uma elegia á cultura ocidental e á língua inglesa. Mostra a vitória absoluta do Mal Absoluto. É onde George Orwell descreve sua visão pós-apocalíptica de um futuro dominado pela ideologia totalitária socialista. 1984 é a inversão dos dois últimos algarismos do ano em que a obra foi finalizada: 1948. Nela estão presentes todos os males do totalitarismo:

A supremacia do Partido Único (a contradição em termos), o Terror, a Polícia Secreta, a loucura institucionalizada pelo desprezo pela realidade objetiva, a destruição de todas as coisas boas e belas, incluindo a espontaneidade dos sentimentos e instintos naturais. A idolatria a um líder adorado como um deus, e completamente mau. A abjeta inversão de todos os valores, em que o povo é obrigado a amar apenas o seu pior inimigo e a odiar e matar seus parentes mais próximos, caso estes se afastem da ideologia dominante por um milímetro sequer.

É a definitiva distopia: a pior sociedade imaginável; um pesadelo de dor, miséria, loucura e maldade. Um mundo onde as pessoas são doutrinadas apenas em emoções negativas: medo (do próprio ídolo), ódio (da própria natureza humana), crueldade (com a desgraça dos outros) e auto-degradação (como prova de submissão). Enfim, é o mais próximo que o Ocidente chegaria perto de se confundir com o Oriente em seus defeitos no regime totalitário do Islã.

“Começa a perceber o tipo de mundo que estamos criando? É exatamente o contrário das utopias que os antigos reformadores imaginavam. Um mundo de medo, traição e tormento, um mundo de pisar e ser pisado, um mundo que se torna cada vez mais impiedoso. O progresso em nosso mundo é o progresso no sentido de maior dor. As velhas civilizações diziam-se fundadas no amor ou na justiça. A nossa sociedade é fundamentada no ódio.”

“Você será (um fiel) perfeito. Nunca mais terá reações humanas normais. Todos os prazeres concorrentes foram destruídos. O instinto sexual foi extirpado. Abolimos o orgasmo. Já destruímos os instintos naturais mais básicos, até o desejo de preservar a própria vida ou as dos filhos. Cortamos os laços entre homem e mulher, entre pai e filha, entre irmão e irmã. Ninguém mais ousa confiar no marido, esposa, pai, filho, irmão ou amigo. Não haverá mais lealdade, exceto lealdade ao Partido. Não haverá mais amor, exceto amor e temor ao Grande Irmão.”

“Não haverá mais riso, exceto o riso de vitória ante o inimigo caído. Nem arte, literatura ou ciência... Não haverá sequer a diferença entre a beleza e a feiúra. Haverá apenas a Adoração da Morte e a Obliteração do Ego. Se você quer uma imagem do futuro, pense numa bota pisando um rosto humano — para sempre.”

Esse inferno de sofrimento e injustiça, loucura e maldade é ilustrado em sua adaptação para o cinema inglês no filme do diretor Michael Bradford, que estreou em 1984. O filme ilustra a história de um paraíso invertido — em que a criação do primeiro homem é substituída pela extinção do último homem. Tudo no filme é anti-paradisíaco. Cenário e trilha sonora são inversões de paisagens e sons endêmicos.

Ateu moralista, George Orwell (codnome artístico de Eric Arthur Blair) fala pelo personagem Winston Smith (alter ego do autor e também uma homenagem ao heróico primeiro-ministro inglês Winston Churchill, também um ateu) contra as religiões.

Mais exatamente, contra a inversão moral provocada pelo fanatismo religioso que leva uma mãe de família a deixar seus filhos morrendo de fome para dar seu dinheiro a uma igreja, sob a ameaça de ir para o inferno se desobedecer. Assim como os pagãos fenícios matavam seus próprios filhos mais velhos por obediência a seus mestres imaginários, Abraão obedecia a seu Deus se dispondo a degolar seu próprio filho sem hesitação.

O Islamismo leva ao homicídio de todos os parentes mais próximos: são comuns assassinatos em família, por pretextos torpes, quando um dos parentes se veste com roupas ocidentais, por exemplo. No Islã, é cotidiano os fiéis muçulmanos matarem as próprias mães, irmãs, esposas e filhas. Um imã chega a lançar um fatwa (ordem de assassinato típica de uma quadrilha da Máfia) mandando matar o próprio filho porque ele abandonou a religião.

