Visto pelos críticos como um radical de direita, Trump se orienta pelo pragmatismo e, ao contrário do que faz o Brasil, não busca proximidade apenas de quem pensa como ele
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Arte: Paulo Márcio |
"Eles precisam de nós
muito mais do que precisamos deles. Nós não precisamos deles, eles precisam de
nós. Todo mundo precisa de nós”. Reproduzida por centenas de vezes pela
imprensa brasileira ao longo da semana passada, a afirmação acima foi feita pelo
presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, horas depois da cerimônia que
marcou seu retorno à Casa Branca. Ela se refere ao Brasil e à América Latina.
Não foi uma declaração
espontânea. Tratou-se, na verdade, de uma resposta à pergunta feita por uma
jornalista brasileira, interessada em saber se Trump tinha a intenção de
procurar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ela queria saber, também,
sobre o tipo de relacionamento que o novo presidente pretende manter com a
vasta região que se estende do Rio Grande, que marca a fronteira dos Estados
Unidos com o México, até o extremo sul da Patagônia.
Muita gente viu nas palavras do presidente recém-empossado um traço de arrogância, de prepotência e de desprezo pelos vizinhos — mas desta vez, pelo menos, ninguém ousou, como tem sido moda nos tempos atuais, acusá-lo de propagar fake news com a intenção de desestabilizar o governo brasileiro. Na mesma linha, nenhuma autoridade brasileira tomou a decisão, como também está na moda, de convocar Trump para explicar o que ele quis dizer ao afirmar que o Brasil precisa dos Estados Unidos mais do que os Estados Unidos precisam do Brasil. O que ele falou, ficou por isso mesmo. Ainda bem...
O fato é que nem a forma nem o conteúdo do que Trump disse geram qualquer tipo de surpresa. Estranho seria se, diante da pergunta feita à queima-roupa, ele calçasse as sandálias da humildade, cobrisse o Brasil de elogios e declarasse que a América Latina está entre suas prioridades. A resposta, sem dúvida, deixou transparecer um certo mau humor. Só que a pergunta foi feita num momento inconveniente, quando ele estava concentrado na assinatura de documentos que ditarão o tom de sua nova administração e não parecia minimamente interessado em discutir a relação de seu governo com o Brasil ou com a América Latina...
“HOMEM-FOGUETE”
A resposta de Trump contém um
exagero evidente. Na condição de maior economia do mundo, dono de um PIB de US$
28 trilhões, os Estados Unidos são, de fato, a grande potência econômica e
militar do mundo. Do alto da posição que ocupam, dispõem de força suficiente
para ditar o tom de seu relacionamento com a maioria dos países. O México e o
Canadá, seus vizinhos mais próximos, que o digam. Mas isso não significa — e
Trump sabe disso muito bem — que possam virar as costas para o mundo. O
presidente não mede palavras quando compara os Estados Unidos com os outros
países. Mas não se acanha em voltar atrás quando passa do ponto.
Em setembro de 2017, Trump
zombou das ambições nucleares do ditador comunista norte-coreano Kim Jong-Um —
a quem chamou de “pequeno homem-foguete”. Depois, se aproximou e manteve três
encontros com Kim, para desconforto dos tradicionais aliados sul-coreanos. Em
entrevista na sexta-feira passada, Trump manifestou a intenção de voltar a se
reunir com o chefe de um dos países mais fechados do mundo.
A atitude prova que Trump
escolhe seus aliados movidos não por afinidades ideológicas, mas por interesses
estratégicos e econômicos. E isso vale tanto para inimigos históricos, como a
Coreia do Norte, quanto para aliados de primeira hora, como Israel. Trump pode
até ter afinidades ideológicas com o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. Mas,
certamente não negaria seu apoio incondicional a Israel se o Partido
Trabalhista estivesse no poder.
