Unitermos
Totalitarismo; modernidade;
tempo; poder; intimidade; subjetividade.
Análise
O casal Winston Smith e Julia
se apresentam como um par amoroso aos olhos onipresentes do Big Brother. Mas essa história de amor
heróico está longe de ser apenas mais um romance proibido.
Julia é um enigma. Em Julie ou La Nouvelle Heloise, Rousseau teria feito a descrição de uma mulher
angelical, a própria expressão da inocência e da virtude.
A Julia de Orwell não é
virtuosa. “Sou corrupta até os ossos” ela declara; longe de ser angelical, ela
é satânica; interpõe-se no caminho de Winston para seduzi-lo. Esta é morena, a
outra é loira. Teria Orwell baseado sua obra num antagonismo da Julia de
Rousseau?
O filme trata de uma moderna
invenção de um exercício do poder institucional, feita nos moldes de uma linha
de montagem: o totalitarismo. Uma forma de domínio em que o poder se institui
como fim e não como meio. Se Thomas Hobbes (1588-1679) e Hugo Grotius
(1583-1645) pudessem ter lido esse livro e considerassem a possibilidade da
ficção tornar-se real, provavelmente mudariam alguns aspectos de seus pontos de
vista sobre a política. O primeiro iria repensar se “A doutrina das linhas e
figuras não se interpõe a nenhuma ambição, proveito ou apetite humano.” (Leviatã, cap. 11).
O segundo talvez reconhecesse
a inutilidade de sua frase “Mesmo Deus não pode fazer com que duas vezes dois
não seja igual a quatro.”

A supremacia do Partido Único
(a contradição em termos), o Terror, a Polícia Secreta, a loucura
institucionalizada pelo desprezo pela realidade objetiva, a destruição de todas
as coisas boas e belas, incluindo a espontaneidade dos sentimentos e instintos
naturais. A idolatria a um líder adorado como um deus, e completamente mau. A
abjeta inversão de todos os valores, em que o povo é obrigado a amar apenas o
seu pior inimigo e a odiar e matar seus parentes mais próximos, caso estes se
afastem da ideologia dominante por um milímetro sequer.
É a definitiva distopia: a pior sociedade imaginável;
um pesadelo de dor, miséria, loucura e maldade. Um mundo onde as pessoas são
doutrinadas apenas em emoções negativas: medo
(do próprio ídolo), ódio (da própria
natureza humana), crueldade (com a
desgraça dos outros) e auto-degradação
(como prova de submissão). Enfim, é o mais próximo que o Ocidente chegaria
perto de se confundir com o Oriente em seus defeitos no regime totalitário do
Islã.
“Começa a perceber o tipo de mundo que estamos
criando? É exatamente o contrário das utopias que os antigos reformadores
imaginavam. Um mundo de medo, traição e tormento, um mundo de pisar e ser pisado, um mundo que se torna
cada vez mais impiedoso. O progresso em nosso mundo é o progresso no sentido de
maior dor. As velhas civilizações diziam-se fundadas no amor ou na justiça. A
nossa sociedade é fundamentada no ódio.”
“Você será (um fiel) perfeito. Nunca mais terá reações humanas normais. Todos os prazeres concorrentes foram destruídos. O instinto sexual foi extirpado. Abolimos o orgasmo. Já destruímos os instintos naturais mais básicos, até o desejo de preservar a própria vida ou as dos filhos. Cortamos os laços entre homem e mulher, entre pai e filha, entre irmão e irmã. Ninguém mais ousa confiar no marido, esposa, pai, filho, irmão ou amigo. Não haverá mais lealdade, exceto lealdade ao Partido. Não haverá mais amor, exceto amor e temor ao Grande Irmão.”
“Não haverá mais riso, exceto
o riso de vitória ante o inimigo caído. Nem arte, literatura ou ciência... Não
haverá sequer a diferença entre a beleza e a feiúra. Haverá apenas a Adoração
da Morte e a Obliteração do Ego. Se você quer uma imagem do futuro, pense numa
bota pisando um rosto humano — para sempre.”
