Rafael Marques de Morais
Chamavam-me de maluco! Também me apelidaram de “frustrado”, “antipatriota”, “agente da CIA”, “vendido” e “traidor”.
Suportei uma longa e espinhosa
perseguição política e incontáveis cenas com a polícia.
Tive de enfrentar campanhas de
difamação, privações econômicas e isolamento social.
Fui levado a julgamento por
ter denunciado a corrupção e as violações dos direitos humanos perpetradas por
eles.
Mas quem são “eles”? Eles são
os membros do regime de José Eduardo dos Santos (JES): os indivíduos que
usufruíram e foram cúmplices do regime de JES. São eles que personificam a
corrupção institucionalizada, a captura do Estado, a repressão e o medo que
prevaleceram em Angola ao longo dos 38 anos em que Dos Santos se manteve no
poder.
Em setembro de 2017, João
Lourenço – o homem que JES escolheu para lhe suceder – foi eleito presidente, e
decidiu que a podridão era demais, sendo imperioso acabar com a corrupção
generalizada. Em consequência, dentro do seu próprio partido dominante, o MPLA,
uma série de bandidos de elevado perfil e com altas patentes estão finalmente a ser responsabilizados, depois de décadas a saquear o país com total impunidade. E é assim que nem a família de JES se escapa, com José
Filomeno dos Santos na cadeia desde há seis meses, por ter desviado milhares de
milhões de dólares do Fundo Soberano.
O MPLA é, desde a
independência em 1975, o partido único no poder.
Ironicamente, aqueles que me
difamam, atacam ou ridicularizam por manter a minha luta contra a corrupção,
agora chamam-me de “amigo do presidente”.
Antes de passar a explicar
porquê, gostaria de sublinhar o quão ciente estou de que o Oslo Freedom Forum funciona como espaço de inspiração criado para
os dissidentes. Porém, desta vez, não venho como dissidente que queira
partilhar a história de um regime persecutório, que me assediou e atacou.
Em vez disso, estou aqui para
partilhar uma esperança, para vos falar sobre a janela de oportunidade de
mudança que talvez se tenha aberto num regime africano aparentemente
intratável.
A 4 de dezembro do ano
passado, reuni-me com o presidente Lourenço durante uma hora. O presidente começou por pedir
publicamente desculpas – perante todos os jornalistas que ali se encontravam
para registar o acontecimento – pelo incidente que acontecera na véspera.
Juntamente com outros membros de uma delegação da sociedade civil, eu fora
convidado para um encontro com o presidente, porém a minha entrada seria
recusada pelos funcionários do palácio. Fui posto de parte,
impedido de honrar o convite pessoal do presidente para me encontrar com ele.
De alguma forma, para certos
membros do regime do MPLA, eu ainda era o inimigo número um. O facto de o
presidente me ter chamado e estar disponível para colaborar comigo nos temas da
corrupção e das violações dos direitos humanos desagradou a muita gente.
Aos beneficiários do anterior
regime surpreende-lhes que o presidente denuncie a ganância dos seus próprios
pares. Os camaradas de partido capturaram o Estado para seu proveito, e estavam
convencidos de que poderiam controlar o novo presidente, mantendo o status
quo. Porém, agora veem-no agir como um agente provocador.
O presidente Lourenço incitou-me
a prosseguir com o meu trabalho de denúncia da corrupção e a remeter as provas
relevantes para a Procuradoria-Geral da República, de modo a gerar
investigações formais, bem como a atuar como sempre fiz, no sentido de
contribuir para incutir a ideia do Estado de direito nos cidadãos e de expor a
corrupção. Saí da reunião incentivado para fazer um trabalho ainda melhor. O
aparelho de Estado deixará de ser um obstáculo. Trabalharei em paz.
Desta vez, aqui no Oslo
Freedom Forum, os meus amigos já não podem meter-se comigo por eu estar sempre
em tribunal, como aconteceu nos últimos três encontros em que participei.
Há dias ajudei uma família
enlutada a entregar uma carta ao presidente da República, em protesto pelo facto de o presidente ter promovido a elevados cargos e posições dentro do
Serviço de Investigação Criminal (SIC) dois homens conhecidos pelos seus atos
hediondos de tortura: o comissário Fernando Manuel Bambi Receado e o subcomissário
Lourenço Ngola Kina.
Em Dezembro de 2015, estes
dois homens tomaram parte ativa na tortura de um cidadão angolano chamado João Alfredo
Dala. Durante um violento interrogatório que se prolongou por quinze horas
ininterruptas, chegaram ao ponto de mutilar os órgãos genitais de João Dala. A
vítima morreria algum tempo depois, em consequência direta dos ferimentos que
sofreu, conforme comprovado pela autópsia.