Trump sabe que, se por um
lado, Israel depende do apoio dos Estados Unidos para não ser esmagado pelos
inimigos, por outro, o país é um defensor intransigente dos interesses
norte-americanos numa parte do mundo que, além de rica em petróleo, é
estratégica para o comércio internacional. Mas que, também, é repleta de grupos
terroristas e até de governos hostis, dispostos a tudo para ameaçar a segurança
interna dos Estados Unidos.
Um governo como o de Trump
sabe do valor de um aliado como esse. Sendo assim, jamais o abandonaria à
própria sorte. Nos meios diplomáticos internacionais, circula o comentário de
que, se Trump estivesse no lugar de Joe Biden em 2023, os terroristas de 7 de
outubro talvez nem tivessem ousado invadir o território israelense, estuprar
mulheres, degolar crianças, assassinar idosos e sequestrar mais de 200 civis
pegos de surpresa pelo ataque covarde.
Ainda que o atentado tivesse
acontecido, os Estados Unidos sob Trump certamente teriam agido com mais
firmeza contra os terroristas do que agiram sob o comando de Biden. Assim, a
guerra teria sido mais curta, o que teria poupado milhares de vidas. O fato é
que a guerra se prolongou e os agressores logo passaram a contar com o apoio de
vários governos e das próprias Nações Unidas — que não demoraram a tomar
partido dos terroristas e a negar a Israel o direito de reagir à agressão que
sofreu.
Por mais que Biden tenha
deixado o governo reivindicando a autoria da iniciativa, é certo que o atual
acordo de paz no Oriente Médio só saiu porque os terroristas tiveram receio do
que poderiam esperar do novo governo norte-americano. O certo é que, tendo
chegado ao ponto que chegou, o conflito abriu feridas profundas, que levarão
anos para serem cicatrizadas — e o papel dos Estados Unidos será fundamental
para que elas não continuem sangrando.
É pouco provável, por exemplo, que, no curto ou mesmo no médio prazo, haja clima para a implantação de um Estado Palestino, ao lado de Israel. Mas é preciso encontrar uma solução para que o povo palestino possa viver com dignidade sem que isso represente uma ameaça permanente a Israel. Essa é a missão que Trump tem pela frente.
PESO ESTRATÉGICO
E a América Latina? Bem...
para começo de conversa, a região jamais será vista por Trump como um bloco.
Cada um dos 20 países que a integram será considerado isoladamente e o
relacionamento de Washington com eles será definido caso a caso, como sempre foi.
A diplomacia comercial
norte-americana prioriza os relacionamentos bilaterais ao invés de, como é a
tendência do Brasil, procurar se entender com blocos econômicos. Trump,
especialmente, não gosta de lidar com blocos, nem mesmo com aqueles que contam
com a participação de seu país. Em seu primeiro mandato, ele pôs fim ao Acordo
de Livre Comércio da América do Norte (Nafta, na sigla em inglês). Firmado no
governo do democrata Bill Clinton, em 1993, o Nafta pouco avançou nas gestões
de George W. Bush e de Barack Obama, mas sobreviveu até ser formalmente extinto
por Trump em 2018.
Pela lógica da diplomacia
comercial norte-americana, e desde que se leve em conta os interesses dos dois
lados, qualquer país — independente da ideologia de seu governo, do porte de
sua economia ou de sua localização no mapa mundi — pode obter vantagens em seu
relacionamento comercial com os Estados Unidos. O caso mais exemplar nesse
sentido é o do Chile. Com um PIB de US$ 335 bilhões, o país mantém com os
Estados Unidos um Acordo de Livre Comércio que completará 20 anos no próximo
mês de junho. Bom para os dois lados, o tratado nunca foi posto em xeque nem
sofreu alterações.
Quando o pacto foi assinado, em 2005, o Chile era governado pela socialista Michele Bachelet e os Estados Unidos, pelo republicano George W. Bush. É importante chamar atenção para esse ponto: a ideologia esquerdista de Bachelet não impediu que ela percebesse a importância de se relacionar comercialmente com a maior potência do mundo. E Bush, por mais conservador que fosse, não dificultou o entendimento. Quando Trump chegou à Casa Branca pela primeira vez, em 2017, Bachelet estava concluindo sua segunda passagem pelo Palácio de la Moneda, e o acordo prosseguiu sem qualquer sobressalto.