Esse inferno de sofrimento e
injustiça, loucura e maldade é ilustrado em sua adaptação para o cinema inglês
no filme do diretor Michael Bradford, que estreou em 1984. O filme ilustra a
história de um paraíso invertido — em que a criação do primeiro homem é
substituída pela extinção do último homem. Tudo no filme é anti-paradisíaco.
Cenário e trilha sonora são inversões de paisagens e sons endêmicos.
Ateu moralista, George Orwell (codnome artístico de Eric Arthur Blair) fala pelo personagem Winston Smith (alter ego do autor e também uma homenagem ao heróico primeiro-ministro inglês Winston Churchill, também um ateu) contra as religiões.
Ateu moralista, George Orwell (codnome artístico de Eric Arthur Blair) fala pelo personagem Winston Smith (alter ego do autor e também uma homenagem ao heróico primeiro-ministro inglês Winston Churchill, também um ateu) contra as religiões.
Mais exatamente, contra a inversão moral provocada pelo fanatismo
religioso que leva uma mãe de família a deixar seus filhos morrendo de fome
para dar seu dinheiro a uma igreja, sob a ameaça de ir para o inferno se
desobedecer. Assim como os pagãos fenícios matavam seus próprios filhos mais
velhos por obediência a seus mestres imaginários, Abraão obedecia a seu Deus se
dispondo a degolar seu próprio filho sem hesitação.
O Islamismo leva ao homicídio
de todos os parentes mais próximos: são comuns assassinatos em família, por
pretextos torpes, quando um dos parentes se veste com roupas ocidentais, por
exemplo. No Islã, é cotidiano os fiéis muçulmanos matarem as próprias mães,
irmãs, esposas e filhas. Um imã chega a lançar um fatwa (ordem de assassinato típica de uma quadrilha da Máfia)
mandando matar o próprio filho porque ele abandonou a religião.
Isso é o que significa “Amar a Deus sobre todas as coisas.”
O fiel se dispõe a cometer todos os tipos de atrocidades monstruosas por medo
de cair em desgraça junto a seu ídolo, e assim ser condenado a penar no inferno
numa suposta vida após a morte.
Da mesma maneira, no filme O
Círculo Interno (1994) passado na União Soviética stalinista, uma mulher
pergunta ao marido: “Quem você ama mais? Eu ou Stalin?”
Ao que o homem responde: “Que
pergunta idiota! Stalin, é claro!”
É o que acontece ao final de
1984, quando o regime totalitário da Distopia consegue separar o casal
emocionalmente, fazendo um trair o outro pela ameaça daquilo que cada um mais
teme: para escapar do supremo horror, o indivíduo se rebaixa ao nível mais abominável,
nega seu amor á pessoa companheira, e passa
a amar o ídolo de poder (o grande Irmão, ou Deus) acima de todas as coisas.
“Deus é poder.” Assim diz o Inquisidor, e
assim repete Winston instintivamente, escrevendo sua primeira anotação após ter
concluído o processo de lavagem cerebral.
Considerada uma das maiores
pensadoras e teóricas do totalitarismo, a filósofa Hannah Arendt (1906-1975),
dizia que a estrutura do poder totalitário é semelhante á estrutura de uma
cebola. “Algo em cujo centro está o líder. O que quer que ele faça, ele o faz
de dentro.” E não de fora ou de cima,
como nos regimes absolutistas ou autocráticos, melhor representados pela
estrutura de uma pirâmide.
Estando no centro, o poder do líder afeta toda a sociedade como a própria fonte dos acontecimentos.
Estando no centro, o poder do líder afeta toda a sociedade como a própria fonte dos acontecimentos.
Toda a situação social é uma
mera conseqüência do poder central, e não o contrário.
Geralmente, é a cultura local de cada civilização que
molda a estrutura do poder.
Mas no Totalitarismo, ocorre o
inverso. A receita comunista já vem pronta e idêntica em todos os países onde
foi imposta. Da Alemanha á China, da Rússia á Cuba.