Isso é o que significa “Amar a Deus sobre todas as coisas.” O fiel se dispõe a cometer todos os tipos de atrocidades monstruosas por medo de cair em desgraça junto a seu ídolo, e assim ser condenado a penar no inferno numa suposta vida após a morte.

Da mesma maneira, no filme O Círculo Interno (1994) passado na União Soviética stalinista, uma mulher pergunta ao marido: “Quem você ama mais? Eu ou Stalin?”

Ao que o homem responde: “Que pergunta idiota! Stalin, é claro!”

É o que acontece ao final de 1984, quando o regime totalitário da Distopia consegue separar o casal emocionalmente, fazendo um trair o outro pela ameaça daquilo que cada um mais teme: para escapar do supremo horror, o indivíduo se rebaixa ao nível mais abominável, nega seu amor á pessoa companheira, e passa a amar o ídolo de poder (o grande Irmão, ou Deus) acima de todas as coisas.
“Deus é poder.” Assim diz o Inquisidor, e assim repete Winston instintivamente, escrevendo sua primeira anotação após ter concluído o processo de lavagem cerebral.   

Considerada uma das maiores pensadoras e teóricas do totalitarismo, a filósofa Hannah Arendt (1906-1975), dizia que a estrutura do poder totalitário é semelhante á estrutura de uma cebola. “Algo em cujo centro está o líder. O que quer que ele faça, ele o faz de dentro.” E não de fora ou de cima, como nos regimes absolutistas ou autocráticos, melhor representados pela estrutura de uma pirâmide.

Estando no centro, o poder do líder afeta toda a sociedade como a própria fonte dos acontecimentos.
Toda a situação social é uma mera conseqüência do poder central, e não o contrário.

Geralmente, é a cultura local de cada civilização que molda a estrutura do poder.

Mas no Totalitarismo, ocorre o inverso. A receita comunista já vem pronta e idêntica em todos os países onde foi imposta. Da Alemanha á China, da Rússia á Cuba.

O paroxismo do poder não se encontraria assim influenciado pelas tradições de pensamento do povo dominado. Pois os mestres socialistas sempre impõem seu poder “de modo a reinventar o mundo, em vez de entendê-lo” como ordenava Karl Marx.

O poder assim estruturado protege os tiranos da “factualidade do mundo real”, estabelecendo a condição para o exercício do poder em seu grau máximo. Se a partir deste locus entende-se que o exercício do poder deve guiar-se pela máxima de que “tudo é permitido”, o entendimento a partir do centro de uma estrutura de poder totalitário é o de que “tudo é possível” inclusive a criação de admiráveis mundos novos.

Não por coincidência, Aldous Huxley escreveu um livro inteiro de ensaios fazendo a comparação entre o “totalitarismo benigno” de sua obra e o “totalitarismo maligno” de George Orwell em Regresso ao Admirável Mundo Novo. A diferença cardeal de fato era que no Poder Absoluto, tudo de ruim acontece. Quanto á distopia de Arthur Blair, não é á toa que na sala 101 qualquer coisa podia ocorrer.

Não só o pensamento, mas também a biografia da judia Hannah Arendt é interessante nesse contexto, pois a ela agrega-se a história do seu primeiro amante alemão, o filósofo nazista Martin Heidegger (1889-1976), cujo rosto parece-se com o do Big Brother (a coincidência terá sido mera semelhança?).

Mas a alusão a Heidegger não deve ater-se apenas ao prosaísmo dessa semelhança, mas pelo fato dele, um filósofo, haver se filiado ao Partido Nazista e ter escrito uma obra — Ser e Tempo — que, de certa forma, contribui para pensar a questão do tempo enquanto ligado á questão do ser.

Este é um objeto privilegiado na tese orwelliana, conforme se pode notar pela ênfase reiterada da frase “Quem controla o passado, controla o presente; quem controla o presente, controla o futuro”.

Tomando por empréstimos algumas palavras em seu sentido heideggeriano, podemos afirmar que, em 1984, controle mental é controle da temporalidade. A destruição do vigor-de-ter-sido e do por-vir equivale à destruição da própria presença ao desumanizar o homem. Ao reduzi-lo á categoria de mero ente.

