Rui Ramos
O piano de Varoufakis no Paris
Match não traduz apenas o piscar de olho do radicalismo ao jet set. Reflecte
também o deslumbramento da burguesia pelas modas radicais.
As duas sensações políticas da
semana, além do desaparecimento de Putin, foram o piano de Varoufakis e as
cozinhas de Miliband. O ministro das finanças do Syriza exibiu-se ao Paris
Match como um novo-rico de telenovela mexicana: casa com vista
privilegiada, piano, e um já lendário vinho branco. Pelo contrário, o líder do
Partido Trabalhista britânico, Ed Miliband, fez-se fotografar numa cozinha
apertada, a lembrar as dos alojamentos sociais. Acontece que a casa de
Miliband, avaliada em cerca de 3 milhões de euros, tem outra cozinha. A da
fotografia era apenas a kitchenette de apoio.
A revelação dos luxos de
esquerda proporciona quase sempre pequenos exercícios de censura moral, do
género “eis como vivem os supostos defensores dos pobres”. É uma rotina antiga,
de que as primeiras vítimas foram os padres católicos, regularmente
repreendidos por viverem acima do desprendimento evangélico. Percebe-se assim
que Milliband, um social-democrata, esconda a cozinha grande da sua casa
milionária. Mas porque é que Varoufakis, agora um radical, se expôs como uma
espécie de anti-José Mujica? Só para depois ter de pedir desculpa? Em tudo o
que diz respeito a Varoufakis, nunca devemos subestimar o narcisismo
provinciano. Mas talvez o melhor seja tentar perceber se este tipo de
lapso de luxo pode servir a causa da esquerda radical.
E sim, pode servir. Os
cidadãos de quem, numa democracia liberal, dependem os votos e as opiniões
horrorizam-se naturalmente com um barbudo dos desertos levantinos que empurra
estátuas nos museus e provavelmente tem outros gostos duvidosos. Mas um radical
que toca piano e fala inglês? O filho de uma família abastada, que ensina numa
universidade americana e usa cachecóis Burberry? A burguesia vê Varoufakis, e
interroga-se: mas é um dos nossos, como é que podem dizer que é perigoso?
Este foi sempre um jogo que os
extremismos praticaram com mais ou menos ironia, mas sempre muito
calculadamente. Álvaro Cunhal arranjou uma aura de cavalheiro e de sedutor, que
justificava o circo de fascínio burguês à sua volta. Em Itália, o líder
comunista Enrico Berlinguer ainda era melhor: era um nobre da Sardenha, com
direito ao título de “cavaliere”, dado à sua família no século XVIII
(hoje em dia, quando os títulos académicos substituíram os nobiliárquicos, o
equivalente é a admiração pela cátedra de Varoufakis).
Mas o piano de Varoufakis no Paris
Match não traduz apenas o piscar de olho do radicalismo ao jet set.
Reflecte também o deslumbramento da burguesia pelo radicalismo quando este
parece estar na moda. Foi Tom Wolfe quem inventou a expressão “radical chic”,
num ensaio de 1970 onde descreve a “alta sociedade” de Nova Iorque a dar festas
aos Panteras Negras, um grupo armado radical. Tom Wolfe viu os Panteras, de
cabedal e óculos escuros, a serem servidos por criados de uniforme nos grandes
salões da sociedade elegante, entre vedetas mediáticas, intelectuais da moda e
herdeiras da velha aristocracia. Wolfe explicou a causa sociológica
desta curiosa mistura. Na década de 1960, uma nova camada de milionários
chegara a Nova Iorque. Vinham da nova indústria da cultura. Precisavam de
afirmar-se, mas também de se distinguirem. A ligação à esquerda radical serviu-lhes
precisamente para isso. E foi assim que revolucionários armados se
tornaram convivas de milionários.
Não estou a dizer que o
radicalismo é a única doença infantil da burguesia. Os ricos, os poderosos e os
remediados mostraram-se, ao longo das décadas, disponíveis para todas as
inclinações: houve-os jacobinos, fascistas, comunistas, sociais-democratas,
liberais, conservadores, reacionários. Quem luta constantemente pela distinção
social deve estar preparado para abraçar qualquer ideologia, logo que esteja na
moda. A revolução francesa, no momento em que esteve em voga, recrutou até
um “príncipe de sangue”, o duque de Orleães (convertido em Philippe Égalité, o
que não o poupou à guilhotina).
Mas a questão mais
interessante não é essa. A questão é a de saber o que é que imuniza alguém
contra o esquerdismo radical. Segundo os esquerdistas, é o piano e o vinho
branco. Por outras palavras: só os interesses e confortos pessoais
impediriam alguém de reconhecer a razão do radicalismo. Se prezamos a
democracia pluralista e defendemos a liberdade económica, não é por causa do
valor que lhes damos, mas apenas porque desejamos guardar, muito egoístas,
o que o “sistema” nos deu.
Para os radicais, é muito
importante rebaixar as razões dos que se lhes opõem até ao nível do simples
apego às possessões materiais, onde ainda pega a velha culpa cristã. Acontece
que, como Varoufakis demonstra, o esquerdismo radical é perfeitamente
compatível com o piano, o vinho branco e a casa com vista para a Acrópole. O
património, só por si, não basta para vedar o caminho ao radicalismo. É preciso
mais, como seja a convicção, adquirida por estudo ou intuição, de que
os radicais esquerdistas atacam modos de vida, como os defendidos por
sociais-democratas ou por conservadores liberais, que são muito mais eficientes
na produção de riqueza e na atenuação das desigualdades do que a “alternativa”
que o radicalismo pretende impor. Varoufakis precisa do piano para nos
convencer; nós não precisamos do piano para não nos deixarmos convencer.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
16-3-2015
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