O paroxismo do poder não se
encontraria assim influenciado pelas tradições de pensamento do povo dominado.
Pois os mestres socialistas sempre impõem seu poder “de modo a reinventar o mundo,
em vez de entendê-lo” como ordenava Karl Marx.
O poder assim estruturado
protege os tiranos da “factualidade do mundo real”, estabelecendo a condição
para o exercício do poder em seu grau máximo. Se a partir deste locus entende-se que o exercício do
poder deve guiar-se pela máxima de que “tudo é permitido”, o entendimento a partir do centro de uma estrutura de
poder totalitário é o de que “tudo é possível” inclusive a criação de
admiráveis mundos novos.
Não por coincidência, Aldous
Huxley escreveu um livro inteiro de ensaios fazendo a comparação entre o
“totalitarismo benigno” de sua obra e o “totalitarismo maligno” de George
Orwell em Regresso ao Admirável Mundo
Novo. A diferença cardeal de fato era que no Poder Absoluto, tudo de ruim
acontece. Quanto á distopia de Arthur Blair, não é á toa que na sala 101
qualquer coisa podia ocorrer.
Não só o pensamento, mas
também a biografia da judia Hannah Arendt é interessante nesse contexto, pois a
ela agrega-se a história do seu primeiro amante alemão, o filósofo nazista
Martin Heidegger (1889-1976), cujo rosto parece-se com o do Big Brother (a
coincidência terá sido mera semelhança?).
Mas a alusão a Heidegger não deve ater-se apenas ao prosaísmo dessa semelhança, mas pelo fato dele, um filósofo, haver se filiado ao Partido Nazista e ter escrito uma obra — Ser e Tempo — que, de certa forma, contribui para pensar a questão do tempo enquanto ligado á questão do ser.
Mas a alusão a Heidegger não deve ater-se apenas ao prosaísmo dessa semelhança, mas pelo fato dele, um filósofo, haver se filiado ao Partido Nazista e ter escrito uma obra — Ser e Tempo — que, de certa forma, contribui para pensar a questão do tempo enquanto ligado á questão do ser.
Este é um objeto privilegiado
na tese orwelliana, conforme se pode notar pela ênfase reiterada da frase “Quem
controla o passado, controla o presente; quem controla o presente, controla o
futuro”.
Tomando por empréstimos algumas palavras em seu sentido heideggeriano, podemos afirmar que, em 1984, controle mental é controle da temporalidade. A destruição do vigor-de-ter-sido e do por-vir equivale à destruição da própria presença ao desumanizar o homem. Ao reduzi-lo á categoria de mero ente.
Tomando por empréstimos algumas palavras em seu sentido heideggeriano, podemos afirmar que, em 1984, controle mental é controle da temporalidade. A destruição do vigor-de-ter-sido e do por-vir equivale à destruição da própria presença ao desumanizar o homem. Ao reduzi-lo á categoria de mero ente.
A destruição totalitária vai
além da morte, pois nenhum poder-ser há para os indivíduos dominados. “Quando
vocês vão atirar em mim?” pergunta Winston. “Primeiro precisamos tornar você um
de nós.” Responde o Inquisidor do Partido. “Depois você mesmo virá nos pedir
espontaneamente para ser morto por seus crimes de pensamento.”
“Nada pertence ao indivíduo, exceto alguns
centímetros cúbicos dentro do crânio.” conclui Winston no início da história,
para ao final descobrir que nem mesmo isso é assegurado ao cidadão. Percebe-se
como, aos poucos, o Partido-Estado, que detém todo o controle da vontade,
aparece invadindo até mesmo a interioridade do pensamento e da vontade, os
únicos territórios que restam ao indivíduo num mundo em que tudo foi tornado
público e vigiado pelo poder central. Os nomes das instituições do Estado fazem
referência a esse investimento de controle total da interioridade:
“Polícia do Pensamento”
“Minutos do Ódio” “Ministério do Amor” etc.