A destruição totalitária vai além da morte, pois nenhum poder-ser há para os indivíduos dominados. “Quando vocês vão atirar em mim?” pergunta Winston. “Primeiro precisamos tornar você um de nós.” Responde o Inquisidor do Partido. “Depois você mesmo virá nos pedir espontaneamente para ser morto por seus crimes de pensamento.”

 “Nada pertence ao indivíduo, exceto alguns centímetros cúbicos dentro do crânio.” conclui Winston no início da história, para ao final descobrir que nem mesmo isso é assegurado ao cidadão. Percebe-se como, aos poucos, o Partido-Estado, que detém todo o controle da vontade, aparece invadindo até mesmo a interioridade do pensamento e da vontade, os únicos territórios que restam ao indivíduo num mundo em que tudo foi tornado público e vigiado pelo poder central. Os nomes das instituições do Estado fazem referência a esse investimento de controle total da interioridade:

“Polícia do Pensamento” “Minutos do Ódio” “Ministério do Amor” etc.

A sala 101 é um enigma em muitos sentidos. No entanto, é possível traçar aqui uma leitura condizente com a nossa proposta de Curso de Filosofia Política.Poderíamos dizer, por exemplo, que a sala 101 representa a intimidade do si mesmo. Este é o território de origem da trindade freudiana Id – Ego – Superego. Território este que só pode ser acessado pelo próprio indivíduo como a mais profunda verdade do Ser. Consciente na vigília ou inconsciente nos sonhos, é na sala 101 que cada ser humano tem seu espaço de caráter inviolável como num espelho para reconhecer a si mesmo. Este deve estar protegido das intromissões alheias, tornando justificável o direito á intimidade individual de estar só consigo mesmo. É o que melhor se sente e se descreve como “conversar consigo mesmo” ou “ser amigo de si mesmo”. É na privacidade desse diálogo mais íntimo que se assenta a segurança do “não se contradizer”. Pois a verdade mais sólida para todo ser humano é a de que “não se pode mentir para si mesmo.” Nenhuma pessoa lúcida pode enganar a si própria. Pois é aí que entra o Estado totalitário para perverter até mesmo essa regra e destruir a identidade própria de cada indivíduo. Somente assim o sistema consegue criar o fiel perfeito.


Para decodificarmos o número que representa esse espaço mental da identidade, devemos pensar em Blaise Pascal, para quem o homem é um caniço pensante.

A imagem do número 101 é a de um caniço e seu reflexo mediado por um espelho. Sendo assim, podemos concluir que essa é a imagem que melhor sintetiza a questão da identidade em termos de auto-imagem. Portanto, poderíamos ver na imagem 101 a imagem da alteridade entre o eu e o si mesmo (alter ego) ou seja, a imagem do homem alienado de si. Essa alteridade também poderia representar a relação indivíduo-Partido.

Tal relação é ilustrada no discurso do inquisidor O’Brien: “O indivíduo é fraco, pois é sempre derrotado pela morte. Mas se você deixa de ser você mesmo, se abandonar toda a sua personalidade e se fundir com o Partido, então você é o Partido, e é invencível e imortal.” Ou seja, a questão da identidade na distopia de 1984 é levada ao extremo da Obliteração do Ego (um dos nomes da ideologia totalitária dominante nessa distopia) movida pelo desejo de poder e por puro medo da não-existência após a morte. Esse é o mesmo motor de todas as religiões. O que move o fiel, do mais moderado ao mais fanático, é a incapacidade de aceitar o seu próprio fim definitivo. A perspectiva de voltar ao nada é mais aterrorizante, esmagadora e deprimente do que a própria idéia de sofrimento infinito e eterno. Para o espírito religioso, é preferível penar no inferno eternamente numa existência deplorável do que deixar de existir.

Na etapa final e decisiva da conversão, o Partido ocupa a sala 101 de cada pessoa até que o indivíduo não consiga mais se distinguir do Partido. É a mais profunda, radical e repugnante invasão da intimidade, o clímax do totalitarismo que põe fim á alteridade. “As outras tiranias tinham como mandamento ‘Tu Não Farás!’ Os outros totalitários mudaram a ordem para ‘Tu Farás!’ O nosso comando é ‘Tu És!’ Nenhum desvio é tolerado. O verdadeiro poder é sobre a mente humana. Não nos importamos só com os teus atos. É com teus pensamentos que nos preocupamos. O poder absoluto é a capacidade de despedaçar os cérebros humanos e depois remontá-los da forma que melhor lhe interessar.”

