sexta-feira, 8 de abril de 2011

O carrossel

"Tentou-se enganar a Europa com um acordo nacional inexistente, e Portugal com um apoio comunitário completamente fantasioso"
Neste começo de pré-campanha eleitoral, um traço se destaca: o da aguda irresponsabilidade política que atravessa o espectro político-partidário, que patina num exasperante charco do passa-culpas.
O País vê-se assim nas mãos de partidos virados para os seus umbigos e para os seus interesses de curto prazo, refém da lei que lhe reserva um intolerável exclusivo da representação política parlamentar. É vital acabar com este garrote que cada vez mais descredibiliza a nossa democracia.
O que temos visto é circo - sem a arte do circo: enquanto uns insistem propostas completamente ilusórias, outros casmurram nos mesmos erros e outros, ainda, agitam miragens de consensos futuros, tão amplos como, na verdade, improváveis. E tudo isto enquadrado, no topo, por uma obsessão pelo poder que há muito esqueceu o interesse nacional.
Viram-se assim as costas ao País, que - e neste paradoxo reside a maior esperança - ainda parece melhor do que a política. País que, convém percebê-lo, paga hoje bem caro a sua confortável demissão da vida colectiva, que atinge entre nós (ao contrário do que se passa em países com mais tradição democrática) proporções catastróficas. Aqui não há inocentes: a responsabilidade política só alastra porque é consentida, quando não estimulada, pela irresponsabilidade da própria sociedade.

É por isso que se fala do Estado como se ele não tivesse nada a ver connosco, do endividamento (público, empresarial ou privado) como se fosse sempre um problema dos outros, e da crise como se de um inesperado meteorito se tratasse. Por isso se ignoram quase completamente as lições do passado e se fala do futuro com se ele dependesse do euromilhões ou de alguma varinha mágica. E, assim sendo, não admira que tudo acabe por convergir na autoflagelação do presente, fórmula bem conhecida de catarse da irresponsabilidade.
A Europa tem sido, infelizmente, um dos melhores exemplos desta irresponsabilização nacional, a que seria bom pôr cobro. A Europa sempre foi apresentada aos portugueses como uma via que só trazia vantagens e não implicava nenhum tipo de custos. Como se fosse uma espécie de garantia, de mesada, que nos permitiria viver sem grandes esforços ou preocupações.
Foi assim logo na adesão, quando a Europa foi apresentada com um seguro contra eventuais tentações de regresso ao passado. O argumento contra um tal espectro, que deveria brotar da nova cultura democrática, passou a ser o de que a "Europa não permitiria" que tal acontecesse.
Foi também assim com o apoio ao nosso crescimento, com a Europa jorrando para cá milhares de milhões para programas de obras públicas de duvidosíssima necessidade ou utilidade, lançados sem qualquer estratégia de desenvolvimento a médio prazo. O betão vandalizou o País, o facilitismo e a corrupção estropiaram qualquer visão estratégica. Se o País melhorou em algumas áreas, como inequivocamente aconteceu, ele permaneceu contudo igual na maior parte delas, nomeadamente naquelas que verdadeiramente contam para o de-senvolvimento: a qualificação e a produtividade, a criação e a competitividade.
A Europa foi ainda o pretexto para se abandonar a agricultura e a pesca, para se ignorar o mar e o seu extraordinário potencial, para se fazer uma aposta cega nos serviços e para se pensar que a uniformização trazia qualidade ao ensino superior. Tudo isto em nome do imperativo da "modernização", bandeira que, depois de ter sido a de Cavaco Silva na sua década, foi retomada por José Sócrates com a sua maioria absoluta. O socialismo era, de resto, das poucas coisas que ainda não tinha sido modernizado...
O que é extraordinário é que nem com as dificuldades no último ano a nossa relação com a Europa se tenha alterado. Continuamos sempre de mão estendida, ora a pedir, ora a agradecer. Fizemos a festa, como mordomos entusiasmados, do Tratado de Lisboa, apesar de ele diminuir a nossa margem de manobra enquanto reforçava a da Alemanha, varrendo com afinco para debaixo do tapete todos os problemas que, mal a crise apertou, se impuseram sem misericórdia.
É a esta luz que se compreende bem o drama que tem atordoado José Sócrates. Ele, que se imaginou o herói da nova Europa com o Tratado de Lisboa, descobriu que a história lhe tinha reservado o papel do vilão sobre quem recai o ónus de uma verdade longamente escondida.
Incapaz de compreender a relação de forças que configura a Europa de hoje, com tensões fortíssimas em todos os planos (no económico-financeiro, claro, mas também no demográfico, no energético, no da investigação, etc.), com um quadro institucional que cada vez mais bloqueia a iniciativa da Comissão e tudo faz depender dos governos, e uma cacofonia de posições que inviabiliza qualquer projecção no mundo (basta olhar para o que aconteceu agora com a "dissensão" alemã face à Líbia), Sócrates continua - e nisso terá certamente uma forte solidariedade do País - a fazer de Portugal o adolescente provinciano e mimado da União Europeia, sempre à espera do milagre que lhe permita ultrapassar as suas dificuldades com um mínimo de custos.
E é aqui que se encontra a chave do enredo da novela que temos vivido nos últimos meses: tentou-se enganar a Europa com Portugal, e Portugal com a Europa, garantindo-se à União Europeia um acordo nacional inexistente, e a Portugal um apoio comunitário completamente fantasioso.
E, prodígio dos prodígios, é ainda a mesma novela que se anuncia como tema central da próxima campanha eleitoral, como se os juros, agora a mais de 10%, não estivessem a hipotecar de um modo violentíssimo o nosso futuro colectivo, e como se houvesse empréstimos que nós, os nossos filhos, netos e bisnetos, não teremos de pagar até ao último cêntimo. Não há dúvida, o carrossel da irresponsabilidade chegou, para nova temporada!
Título e Texto: Manuel Maria Carrilho, Diário de Notícias, 07-04-2011
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