terça-feira, 11 de janeiro de 2011

O tempo voa. A Varig que o diga (última parte)

Continuação daqui: O tempo voa. A Varig que o diga (I)




"Tinha era foie gras de verdade! Não era patê, não! Era o fígado do ganso mesmo. Caviar, só do tipo beluga", lembra dona Lisboa, uma das primeiras aeromoças da companhia a servir os pratos do Barão, substituindo os garçons de antigamente. "Vinhos? Chateau Haut-Brion, Chateau Lafitte. Conhaque, Courvoisier. Uísque, Black Label". Quando a Lívia chegou à empresa, em 1961 - ela ainda era a Ilza Lívia e tinha 24 anos -, o Barão estava dando uma abrasileirada nas receitas. Rolava a bordo, além de todo o resto, um churrascão. Nada daqueles espetões de rodízio: filé mignon argentino, rosado por dentro e com camarões enormes colocados em volta. "A louça", diz a Lívia, "era japonesa. Os copos, todos de cristal." Os Constellation - e depois os Caravelle e os 707 - eram a Boate Vogue com asa.

De meados dos anos 50 até pelo menos o final dos 60, voar Varig obrigava a uma certa liturgia. Homens embarcavam de terno e gravata, ainda que trocassem a roupa no interior da aeronave por peças mais confortáveis. Mulheres usavam tailleur e casaco de pele. "Tínhamos uns closets, uns armarinhos bem pequenos", conta Lívia. "Já imaginou botarmos 20 casacos de pele lá dentro? No inverno, era aquela montanha de roupa..." A tripulação, claro, obedecia também às regras da fina estampa. "Calça Lee" não era permitida nem nos escritórios da companhia. Funcionários minimamente cabeludos, bigodudos ou barbudos, esses eram desembarcados tão logo davam as caras.

Apresentação dos novos uniformes, Rio de Janeiro 1974; enviada por Rodolfo W. Waltemath

O uniforme das aeromoças era um capítulo à parte na construção da imagem da empresa. No começo, a Lisboa usava um quepe militar, um tailleur cinza azulado, meias brancas. Sapatos, bolsa e luvas (!) eram pretos. "O tecido não amassava", diz. "O caimento era perfeito." De três em três anos mudava tudo. Tudo feito sob medida para cada uma das funcionárias. Mais tarde, a exemplo do Barão von Stuckart, a Varig contratou os serviços de Louis Féraud. O estilista francês, quem sabe acreditando que aqui fosse sempre carnaval, tirou da cachola um modelo laranja e amarelo. Ainda bem que a Lívia e a Lisboa já eram "instrutoras" e portanto "não tínhamos de andar com esse negócio pela rua". O lançamento desse negócio aconteceu em Paris, com batida de cachaça e dois leopardos. Dois leopardos??? Bom, hoje seria um par de Havaianas e a mesma batida de cachaça.

Não era fácil ser aeromoça e o Louis Féraud, embora não tenha ajudado, também não atrapalhou. Complicado era ser mulher e viver fora de casa, morando em hotéis, sem tempo para filho ou marido. Isso, inclusive, estava em contrato. "Os rapazes casavam 10 vezes e tinham 50 filhos", calcula Lívia. "Nós, se quiséssemos casar, tínhamos de pedir demissão". Ela, a Lívia, foi a primeira comissária da Varig a quebrar a regra. Tinha 37 anos quando nasceu a sua filha. Um dia, decidiu levá-la num vôo para "mostrar que a mamãe vai mas volta". Numa outra oportunidade, convidou a menina para uma festa nos escritórios da companhia. Disse que ia ter lá uns brigadeiros. "Oba!" Eram brigadeiros da Aeronáutica.

Não era e não é fácil ser aeromoça porque, a exemplo das enfermeiras e das mulheres de chicote, elas são figurinhas carimbadas no imaginário sexual masculino. Isso, porém, a Lívia e a Lisboa não assinam embaixo. Aliás, elas nem acham que aeromoça é necessariamente uma mulher bonita. Nesse sentido, listam apenas duas condições básicas para o exercício da profissão, a saber: 1. Pele ruim não dá. 2. Gorda, de jeito nenhum. Dizem a Lívia e a Lisboa que cantadas foram raras na longa carreira que tiveram. E que foram rareando ainda mais à medida que o tempo passava. Não creditam o fenômeno à melhoria na educação do público - esta, sem dúvida, piorou a olhos vistos. Creditam mesmo ao tempo, que foi passando inclusive para elas.

A Lívia trabalhou 31 anos na Varig. Aos 68, continua evitando falar em desastre aéreo e até hoje sente taquicardia na hora do pouso. É "paulistana da rua Maria Antonia", mas vive no Rio. Casou-se com o Acir, piloto aposentado da companhia que voou desde o DC-3 até o 747 - e que, depois, voou também de asa-delta, mas, estranhamente, descobriu que tem medo de altura ("altura não, abismo"). A dona Lisboa, paulista de São João da Boa Vista, também mora no Rio. Ela, sim, anda com medo de avião. Não é problema com a altura, mas "com terrorista". Não quer mais fazer viagem internacional. Juntos, a Lívia, o Acir e a Lisboa têm mais de 80 mil horas de vôo. Muita experiência, portanto. Concordam com uma pesquisa da companhia aérea Pan American, segundo a qual "os mais chatos são os passageiros argentinos e brasileiros". A Lisboa gosta dos japoneses. A Lívia acha os americanos simpáticos, "mas ninguém supera os holandeses, definitivamente os melhores". Os sul-africanos, segundo a Lisboa, são os que mais bebem. Para ela, "alemão é arrogante". O pior dos piores em todos os tempos? "Brasileiro voltando da França".


A Lívia e a Lisboa viram de tudo. A Lisboa viu a Marlene Dietrich dormir "de camisolinha" no beliche do Constellation. Viu e conferiu: "O mais elegante, o mais educado, o mais fino passageiro" da história da Varig foi "Walter Moreira Salles, o pai do cineasta". A Lívia voou uma vez com o Costa e Silva, duas vezes com o Médici, quatro vezes com o Geisel. Diz que os militares "não tinham mania nenhuma". Para eles eram preparados "menus sofisticadíssimos". Mas "sem ter a tarimba dos bons restaurantes não aceitavam nada". A Lisboa garante que o Juscelino Kubitschek - aquele em cuja sopa a Lívia atirou um chapéu - só tomava champagne rosé. A Lisboa tem problema com bebida rosé: "Cafona..."
Fred Melo Paiva, O Estado de S. Paulo, 18-09-2005
FIM
Um magnífico Chateau Haut-Brion, 1966. Foto: DR

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