A sala 101 é um enigma em
muitos sentidos. No entanto, é possível traçar aqui uma leitura condizente com
a nossa proposta de Curso de Filosofia Política.Poderíamos dizer, por exemplo,
que a sala 101 representa a intimidade do si mesmo. Este é o território de
origem da trindade freudiana Id – Ego – Superego. Território este que só pode
ser acessado pelo próprio indivíduo como a mais profunda verdade do Ser.
Consciente na vigília ou inconsciente nos sonhos, é na sala 101 que cada ser
humano tem seu espaço de caráter inviolável como num espelho para reconhecer a
si mesmo. Este deve estar protegido das intromissões alheias, tornando
justificável o direito á intimidade individual de estar só consigo mesmo. É o
que melhor se sente e se descreve como “conversar consigo mesmo” ou “ser amigo
de si mesmo”. É na privacidade desse diálogo mais íntimo que se assenta a
segurança do “não se contradizer”. Pois a verdade mais sólida para todo ser
humano é a de que “não se pode mentir para si mesmo.” Nenhuma pessoa lúcida
pode enganar a si própria. Pois é aí que entra o Estado totalitário para
perverter até mesmo essa regra e destruir a identidade própria de cada
indivíduo. Somente assim o sistema consegue criar o fiel perfeito.
Para decodificarmos o número
que representa esse espaço mental da identidade, devemos pensar em Blaise
Pascal, para quem o homem é um caniço pensante.
A imagem do número 101 é a de
um caniço e seu reflexo mediado por um espelho. Sendo assim, podemos concluir
que essa é a imagem que melhor sintetiza a questão da identidade em termos de
auto-imagem. Portanto, poderíamos ver na imagem 101 a imagem da alteridade
entre o eu e o si mesmo (alter ego) ou seja, a imagem do homem alienado de si.
Essa alteridade também poderia representar a relação indivíduo-Partido.
Tal relação é ilustrada no
discurso do inquisidor O’Brien: “O indivíduo é fraco, pois é sempre derrotado
pela morte. Mas se você deixa de ser você mesmo, se abandonar toda a sua
personalidade e se fundir com o Partido, então você é o Partido, e é invencível
e imortal.” Ou seja, a questão da identidade na distopia de 1984 é levada ao extremo da Obliteração
do Ego (um dos nomes da ideologia totalitária dominante nessa distopia) movida
pelo desejo de poder e por puro medo da não-existência após a morte. Esse é o
mesmo motor de todas as religiões. O que move o fiel, do mais moderado ao mais
fanático, é a incapacidade de aceitar o seu próprio fim definitivo. A
perspectiva de voltar ao nada é mais aterrorizante, esmagadora e deprimente do
que a própria idéia de sofrimento infinito e eterno. Para o espírito religioso,
é preferível penar no inferno eternamente numa existência deplorável do que
deixar de existir.
Na etapa final e decisiva da
conversão, o Partido ocupa a sala 101 de cada pessoa até que o indivíduo não
consiga mais se distinguir do Partido. É a mais profunda, radical e repugnante
invasão da intimidade, o clímax do totalitarismo que põe fim á alteridade. “As
outras tiranias tinham como mandamento ‘Tu Não Farás!’ Os outros totalitários
mudaram a ordem para ‘Tu Farás!’ O nosso comando é ‘Tu És!’ Nenhum desvio é
tolerado. O verdadeiro poder é sobre a mente humana. Não nos importamos só com
os teus atos. É com teus pensamentos que nos preocupamos. O poder absoluto é a
capacidade de despedaçar os cérebros humanos e depois remontá-los da forma que
melhor lhe interessar.”
Assim, o Partido tem o poder
de instalar-se no íntimo de cada indivíduo, e isso se dá porque a essência de
cada um é revelada nas câmaras de tortura e campos de concentração. O controle
da sala 101 revela o paroxismo do poder totalitário.
No que se deduz pelas palavras
de Arendt: “Se é verdade que os campos de concentração são a instituição que
caracteriza mais especificamente o poder totalitário, então deter-se nos
horrores que eles representam é indispensável para compreender o
totalitarismo.”
