José Manuel Fernandes
Não, Paulo Ferreira não tem razão. Não, esta petição não
tem razão.
O que está em causa no convite
a José Sócrates não é o seu direito à palavra, a ser ouvido ou ao
contraditório. O que está em causa é que são precisamente esses princípios que
foram violados ao ser feito esse convite.
Primeiro que tudo: tem ou não
José Sócrates o direito à palavra? É óbvio que tem. É óbvio que não está a ser
silenciado por ninguém. Nem sequer foi alguma vez impedido de falar por
manifestantes. Tem estado calado porque optou por estar calado. Foi para longe
porque optou por ir para longe. Não deu entrevistas nestes dois anos porque não
quis. Ou, pior porventura, porque não encontrou ninguém que aceitasse as
condições que se habituou a impor cada vez que era entrevistado. É que convém
recordar que José Sócrates, enquanto primeiro-ministro, sempre impôs condições.
Houve órgãos de informação a que nunca deu nenhuma entrevista, outros onde o
vimos pronunciar-se longamente face a entrevistadores que pareciam mais
preocupados em não ser incómodos do que em ser pertinentes. Vimo-lo escolher
sempre o terreno em que queria aparecer, prejudicando os órgãos de informação
mais críticos e beneficiando os que eram mais próximos, para não dizer mais.
Estou certo que se José Sócrates quisesse, ou aceitasse, todos – mas mesmo
todos – os órgãos de informação portugueses o entrevistariam amanhã. Ou até
mesmo hoje. Mas isso ele não aceita. O que aceitou é um espaço sem
contraditório. Exactamente: um espaço sem contraditório, pois é isso que são os
espaços que os políticos ocupam à pala da ideia de que fazem comentário
político. É por tudo isto que citar Voltaire, como fez Paulo Ferreira
– jornalista que considero e de quem sou amigo – é mais do inapropriado, é um
sinal de falta de norte.
Mas há outro ponto muito
importante. Aparentemente a RTP, além de achar que ele tem direito a palco
especialíssimo para “ter direito à palavra”, também entende que ele é uma
pessoa qualificada para fazer comentário político. Eu bem sei que é uma
originalidade portuguesa considerar que os políticos são os melhores
comentadores políticos, o que é um sinal do nosso endémico subdesenvolvimento e
atraso cultural, mas gostava de saber o que qualifica José Sócrates como
comentador político. De alguém que analise a situação política espera-se
distância e um mínimo de independência, duas coisas que não só José Sócrates
não tem, como aparentemente a RTP não quer que ele tenha, pois está sobretudo
preocupada em dar-lhe a palavra, aparentemente para vir defender o seu
extraordinário legado. Acha a RTP e acham os assinantes (significativamente
muito poucos) da petição a favor. Mas convenhamos que, do ponto de vista
jornalístico, estamos perante uma novidade, quiçá uma inovação de carácter
universal: o comentário político deixa de ser um espaço onde se quer ajudar os
cidadãos a compreender o que se passou e o que pode vir a passar-se, passa a
ser uma espécie de tribuna livre de ex-governantes desejosos de, nos seus
próprios termos, retocarem as suas imagens públicas. Ainda se poderia discutir
o interesse de um espaço de debate entre políticos com a presença de José
Sócrates, como ele teve no passado pela mão amiga e cúmplice de Emídio Rangel
(ou como tem Morais Sarmento na Renascença), mas não é disso que
estamos a falar. Aquilo de que estamos a falar é de um espaço de propaganda,
como se depreende da própria argumentação que defende o alegado “direito à
palavra e ao contraditório”, um espaço que vai muito mais longe na violentação
dos princípios do jornalismo do que outros espaços de comentário, equívocos e
híbridos, que existem espalhados pelos vários canais televisivos. Acho que não
é preciso fazer um desenho para explicar as diferenças…
É, por fim, curioso ver como
alguns jornalistas se mostraram quase entusiasmados com este regresso. Em
condições normais, ou de um mínimo de sanidade mental, os jornalistas estariam
a defender a diferença entre realizar entrevista a um político, onde os
entrevistadores devem colocar as questões difíceis e conseguir as cachas porque
sempre procuram, e um palco sem contraditório. Muitos, percebi, deliciam-se com
as intrigas que tal espaço poderá gerar, como se o dever dos jornalistas não
fosse informar, esclarecer, perguntar, investigar, antes fosse o de intrigar.
Esta perspectiva umbiguista leva-os a antecipar um êxito de audiências. Eu
antecipo o contrário, pois não há nada que o povo aprecie menos neste momento
do que intrigalhadas.
Quanto à RTP, mostrou que
continua a ser a RTP de sempre, capaz de corromper a lucidez e turvar o
raciocínio mesmo dos mais experientes. A solução não é a esquecida
privatização: é a extinção. Noutros tempos até se salgariam as terras que
pisou…
(Como é público, tenho a pior
opinião possível de José Sócrates como político, como governante e como pessoa.
Mas não fiz qualquer consideração política nesta argumentação. É que, como
jornalista, até como jornalista que não gostava da política do
primeiro-ministro, sempre quis entrevistá-lo e dar-lhe a palavra, algo que ele
sempre recusou, anos a fio. O que nunca me passaria pela cabeça era pedir-lhe –
a ele ou a qualquer outro político – para vir ocupar as colunas nobres de
análise e comentário político, espaços jornalísticos por excelência. Até porque
esses espaços, equivalentes ao que a RTP agora lhe dá, são distintos dos
espaços das tribunas de opinião onde, aí sim, pode haver espaço para políticos,
mas com conta, peso e medida.)
Texto: José Manuel Fernandes, Blasfémias,
22-03-2013
Título: JP e JMF
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