Humberto Pinho da Silva
Tinha pouco mais de
quarenta anos, quando assaltou-me tremenda dor de dentes, o que me obrigou a
recorrer, com urgência, ao estomatologista.
Tratou-me de imediato, mas
depois marcava consultas de quinze em quinze dias, para tratamento que
considerava necessário. Só consegui libertar-me quando, após um ano, lhe
declarei que tinha de partir para o Brasil, desconhecendo a data de regresso.
O demorado tratamento não passava de limpezas e ligeiras correções. Lembrei-me, então, do que lera na "Arte de Furtar", obra do século XVII, de autor desconhecido, embora se desconfie quem era.
Após asseverar que os
portugueses gostam de mimar os médicos quando se encontram enfermos,
conta que em França acontece o contrário, pois existe lei que permite não pagar
aos médicos do paço, antes de encontrarem a cura, para que apressem o
tratamento. A propósito, conta o caso de um, que curava um espinho, a que
chamava apostema, cujo tratamento estava demorado.
Tendo de se ausentar,
pediu ao filho para continuar aplicando emplastros, até ele chegar.
O filho, ao verificar que havia um espinho encravado, para se mostrar mais destro que o pai, arrancou-o. Cessaram as dores e o enfermo curou-se, com grande contentamento de ambos.
Chegou o progenitor, e
envaidecido o filho, contou-lhe a descoberta com inaudita satisfação.
Respondeu-lhe, amargurado,
o pai:
"Pois daí
comerás, pura besta. Não vias tu, selvagem, que enquanto se queixava das dores
continuavam as visitas, e se acrescentavam os pagos? "Secaste o leite à
cabra que ordenhaste."
Assim escreveu o escritor
anônimo, do século XVII, sobre os médicos do seu tempo.
Julgo que os
contemporâneos, já não têm igual pensar…
Título e Texto: Humberto
Pinho da Silva, janeiro de 2025
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