Numa visão arendtiana,
diríamos que esse controle da interioridade se processa em dois níveis: no do
pensamento e no da vontade. Para Arendt, todo pensar é um o que já foi pensado.
Pensar é profundidade. Pensamento é memória. Conhecimento é poder.
O controle do pensamento
equivale ao controle do passado. Nas ditaduras totalitárias (comunismo,
nazismo, islamismo) tenta-se controlar o passado todo o tempo. Esse é
precisamente o trabalho de Winston como funcionário do Ministério da Verdade
(que se ocupa de criar as mentiras e divulga-las como propaganda) de reinvenção
das notícias do passado, da destruição da memória social. “O cidadão dessa sociedade
é como um astronauta solto no espaço, sem gravidade e portanto sem noção do que
significa o lado de cima ou de baixo.” Não tem um valor de passado para sequer
fazer uma comparação; e assim não tem como saber se vive numa época melhor ou
pior que a do antigo regime.
Dessa maneira, é impossível se
revoltar contra algo que não pode avaliar pelo tempo.
Na câmara de tortura, a
destruição do passado pessoal de Winston equivale à destruição do seu
pensamento. O poder revolucionário do pensamento que o livro ressalta nem mesmo
é mais o de mudar de idéia mas tão-somente o da evidência lógica que garante ao
cidadão a posse de uma verdade, embora vazia. No caso de Winston, a evidência
de um fato que o governo tenta esconder: a fotografia esquecida de um encontro
entre três altos membros do Partido num dia em que eles estariam mortos,
segundo a versão oficial do Estado. A foto é destruída; reaparece e torna a ser
queimada e apagada da memória de quem a destruiu. “Não existe. Nunca existiu.”
diz O’Brien. “Mas eu me lembro! Tu te lembras!” protesta Winston. “Não me
lembro.” diz O’Brien.
Mas a invasão dos pensamentos
individuais pelo órgão coletivo é operada contra todos os caracteres do pensar.
Pretende-se destruí-lo tanto em seu caráter dedutivo como no de “ser amigo de
si mesmo”. Amizade requer sinceridade.
Não mentir para si mesmo é a
base da lucidez; não enganar a si próprio é o limite de segurança da sanidade;
e não se contradizer é o que Sócrates define como o sustentáculo da ética. O
sociopata é o tipo de hipócrita que mente para si mesmo e acredita nas próprias
mentiras. “Sociopatia controlada é o sistema de pensamento que garante a
permanência do regime onde a mentira é institucionalizada; somente assim o
sistema permanece eternamente.” Totalitários em geral (comunistas, nazistas,
islamistas) são pessoas de mentalidade sociopática. Em nome da ideologia, eles
prostituem seus próprios pensamentos, violam sua consciência moral e enganam a
si mesmos para que possam defender sua ideologia com toda a força da convicção,
mesmo sabendo ser uma mentira. E ao mesmo tempo não sabendo. “Esse
contorcionismo mental é a essência do duplipensar.”
São esses dois aspectos do
poder-pensar, mostrados como vestígios de poder, que o protagonista tenta, a
todo custo, preservar no dizer solitário para si mesmo:
“Liberdade é a liberdade de
dizer que dois mais dois são quatro.”
A invasão da interioridade ao
nível da vontade é operada como destruição do futuro. Em A Vida do Espírito,
Arendt enfatiza essa relação entre vontade e futuro de muitos modos. O fato de
1984 ser também uma pérola da língua inglesa evoca a ênfase dada ao duplo
sentido da palavra will. O querer é sempre voltado para o futuro. Ninguém quer
algo no passado. No livro, há um momento em que o Partido percebe que Winston
não pensa mais. Abandonou o passado. Contudo, será necessário evitar que
Winston queira. Um subalterno que não pensa mas ainda quer continua sendo um
entrave para o sistema totalitário.
