Brinque de demonizar a
política e a democracia quem quiser, quem achar conveniente. Eu continuarei a
me ater à lógica. Vamos ver. Gene Sperling, conselheiro econômico da Casa
Branca, afirmou a um site que o governo não negociará com os republicanos
enquanto houver a possibilidade, chamada por aí de “ameaça”, de um calote da
dívida do país. Se a elevação do endividamento público não for aprovada até o
dia 17, o país poderá decretar o “default” (calote) de parte das dívidas.
A lei não permite que o
presidente da República eleve esse limite por conta própria. É preciso contar
com a anuência do Congresso. Se é, a administração federal precisa entrar num
acordo com o Poder Legislativo. Se precisa, não há de ser um mero ato homologatório.
Se não é apenas homologatório (fosse, por que haveria a exigência anuente?),
então tem de ser uma negociação. Se há uma negociação, uma parte não pode ter a
ambição de impor à outra a sua própria condição. Se o fizesse, então a parte
anuente perderia, por óbvio, o seu poder de anuência.
As pessoas, muito
especialmente a imprensa brasileira, podem odiar os republicanos pelos motivos
que lhes der na telha — entre eles, a jequice e coisa e tal —, menos por
deterem uma prerrogativa que não roubaram de ninguém, mas que lhes foi dada
pela institucionalidade do país. A propósito: sempre que brasileiros atacam os
“jecas americanos”, penso em Monteiro Lobato. Sempre que brasileiros atacam os
jecas americanos, penso em como se dão as “negociações” em Brasília. Sempre que
brasileiros atacam os jecas americanos, penso em como se formam os partidos
aqui. Quem vive de cócoras, já que é para lembrar o Jeca, não são os
americanos.
Que se note: não estou
endossando a tática dos republicanos — até porque Obama está faturando, posando
de coitadinho e de vítima da intransigência; justo ele, o que não negocia. O
ponto é outro: há uma diferença enorme entre ser contra a escolha feita e
atacar um dos fundamentos da independência entre os Poderes. É claro que, se
houvesse PMDB e PSD nos EUA, as coisas não seriam assim, certo? A aprovação do
limite da dívida teria um preço, e tudo andaria aparentemente bem.
Com o regime que os americanos
têm, eles fizeram aquele país atrasado, com as piores universidades do mundo,
com um povo dependente da caridade oficial. Com o regime que temos, nós fizemos
essa potência, ponta de lança da ciência e do desenvolvimento, com uma
população autônoma, certo? É isto: o que falta aos EUA é ter o regime político
brasileiro, onde a autonomia do Congresso jamais é exercida, mas vendida, em
nome das virtudes da democracia. Tenham paciência!
De resto, a gritaria existe
porque é Obama. Fosse George W. Bush o titular da Casa Branca, e os democratas
estivessem no lugar dos republicanos, a democracia americana estaria a ser
cantada em prosa e verso. Ou não é verdade que o Bush que depôs Saddam era um
cretino, mas o Obama que entregou a Líbia às milícias jihadistas é um amante da
democracia? Ou não é verdade que o máximo da crítica a que se permitem os cultores
da seita obamista é o fato de ele não ter atacado a Síria, já que suas bombas,
à diferença das de Bush, teriam um poder humanista e libertador, ainda que
fossem entregar o país à Al Qaeda?
Meu ponto, nesse caso, é de
princípio. Os republicanos foram eleitos pelo povo americano, como Obama. Eles
integram o Parlamento dos EUA, como os democratas. Quem lhes deu a maioria da
Câmara foi o mesmo sistema que legitima o poder do presidente da República. Se
o modelo impede o chefe do Executivo de agir unilateralmente na questão, deve
haver motivos. Algum compromisso se espera que o Legislativo arranque do
Executivo. Como não serão os aliados a impor limites à Presidência, haverá de
ser a oposição.
“Ah, mas assim o sistema
para…” Pois é. Ao longo dos anos, forças políticas as mais diversas tiveram os
argumentos igualmente os mais diversos para jogar no lixo a democracia. E um
dos mais fortes é justamente este: nem sempre esse regime é a escolha mais
racional. No que concerne a alguns objetivos específicos, é mesmo verdade. Se
alguém tiver alguma ideia melhor, esta é a hora de sugerir…
Título e Texto: Reinaldo Azevedo, 07-10-2013
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