Questionada por um canal
televisivo, uma das organizadoras do movimento "Que se Lixe a Troika"
explicou que um Governo que não cumpre o programa eleitoral deve ser demitido,
pressuposto que tornaria inúteis quaisquer governos e, consequentemente,
quaisquer eleições. Aliás, suspeito que o objectivo não anda longe disso:
quando a seguir lhe perguntaram se defendia a marcação de
"legislativas" antecipadas, a senhora hesitou e, um bocadinho
contrariada, lá acabou por responder que "essa é uma das formas",
ainda que o importante seja atender à "vontade do povo". A senhora
esqueceu-se de descrever como é que a "vontade do povo" se expressa
na ausência de sufrágio universal, embora não custe imaginar que a coisa
passaria por um sumário processo "directo" que depositasse a senhora
e os heróis/amigos/primos da senhora no poder e merecidamente desprezasse os
escassos milhões de reaccionários que teimam em votar no PSD e no PS.
Não pretendo insinuar que os
milhares de participantes nas manifestações de ontem partilham esta curiosa
interpretação da democracia. Sucede que, ao participarem na folia, acabam por
legitimar as alucinações dos respectivos mentores. E as alucinações são
diversas.
Uma das mais bizarras está
explícita na designação daquilo. Mandar lixar a troika é um gesto nobre.
Infelizmente, é também um gesto estúpido, sobretudo quando não se parece estar
preparado para suportar as consequências da exclusão dos famosos mercados,
talvez do euro e, um épico dia, da União Europeia. Para já, enxotar a troika
equivale a abdicar dos empréstimos que mantêm isto a funcionar e, apesar dos
apertos, conferem ao País um simulacro de normalidade. Os manifestantes do
"2 de Março" (a profusão de datas "históricas" tende a
preencher o calendário inteiro) não pensam assim.
Na verdade, dificilmente se
pode dizer que pensem de todo. O "raciocínio", desculpem o exagero, é
o seguinte: na ausência da troika, a austeridade termina e Portugal, na prática
sem dinheiro para mandar cantar Stevie Wonder, fica teoricamente abonado e,
enquanto diminui os impostos, volta a apostar no "investimento
público", na "modernidade" e no "progresso social".
Dito de outra maneira, recuse-se o crédito, diminua-se a receita e aumente-se a
despesa, tese que para um leigo faz tanto sentido quanto doar uma prótese
dentária a um cadáver decapitado, mas que para os especialistas em economia que
desfilam pela ruas constitui a solução evidente. Meus caros, contas assim são
compreensíveis no cerebelo do sr. Arménio da CGTP, nos peculiares empresários
da CIP e nas medidas regeneradoras do dr. Seguro, não em cidadãos que se querem
responsáveis.
Ou se calhar não querem. Se
quisessem, antes da troika teriam mandado lixar os sujeitos que tornaram a
troika inevitável. Se quisessem, antes da austeridade marchariam contra o Estado
cuja preservação obriga à austeridade. Se quisessem, antes de berrar
lugares--comuns, reflectiriam no absurdo dos mesmos. O Governo é péssimo? Com
certeza, porque assalta os cidadãos a fim de garantir o statu quo de que os
cidadãos, pelo menos os que desfilam em protesto, não abdicam. Que, com os seus
defeitos, interesses e ilusões, a troika insista em patrocinar semelhante
manicómio não é um cataclismo: é um milagre. E, a prazo, provavelmente uma
inutilidade.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Diário de Notícias, 03-03-2013
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