Winston ama e quer Júlia, mas
não ama nem quer o Partido. O fato de ainda sentir amor está atrelado ao futuro
e ao querer. Trair é deixar de querer, é trair o futuro. Winston traiu Júlia no
momento em que ele deixou de querer. Foi nesse momento que a sua vontade foi
eliminada. No lugar do pensar e do querer, o Partido coloca o amor
incondicional ao líder supremo, o Grande Irmão. Algo assim de natureza
incondicional só é possível num ser que vive a eternidade no presente. Seria
portanto uma espécie de trauma --- suspenso na memória e no tempo como algo
iminente que é sempre postergado, um mal evitado pela salvação. Ou seja, o tipo
de salvação que é o prêmio concedido pelo Partido a Winston por ter escolhido o
pensamento certo, a emoção certa instintivamente, matando seu amor por Júlia
para se salvar do seu pior terror.
Esse amor absoluto ao Grande
Irmão, o Partido consegue impor mediante um ato de misericórdia também
absoluta, que consistiu em não deixar acontecer o terror absoluto — ter a carne
do rosto roída por ratos — que é o pior pesadelo de Winston desde sua infância,
uma lembrança de algo abominável e intolerável, que ele jamais aceitou no pior
momento de sua vida que foi a perda da mãe — a dor de algo tão profundo e secreto
que ele escondeu essa neurose nas catacumbas de sua própria psique. E esse medo
primal é arrancado das profundezas da sua mente pelo Partido e revelado a ele
na sala 101, onde toda a verdade secreta vem á tona. Tal terror ocorre quando a
presença do insuportável não está apenas ali diante dos meus olhos, com o som
dos guinchos ferindo os ouvidos e o cheiro fétido inundando as narinas; mas
quando o horror está em meus olhos, já dentro de mim. O insuportável para
Winston era ser afetado de forma absoluta pela visão do tornar-aqui o ver sua
mãe sendo morta ali, sendo roída por ratos.
Traído por um medo mais forte
do que ele, o indivíduo tem sua psique agarrada num ponto crucial, que a partir
daí é puxada pelo Partido e virada pelo avesso. É assim que o sistema
totalitário consegue inverter a natureza humana e converter seu mais ferrenho
opositor num fiel perfeito, movido pelo amor incondicional ao Grande Irmão.
“A natureza humana é
infinitamente maleável.” informa a ele o inquisidor O’Brien.
“Nós vamos esvaziar sua alma e
depois iremos te preencher com o que quisermos.”
Sem pensar e nem querer,
Winston vira um objeto autômato que acredita no que lhe disserem, faz o que lhe
mandarem, e “ama” incondicionalmente o seu salvador, que agora o possui de
corpo, mente e alma. Um fiel perfeito.
Fontes:
ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito
ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro
ARENDT, Hannah. Totalitarismo, o Paroxismo do Poder. Uma
Análise Dialética
HUXLEY, Aldous. Regresso ao Admirável Mundo Novo
ORWELL, George. 1984
Sugestão para dissertação temática:
Ideologia e Solidão
“Enquanto o isolamento se
refere apenas ao terreno político da vida, a solidão se refere à vida humana
como um todo. O governo totalitário, como todas as tiranias, certamente não
poderia existir sem destruir a esfera da vida pública. Isto é, sem destruir, através
do isolamento das pessoas, as suas capacidades políticas. Mas o domínio
totalitário como forma de governo é novo no sentido de que não se contenta com
esse isolamento, e destrói também a vida privada. Baseia-se na solidão, na
experiência de não pertencer ao mundo, que é uma das mais radicais e
desesperadoras experiências que o ser humano pode ter.” (Arendt. As Origens do Totalitarismo. Parte III:
244)
Autores: Ernesto Ribeiro e Israel
Alexandria
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O teu texto e fantastico.e como ler um livro antigo que de tao bom a pessoa sempre le novamente para absorver coisas interressantes e que acrescentam sabedoria e criatividade.procurei saber mais sobre o livro 1984 por causa de uma Hq que tenjo com uma historia do DEmolidor em que ele e torturado por uma mansao com tecnologia "viva" e se lembra que foi "desse jeito que dobraram WInston SMith."muito sucesso e vida longa.MArcos PUnch.
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