Historiador avisa para os perigos da saída do euro e diz que o
federalismo europeu não é alternativa à troika
Que país é que vai sair da crise, que classifica como uma das maiores
dos últimos cem anos?
O país habituou-se a viver aos
altos e baixos, entre períodos de crescimento económico e períodos de recessão.
As recessões correspondiam como que a fases de dieta que eram ultrapassadas
rapidamente. Era como uma pessoa que, perto da época balnear, reparava que era
capaz de não ficar muito bem com o fato de banho, fazia uma dieta forçada,
conseguia uma figura que não o envergonharia na praia e, em Setembro ou
Outubro, voltava a engordar, e na Primavera pensava outra vez nessa questão. Em
2001, quando se sentiram as primeiras dificuldades, mudou-se o governo e
julgou-se que bastaria fazer uma pequena dieta, para depois voltar ao que era
antigamente. Ora, isso nunca mais resultou.
E neste momento já nos convencemos de que temos de ser vegetarianos ou
mais comedidos na alimentação?
Mais de dez anos de crise
habituaram-nos à crise. Isso não quer dizer que tenham sido criadas novas
expectativas - não foram. Ainda não descobrimos uma outra maneira de viver que
nos poupe aos altos e baixos e nos tire deste baixo prolongado onde estamos.
Por outro lado, a própria classe política nunca se adaptou à nova situação e
continua a fazer vida normal: se há um governo, é para derrubar. A troika chega
quando estamos em risco de ruptura de pagamentos, os partidos de governo assinam
o Memorando e, uns meses depois, estão a culpar a troika pela situação, e
depois estão a culpar o governo e as previsões do ministro das Finanças.
Estamos perante uma classe política que se encontra numa situação em que não
sabe o que fazer. Escolheu o caminho mais fácil, que é encontrar um bode
expiatório - neste caso, o governo. Paradoxalmente, esta mistificação só pode
durar se o governo continuar. A classe política precisa de que este governo se
mantenha para continuar a culpá-lo. É, obviamente, uma das maiores crises de
sempre, das mais prolongadas. Nunca em Portugal as pessoas foram tão
dependentes do Estado, o que faz desta uma crise que atinge toda a gente e
abalou o sistema político.
Se a solução não está na oposição, está na renovação da maioria ou de
um novo governo que nasça da maioria?
Não sei se isso é uma solução.
Essa é a ilusão que o próprio sistema nos cria. Precisamos de acreditar nisso.
Era bom que as coisas fossem tão simples. Não sei como classificar a ideia de
que todos estamos a ver as dificuldades e só o governo não está: mistificação,
ilusão, mito, lenda, fé... Esta ideia de que, por um golpe de magia, só as
pessoas que estão no governo é que não vêem aquilo que nós estamos a ver...
Mudar o governo não vai acabar com a crise.
Independentemente do governo, havia um menu de medidas acordado com a
troika. Hoje, já muitos, incluindo o PS, admitem que, dentro desse guião, o
caminho podia ter sido outro. Isto podia ter corrido de outra maneira, sem
tanta austeridade?
Não percebo qual a grande
margem de manobra que este governo tinha. Teve de negociar todas as medidas com
a troika. Dizer que estava livre para fazer o que quisesse é a negação da
realidade. Continuamos a viver nessa negação: o Memorando nunca existiu, José
Sócrates nunca existiu, o PS nunca assinou nada, este governo encontrou uma
situação próspera e pôs-nos nesta situação por capricho ideológico. Se é isto
em que querem acreditar, acreditem. Não sei é onde podemos chegar acreditando
nessas lendas.
Tanto faz o lugar que ocupa cada partido neste momento, a acção é
sempre a mesma?
Os partidos deixaram de ter
meios para aplicar políticas diferentes e a maneira de ultrapassar isso é
aumentar o ruído, acusar o outro de ter ideologia. A oposição, neste momento,
pode querer fazer crer que isto é uma questão ideológica, que se resolve com a
mudança de ideologia. Estamos a confrontar-nos com uma realidade excessiva para
nós, por isso criámos este enorme ruído, esta lenda urbana relativamente ao
neoliberalismo do governo e à sua enorme margem de manobra em 2011. É
reescrever a história de uma maneira desenfreada. E depois criou-se também a
mística das grandes manifestações. É preciso dizer que toda a população está
junta na rua contra o governo. É patético.
Estas manifestações também são uma mistificação, têm um cunho político?
São nitidamente organizadas
por sectores oposicionistas relacionados com os partidos da extrema-esquerda.
Basta dizer isso para ver que aquilo não é a base de nada. Há um
descontentamento, sim, mas quem está contente? A ideia de que há gente contente
é uma ilusão. Agora, onde é que está a alternativa? Se houvesse uma alternativa
mais fácil, ela teria sido já adoptada.
Em termos de governação, a incompreensão das pessoas não está
relacionada com a forma como muitas das medidas têm sido comunicadas?
É óbvio que as lideranças
fazem a diferença. Há líderes que suscitam confiança e afecto e, em situações
de crise, isso é ainda mais importante do que em situações normais. Resta saber
se temos um sistema político capaz de suscitar esse tipo de lideranças e a
confiança nelas. Uma coisa que resultou na nossa democracia foi um grande
processo de desgate das lideranças políticas. Criámos uma situação em que a
própria comunicação, por mais trabalhada que fosse, nunca funcionaria bem,
porque a nossa atitude é “nós não os queremos ouvir”. Neste momento, não estou
a ver como é que este ou outro governo poderia comunicar melhor.
A queda do governo pode solucionar alguma coisa?
Eu não estou a dizer que este
governo deve ficar lá para sempre e que não há no país ministros melhores do
que estes. O que digo é que a queda deste governo representaria, em primeiro
lugar, a destruição de uma maioria que, neste momento, sustenta no parlamento
um governo normal. A primeira dúvida era se seria possível refazê-la com outros
componentes. Uma queda deste governo que não fosse pela autodissolução da
maioria abria um precedente preocupante. Ficávamos a saber que, doravante,
bastaria parecer que as coisas estavam a correr mal para cair um governo. Os
riscos são muito grandes.
Entrevista do historiador Rui
Ramos a Luís Rosa e Rita Tavares, jornal “i”,
23-03-2013.
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