segunda-feira, 3 de março de 2014

Outros tempos


Luís Naves
Alguns textos de opinião que tenho lido sobre a crise ucraniana mostram como a nossa imprensa se tornou provinciana, após anos de dedicação a pequenos escândalos triviais. Fazendo elaborados paralelos históricos, um autor definia como "nacionalista jugoslavo" o homem que matou em Sarajevo o arquiduque Francisco Fernando da Áustria-Hungria (parei a leitura naquele ponto). Outros autores, numa estranha lógica, culpam a Alemanha ou a Europa pela crise. Nos blogues, há sobretudo quem descreva os ucranianos como “escumalha fascista”, terminando a prosa com hinos ao glorioso exército vermelho. Há ainda o culpado Barack Obama, por inacção (devia enviar porta-aviões para o Mar Negro).

O contexto histórico é importante nos conflitos, mas facilmente se cede à tentação de ver nos protagonistas autómatos que obedecem de forma cega aos fantasmas do passado. A Rússia está a ter um comportamento anacrónico, talvez tenha cometido um erro, mas as coincidências deste caso com a crise de 1914 resumem-se a dois algarismos. O único império com tiques do século XIX é mesmo a Rússia e não existem alianças que permitam um conflito ou o entusiasmo popular por uma luta. As analogias com a Grande Guerra são exercícios intelectuais que apenas ajudam a ver as diferenças.

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Com o divórcio litigioso, os ucranianos poderão completar a revolução pós-comunista e juntar-se às democracias parlamentares do ocidente. Têm esse direito. Quem associa os manifestantes de Kiev a um bando de fascistas esquece que a União Europeia tem critérios exigentes na adesão de novos membros, critérios que não dispensam um lento processo de aproximação. Se os fascistas estivessem no poder, ou sequer perto, a esperança de adesão seria nula e o país ficaria isolado. Como aconteceu na Polónia ou na Hungria, que eram mais desenvolvidas, a transição na Ucrânia levará pelo menos 20 anos e a simples adesão dez anos.

Quanto às culpas da Alemanha, é curioso que um país com democracia exemplar, estado social modelo e comportamento pacífico, a tender para a neutralidade, seja sistematicamente diabolizado.

O que parece escapar aos comentadores é o facto de vivermos num tempo invulgarmente pacífico e nenhuma das potências ter qualquer interesse em provocar um conflito de grandes dimensões. A afirmação é ainda mais válida para os europeus, cujas acções de polícia não contam para este campeonato. Sendo uma organização pós-imperial com funcionamento inovador, a UE tornou-se numa referência para povos que vivem sob regimes autoritários. Isto, claro, nunca será discutido nas eleições europeias que se avizinham, pois os nossos debates são sempre sobre a minúcia saloia.
Título, Imagem e Texto: Luís Naves, 03-03-2014
Grifos: JP 
Leia o artigo completo em O Fragmentário.

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