quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

O período da Reforma

Erich Fromm

(…)

Quando se estuda a importância psicológica de uma doutrina religiosa ou política, temos de ter em mente que a análise psicológica não implica um juízo sobre a verdade da doutrina analisada. Esta última questão só pode ser resolvida do ponto de vista da estrutura lógica do próprio problema.

A análise das motivações psicológicas por trás de certas doutrinas ou ideias nunca pode substituir um juízo racional da validade da doutrina e dos valores que implica, ainda que tal análise possa conduzir a uma melhor compreensão do verdadeiro sentido de uma doutrina e, portanto, influenciar o nosso juízo de valor.

Aquilo que a análise psicológica das doutrinas nos pode mostrar são as motivações subjetivas que tornam uma pessoa consciente de certos problemas e que levam a procurar respostas em certas direções.

Qualquer tipo de pensamento, verdadeiro ou falso, se for mais do que um conformismo superficial com as ideias convencionais, é motivado pelas necessidades e interesses objetivos da pessoa que pensa. Acontece que alguns interesses são favorecidos pela descoberta da verdade, enquanto outros o são pela sua destruição.

Mas, nos dois casos, as motivações psicológicas são incentivos importantes para chegar a certas conclusões. Podemos ir mais longe e dizer que as ideias que não se enraízam em necessidades fortes da personalidade terão pouca influência nas ações e em toda a vida da pessoa em questão.

Para analisarmos doutrinas religiosas ou políticas em termos do seu significado psicológico, temos de distinguir dois problemas. Podemos estudar a estrutura do carácter do indivíduo que cria uma nova doutrina e tentar compreender que traços da sua personalidade são responsáveis pela direção particular do seu pensamento.

Em termos concretos, isto significa, por exemplo, que temos de analisar a estrutura do caráter de Lutero ou de Calvino para perceber que tendências das suas personalidades os levaram a certas conclusões e a formular certas doutrinas.

O outro problema é estudar as motivações psicológicas não do criador de uma doutrina, mas do grupo social atraído por essa doutrina. A influência de uma doutrina ou de uma ideia depende de a que ponto apela às necessidades psíquicas da estrutura do caráter daqueles a quem essa doutrina ou ideia se dirige. A ideia só se tornará uma força poderosa da história se responder a fortes necessidades psicológicas de certos grupos sociais.

É claro que os dois problemas – a psicologia do líder e a dos seus seguidores – estão intimamente interligados. Se as mesmas ideias os atraem, a sua estrutura de caráter deve ser semelhante em aspectos importantes. Além de fatores como o talento especial para pensar e agir por parte do líder, a sua estrutura de caráter exibirá normalmente, numa forma mais extrema e clara, a estrutura de caráter dos atraídos pelas suas doutrinas; pode chegar a uma formulação mais clara e mais explícita de certas ideias para as quais os seus seguidores já estão psicologicamente preparados.

O facto de a estrutura do caráter do líder mostrar mais claramente traços que se encontram nos seus seguidores pode dever-se a um de dois fatores, ou uma combinação de ambos: em primeiro lugar, a sua posição social é típica para as condições que moldam a personalidade de todo o grupo; em segundo, graças às circunstâncias acidentais da sua educação e das suas experiências individuais, estes mesmos traços desenvolverem-se num grau acentuado, que, para o grupo, resultam da sua posição social.

Na nossa análise do significado psicológico das doutrinas do protestantismo e do calvinismo, não falamos das personalidades de Lutero e de Calvino, mas da situação psicológica das classes sociais atraídas pelas suas ideias.

Antes de começar a discussão sobre a teologia de Lutero, quero apenas referir de forma muito breve que Lutero, como pessoa, era um representante típico do “caráter autoritário”, como será descrito mais à frente. Tendo sido educado por um pai invulgarmente severo, com pouco amor ou segurança enquanto criança, a sua personalidade era dilacerada por uma ambivalência constante em relação à autoridade; odiava-a e revoltava-se contra ela, enquanto ao mesmo tempo, a admirava e tendia a se lhe submeter.

Durante toda a sua vida, houve sempre uma autoridade à qual se opunha e outra que admirava – o pai e os seus superiores no mosteiro da sua juventude; depois, o papa e os príncipes.

Estava saturado de um sentimento extremo de solidão, impotência, maldade, mas, ao mesmo tempo, de uma paixão por dominar. Era torturado por dúvidas, como só o pode ser um caráter compulsivo, e procurava constantemente alguma coisa que lhe desse segurança interior e o aliviasse da tortura da incerteza.

Odiava os outros, em especial a “ralé”, odiava-se a si mesmo e à vida; e de todo este ódio vinha um desejo apaixonado e desesperado de ser amado. Todo o seu ser estava impregnado de medo, dúvida e isolamento interior, e, a partir desta base pessoal, iria se tornar o campeão dos grupos sociais que estavam psicologicamente numa posição muito semelhante.

Parece útil fazer mais uma observação sobre o método da análise que se seguirá. Qualquer análise psicológica dos pensamentos de um indivíduo ou de uma ideologia visa compreender as raízes psicológicas de onde jorram esses pensamentos ou ideias.

A primeira condição pata tal análise é compreender plenamente o contexto lógico de uma ideia e aquilo que o seu autor quer conscientemente dizer. Ainda assim, sabemos que uma pessoa, mesmo que seja subjetivamente sincera, pode ser muitas vezes impelida inconscientemente por um motivo diferente daquele que crê que a impele; que pode usar um conceito que implica logicamente um certo sentido e que, para ela, inconscientemente, significa algo diferente do seu sentido “oficial”.

Além disso, sabemos que pode tentar harmonizar certas contradições do seu próprio sentimento por intermédio de uma construção ideológica ou encobrir uma ideia que reprime através de uma racionalização que exprime exatamente o seu contrário.
A compreensão da operação dos elementos inconscientes nos ensinou a ser céticos em relação às palavras e não aceita-las por aquilo que aparentam ser.

(…)

Título e Texto: Erich Fromm, in “Medo da Liberdade", Edições 70, Capítulo III – A liberdade na era da Reforma, páginas 77 a 80.
Digitação: JP, 30-1-2025


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