Assim, o Partido tem o poder de instalar-se no íntimo de cada indivíduo, e isso se dá porque a essência de cada um é revelada nas câmaras de tortura e campos de concentração. O controle da sala 101 revela o paroxismo do poder totalitário.

No que se deduz pelas palavras de Arendt: “Se é verdade que os campos de concentração são a instituição que caracteriza mais especificamente o poder totalitário, então deter-se nos horrores que eles representam é indispensável para compreender o totalitarismo.”

Numa visão arendtiana, diríamos que esse controle da interioridade se processa em dois níveis: no do pensamento e no da vontade. Para Arendt, todo pensar é um o que já foi pensado. Pensar é profundidade. Pensamento é memória. Conhecimento é poder.

O controle do pensamento equivale ao controle do passado. Nas ditaduras totalitárias (comunismo, nazismo, islamismo) tenta-se controlar o passado todo o tempo. Esse é precisamente o trabalho de Winston como funcionário do Ministério da Verdade (que se ocupa de criar as mentiras e divulga-las como propaganda) de reinvenção das notícias do passado, da destruição da memória social. “O cidadão dessa sociedade é como um astronauta solto no espaço, sem gravidade e portanto sem noção do que significa o lado de cima ou de baixo.” Não tem um valor de passado para sequer fazer uma comparação; e assim não tem como saber se vive numa época melhor ou pior que a do antigo regime.

Dessa maneira, é impossível se revoltar contra algo que não pode avaliar pelo tempo.

Na câmara de tortura, a destruição do passado pessoal de Winston equivale à destruição do seu pensamento. O poder revolucionário do pensamento que o livro ressalta nem mesmo é mais o de mudar de idéia mas tão-somente o da evidência lógica que garante ao cidadão a posse de uma verdade, embora vazia. No caso de Winston, a evidência de um fato que o governo tenta esconder: a fotografia esquecida de um encontro entre três altos membros do Partido num dia em que eles estariam mortos, segundo a versão oficial do Estado. A foto é destruída; reaparece e torna a ser queimada e apagada da memória de quem a destruiu. “Não existe. Nunca existiu.” diz O’Brien. “Mas eu me lembro! Tu te lembras!” protesta Winston. “Não me lembro.” diz O’Brien.

Mas a invasão dos pensamentos individuais pelo órgão coletivo é operada contra todos os caracteres do pensar. Pretende-se destruí-lo tanto em seu caráter dedutivo como no de “ser amigo de si mesmo”. Amizade requer sinceridade.

Não mentir para si mesmo é a base da lucidez; não enganar a si próprio é o limite de segurança da sanidade; e não se contradizer é o que Sócrates define como o sustentáculo da ética. O sociopata é o tipo de hipócrita que mente para si mesmo e acredita nas próprias mentiras. “Sociopatia controlada é o sistema de pensamento que garante a permanência do regime onde a mentira é institucionalizada; somente assim o sistema permanece eternamente.” Totalitários em geral (comunistas, nazistas, islamistas) são pessoas de mentalidade sociopática. Em nome da ideologia, eles prostituem seus próprios pensamentos, violam sua consciência moral e enganam a si mesmos para que possam defender sua ideologia com toda a força da convicção, mesmo sabendo ser uma mentira. E ao mesmo tempo não sabendo. “Esse contorcionismo mental é a essência do duplipensar.”

São esses dois aspectos do poder-pensar, mostrados como vestígios de poder, que o protagonista tenta, a todo custo, preservar no dizer solitário para si mesmo:
“Liberdade é a liberdade de dizer que dois mais dois são quatro.”

A invasão da interioridade ao nível da vontade é operada como destruição do futuro. Em A Vida do Espírito, Arendt enfatiza essa relação entre vontade e futuro de muitos modos. O fato de 1984 ser também uma pérola da língua inglesa evoca a ênfase dada ao duplo sentido da palavra will. O querer é sempre voltado para o futuro. Ninguém quer algo no passado. No livro, há um momento em que o Partido percebe que Winston não pensa mais. Abandonou o passado. Contudo, será necessário evitar que Winston queira. Um subalterno que não pensa mas ainda quer continua sendo um entrave para o sistema totalitário.