CONCORRÊNCIA PESADA
E qual é o papel do Brasil
nessa história? Bem... à primeira vista, nada do que aconteceu até o presente
momento indica uma mudança significativa nas relações comerciais entre os dois
países. Brasil e Estados Unidos mantêm um fluxo de comércio bilateral importante
demais para ser ameaçado por picuinhas ideológicas. No ano passado, esse fluxo
somou pouco mais de US$ 80 bilhões. O valor é dividido meio a meio, com uma
vantagem mínima para o lado norte-americano. Enquanto o Brasil exportou US$
40,33 bi para os Estados Unidos em 2024, os Estados Unidos exportaram US$ 40,58
bilhões para o Brasil.
As exportações brasileiras
para os Estados Unidos são compostas por aviões, suco de laranja, petróleo,
artefatos de ferro, aço, café e carne. Já as exportações para a China, o maior
parceiro comercial do Brasil, alcançaram US$ 116 bilhões no ano passado e têm
como principal mercadoria a soja.
É aí que está o xis da
questão: embora liderem as exportações brasileiras para a maioria dos
parceiros, os grãos do agronegócio não constam da pauta de produtos vendidos à
maior economia do mundo. Por quê? Bem... a afirmação de que o mundo precisa dos
alimentos produzidos pelo agronegócio brasileiro pode valer para a China, para
o Japão, para a Alemanha e para um monte de lugares. Mas não vale para os
Estados Unidos. No que diz respeito aos produtos do agronegócio, os Estados
Unidos não são clientes. São concorrentes. E essa concorrência, que já era
pesada nos últimos anos, ficará ainda mais forte daqui por diante.
Trump nomeou para o
Departamento da Agricultura dos Estados Unidos a advogada Brooke Rollins. Ela
nasceu e cresceu numa fazenda e, antes de obter seu diploma em direito pela
Universidade do Texas, se graduou em desenvolvimento agrícola na prestigiada A&M
University. Trata-se de um centro fundado no final do Século 19 que se firmou
como um dos principais centros de conhecimento do agronegócio mundial.
Brooke Rollins integrou o
staff da Casa Branca na primeira administração Trump, como uma das conselheiras
para assuntos políticos mais próximas do presidente. Nos quatro anos da
administração Biden, liderou uma organização chamada America First Policy Institute
(AFPI) que, numa tradução livre, significa Instituto de Políticas para a
América em Primeiro Lugar. Dessa posição, e sempre em contato com o chefe, ela
foi responsável pelo desenvolvimento de parte da estratégia que reconduziu
Trump à presidência.
No texto em que apresentou a
nova secretária, Trump ressaltou o compromisso de “Brooke em apoiar o
fazendeiro americano” e a “defesa da autossuficiência alimentar dos Estados
Unidos”. O que isso significa? Bem... significa que a chance de o maior país do
mundo, que disputa com o Brasil a condição de maior potência agrícola do mundo,
abrir suas fronteiras para produtos agrícolas brasileiros é zero. Absolutamente
zero.
Pior: os Estados Unidos daqui
por diante certamente avançarão sobre os mercados que o Brasil já conquistou.
Ninguém deve se espantar, por exemplo, se o novo acordo comercial que
Washington negociará com a China estabelecer condições preferenciais para a soja
norte-americana em relação à brasileira. Numa circunstância como essa, ao invés
de continuar hostilizando os produtores rurais, como sempre fez, seria bom que
o atual governo passasse a defender com mais afinco o agronegócio brasileiro.
Nem que seja apenas para impedir que o país perca as vantagens que já
conquistou nessa área.
Título e Texto: Nuno Vasconcellos, O Dia, 26-1-2025, 0h
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