Já antes eu tinha abordado
este tema com o presidente. Segundo ele, antes de promover os referidos
facínoras, não recebera qualquer informação que sugerisse esse tipo de
comportamento, e nenhum dos membros do Conselho de Defesa e Segurança alguma
vez expressou reservas quanto à elegibilidade daqueles homens para a promoção.
O diretor de gabinete da
Presidência reuniu-se com a Família de João Dala e recebeu pessoalmente a
carta. Quando os familiares enlutados o informaram de que pretendiam tornar
pública aquela carta, o diretor de gabinete encorajou-os a fazerem isso mesmo,
e prometeu que em breve receberiam uma resposta oficial.
Bem, em 2017, quando
publiquei Os Campos da Morte: Relatório sobre Execuções Sumárias em Luanda, 2016-2017,
no qual expus os sistemáticos assassinatos extrajudiciais levados a cabo por
agentes do Serviço de Investigação Criminal, o presidente Lourenço ordenou que
se criasse uma comissão de inquérito. Foi-me atribuída a tarefa de organizar o
espaço para que a comissão ouvisse as vítimas sobreviventes, as testemunhas, os
familiares, cuja presença eu tive de garantir e financiar.
Foi um significativo passo em
frente. No entanto, ainda hoje aguardo o desfecho oficial desse caso, e começo
a ficar impaciente.
Ao longo de muitas décadas, o
regime Dos Santos apoiou-se na estratégia de dividir para reinar, como aliás
acontece em muitas outras cleptocracias. Em torno do presidente, gerou-se uma
conspiração para enriquecer aquela elite presidencial, a qual se empenhou em
instilar o medo no seio da população. Muitos dos beneficiários do antigo regime
procuram agora angariar apoio dentro do partido reinante para resistir ao
esforço do presidente Lourenço na luta contra a corrupção.
Por todo o lado se diz que
ninguém, nem mesmo o atual presidente, tem as mãos suficientemente limpas para
poder criticar os outros.
Há quem não acredite que o
presidente queira genuinamente lutar contra a corrupção.
Outros recorrem à tentativa de
chantagem, argumentando que agiram a pedido e em benefício do partido no poder:
que o desvio de dinheiros públicos serviu para que o MPLA pudesse ganhar – quer
dizer, manipular – as eleições.
Muitos dos altos funcionários
do MPLA, agora chamados a responder pelas suas atividades criminosas, antes
desprezavam o sofrimento de quem ficava à mercê de um sistema judicial
corrompido e baseado na injustiça. Hoje, tornaram-se miraculosamente nos mais
acérrimos defensores do Estado de direito.
Há demasiadas vozes a exprimir
receio pelas potenciais consequências de levar a tribunal as mais altas figuras
do país – consequências terríveis, dizem, para o partido do governo e para o
país.
A questão de fundo é esta:
querem que tudo se mantenha na mesma. Estes indivíduos são altamente perigosos.
Eu apoio a agenda
anticorrupção do presidente. Através dela, é possível criar uma plataforma que
moralize a sociedade e ponha um fim ao reino da impunidade. É um bom ponto de
partida para criar uma força de mudança em Angola, com vista a um futuro livre
do domínio perpétuo do MPLA. Porém, enquanto cidadão atento, preocupa-me o
calcanhar de Aquiles do presidente: a economia.
Para que a luta contra a
corrupção seja bem-sucedida a longo prazo, a administração pública precisa
obrigatoriamente de ser reformada segundo dois princípios:
§ Estabelecer
um sistema de meritocracia, enquanto método eficaz de extirpar o favoritismo, o
nepotismo e a incompetência criminosa.
§ Adotar
uma abordagem holística para superar o estado moribundo da economia, na qual
quase todos os sectores ainda são controlados pelo Estado ou por funcionários
corruptos do Estado, alguns dos quais hoje sob investigação.
Do meu ponto de vista, o
presidente precisa de uma agenda radical. Pode começar por reestruturar a sua
equipa do Ministério da Economia, afastando todos os que sejam incompetentes ou
que pretendam manter o status quo. Para alcançar o sucesso, o
presidente precisa ainda de criar um plano económico que crie empregos e
corrija as tabelas salariais, de modo que as pessoas possam de facto acreditar
que irão melhorar a sua qualidade de vida.
Para abrirmos o caminho da
mudança real, esta luta pela justiça e pelos direitos económicos tem de se
tornar a força motriz de todos nós, seja no governo, na oposição ou na
sociedade civil.
Título, Imagens e Texto: Rafael Marques de Morais, Maka Angola,
6-3-2019. Adaptação do texto apresentado no Oslo
Freedom Forum, na Cidade do México, a 26 de fevereiro de 2019.
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