Winston ama e quer Júlia, mas não ama nem quer o Partido. O fato de ainda sentir amor está atrelado ao futuro e ao querer. Trair é deixar de querer, é trair o futuro. Winston traiu Júlia no momento em que ele deixou de querer. Foi nesse momento que a sua vontade foi eliminada. No lugar do pensar e do querer, o Partido coloca o amor incondicional ao líder supremo, o Grande Irmão. Algo assim de natureza incondicional só é possível num ser que vive a eternidade no presente. Seria portanto uma espécie de trauma --- suspenso na memória e no tempo como algo iminente que é sempre postergado, um mal evitado pela salvação. Ou seja, o tipo de salvação que é o prêmio concedido pelo Partido a Winston por ter escolhido o pensamento certo, a emoção certa instintivamente, matando seu amor por Júlia para se salvar do seu pior terror.

Esse amor absoluto ao Grande Irmão, o Partido consegue impor mediante um ato de misericórdia também absoluta, que consistiu em não deixar acontecer o terror absoluto — ter a carne do rosto roída por ratos — que é o pior pesadelo de Winston desde sua infância, uma lembrança de algo abominável e intolerável, que ele jamais aceitou no pior momento de sua vida que foi a perda da mãe — a dor de algo tão profundo e secreto que ele escondeu essa neurose nas catacumbas de sua própria psique. E esse medo primal é arrancado das profundezas da sua mente pelo Partido e revelado a ele na sala 101, onde toda a verdade secreta vem á tona. Tal terror ocorre quando a presença do insuportável não está apenas ali diante dos meus olhos, com o som dos guinchos ferindo os ouvidos e o cheiro fétido inundando as narinas; mas quando o horror está em meus olhos, já dentro de mim. O insuportável para Winston era ser afetado de forma absoluta pela visão do tornar-aqui o ver sua mãe sendo morta ali, sendo roída por ratos.

Traído por um medo mais forte do que ele, o indivíduo tem sua psique agarrada num ponto crucial, que a partir daí é puxada pelo Partido e virada pelo avesso. É assim que o sistema totalitário consegue inverter a natureza humana e converter seu mais ferrenho opositor num fiel perfeito, movido pelo amor incondicional ao Grande Irmão.

“A natureza humana é infinitamente maleável.” informa a ele o inquisidor O’Brien.

“Nós vamos esvaziar sua alma e depois iremos te preencher com o que quisermos.”

Sem pensar e nem querer, Winston vira um objeto autômato que acredita no que lhe disserem, faz o que lhe mandarem, e “ama” incondicionalmente o seu salvador, que agora o possui de corpo, mente e alma. Um fiel perfeito.

Fontes:
ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito
ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro
ARENDT, Hannah. Totalitarismo, o Paroxismo do Poder. Uma Análise Dialética
HUXLEY, Aldous. Regresso ao Admirável Mundo Novo
ORWELL, George. 1984

Sugestão para dissertação temática:
Ideologia e Solidão
“Enquanto o isolamento se refere apenas ao terreno político da vida, a solidão se refere à vida humana como um todo. O governo totalitário, como todas as tiranias, certamente não poderia existir sem destruir a esfera da vida pública. Isto é, sem destruir, através do isolamento das pessoas, as suas capacidades políticas. Mas o domínio totalitário como forma de governo é novo no sentido de que não se contenta com esse isolamento, e destrói também a vida privada. Baseia-se na solidão, na experiência de não pertencer ao mundo, que é uma das mais radicais e desesperadoras experiências que o ser humano pode ter.” (Arendt. As Origens do Totalitarismo. Parte III: 244)
Autores: Ernesto Ribeiro e Israel Alexandria

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Um comentário:

  1. O teu texto e fantastico.e como ler um livro antigo que de tao bom a pessoa sempre le novamente para absorver coisas interressantes e que acrescentam sabedoria e criatividade.procurei saber mais sobre o livro 1984 por causa de uma Hq que tenjo com uma historia do DEmolidor em que ele e torturado por uma mansao com tecnologia "viva" e se lembra que foi "desse jeito que dobraram WInston SMith."muito sucesso e vida longa.MArcos PUnch.

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