Fernando Gabeira
Na cadeia se diz: aqui o filho
chora e a mãe não ouve. Na política a expressão é outra: a situação está de
vaca não reconhecer o bezerro. Ambas denotam uma crise, pela suspensão do amor
materno, e revelam um certo desamparo, um mundo de ponta-cabeça.

Marina Silva lançou a ideia de
salvar Dilma Rousseff dos políticos fisiológicos, evitando que deles se torne
refém. Não ficou muito claro para mim. Passa a ideia de uma donzela imaculada
assediada por experientes chantagistas, como se o governo não fosse também um
fator decisivo nesse processo. Onde a proposta de Marina sugere dependência,
vejo uma interdependência. Se consideramos o governo refém da fisiologia, é
preciso reescrever a história do mensalão, isentando o partido do governo de
sua maior responsabilidade.
Também não entendi, no front
político-cultural, a defesa da autorização prévia de biografias. Tantas pessoas
queridas, entre elas Caetano Veloso - a quem tenho gratidão - embarcam num
equívoco por falta de um debate mais amplo.
Para começar, a importância
das biografias em nossa formação. Pela trilogia de Isaac Deutscher sobre
Trotsky muito se aprendeu sobre a Revolução Russa e os bolcheviques. Sem
Rüdiger Safranski não teríamos uma história equilibrada da vida de Martin
Heidegger, sem Robert Skidelsky não conheceríamos a vida de lorde Keynes. É um
território delicado, pois sem as biografias não conheceríamos a vida de Mao
Tsé-tung, nem os pecados dos nossos políticos - que certamente iriam
aproveitar-se desses dois artigos inconstitucionais que determinam autorização
prévia para publicação de biografias.
Os argumentos também foram
defendidos de forma ambivalente. Na maioria das vezes, falava-se em defesa da
privacidade. Mas, em outras, surgia a questão do dinheiro, da falsa suposição
de que biografias no Brasil rendem fortunas. O artigo de Mário Magalhães
contando suas dificuldades para biografar Carlos Marighella é muito mais
próximo da realidade, pois revela como ele gastou dinheiro do próprio bolso
para completar o seu livro.
Quando surgem de um mesmo
núcleo a defesa da privacidade e demandas financeiras, cria-se a falsa
impressão de que são intercambiáveis. Quanto custariam, por exemplo, os
detalhes da relação com a cunhada numa biografia de Sigmund Freud?
De um ponto de vista existencial,
os admiradores dos grandes artistas que participam do movimento ficam
preocupados com um debate biográfico. Ainda esperamos deles tantas canções,
tantos espetáculos, tantas aventuras políticas, tantos amores... Quem sabe o
melhor não virá nos últimos capítulos, nos anos ainda não vividos?
Nas ruas, os black blocs de
uma certa forma conseguiram propagar a violência. Isso só é possível por falta
de uma certa cartilagem tecida pela política. Tudo vai direto ao osso, termina
em incêndio e pancadaria.
Historicamente, essas ondas de
violência levam a leis mais rígidas e mais repressão. Quem vem de longe tem o
dever de lembrar isso. Mas leis mais rígidas não resolvem sozinhas. O sistema
político no Brasil precisa recuperar o mínimo de credibilidade e o sistema
repressivo, desenvolver o mínimo de inteligência e capacidade de análise.
No passado os políticos
metiam-se no meio dos conflitos com a disposição de atenuá-los. Hoje fogem dos
conflito com medo justificado de apanhar da multidão. O Congresso foi incapaz
de produzir um debate sobre a violência nas ruas. A sensação é de que as
raposas políticas aceitam a explosão de violência porque sabem que ela os
ameaça menos que os grandes protestos de massa. Na verdade, ao inibir
potenciais manifestações pacíficas os black blocs criam uma camada de proteção
útil ao político que se aproveita da confusão para seguir sendo o que é.
O mundo está mesmo virado. Os
black blocs consideram-se revolucionários. E no momento em que poderosos
instrumentos internacionais devassam a privacidade de bilhões de pessoas, nosso
tema central é a biografia de pessoas famosas.
A defesa do aumento do consumo
como o único valor político moral nos levou a esse abismo. A gente não quer só
comida. Os artistas têm um grande papel na superação dessas ruínas, sobretudo
as de Brasília. Grandes momentos nos esperam e Chico Buarque foi bastante
simples ao dizer: "Se a lei é esta, perdi".
A lei é a Constituição. Se não
for essa, teremos perdido nós. Não deixarei de lamentar uma contradição tão explícita
entre a sentença e um dos seus artigos essenciais: o que prevê a ampla
liberdade de expressão.
No momento, o filho chora e a
mãe não ouve, a vaca não reconhece o bezerro. É a crise. Suspensa a presença
materna, temos de enfrentar uma certa solidão na busca pela saída. O caminho
será encontrado via diálogo, mas sem a ilusão de considerar o governo refém da
picaretagem. Foi o governo, em sua estreiteza e seu materialismo vulgar, que
acabou provocando essa crise: a galinha aterrissou do voo econômico e só
cacareja no chão suas previsões otimistas.
Estamo-nos acostumando com as
chamas urbanas. Uma pedrada aqui, um coquetel molotov ali, produzimos uma
rotina burocrática, sintonizada com o pântano político. Nos fronts político,
social e cultural o alarme está soando há algum tempo. Conseguimos sobreviver a
uma longa ditadura militar. Será que vamos capitular diante de um governo que
distribui cestas básicas e Bolsas Família?
O País foi moralmente arrasado
pela experiência petista e de todos os cafajestes que o governo conseguiu
alinhar. Predadores oficiais e predadores de rua se encontram nessa
encruzilhada em que um profundo silêncio político se abate sobre nós, com
exceção de vozes isoladas.
Precisamos reaprender a
conversar, reafirmar valores políticos que não se resumem a casa e comida.
Precisamos viver a vida, cuidar mais da bio que da grafia. Precisamos sair
dessa maré.
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