sábado, 23 de abril de 2011

Mário Soares e a maçã de Eva: "Passos Coelho é uma pessoa bem-intencionada com quem se pode falar"


Ana Sá Lopes
Governo e PSD têm de se entender. Esta é a batalha de Mário Soares, o fundador do PS que simpatiza com o líder do PSD. 
O fundador do PS e antigo primeiro-ministro que chamou o FMI em 1983 não alinha na demonização de Passos Coelho promovida por Sócrates e afluentes. Numa longa entrevista ao i regista que teve ultimamente "alguns encontros" com o líder do PSD "para estabelecer algumas pontes necessárias" e "sem dificuldades". Acima do PS, diz, põe "o interesse nacional".

Pedir a intervenção do FMI é mais duro hoje do que quando era primeiro--ministro?
Incomparavelmente mais. A situação é difícil, muito mais difícil do que no meu tempo. No meu tempo tínhamos uma moeda própria, podíamos desvalorizar o escudo. Hoje as coisas estão complicadas, embora tenhamos à frente do FMI - pela primeira vez, acho eu, na história - um socialista francês, de grande prestígio, Dominique Strauss-Khan.

E acha que isso pode ser favorável?
Acho que sim. Ele defende que é preciso conciliar a redução do défice, e do endividamento, público e privado, com medidas de austeridade. Mas, ao mesmo tempo, conseguir dinheiro para investir, fazer crescer a economia do país e reduzir muito o desemprego. Bem como manter as grandes conquistas sociais.

Pensa que um programa FMI vai conseguir manter as grandes conquistas sociais?
Não sei, não faço ideia. Acho que, na UE, essa ideia começa a fazer o seu caminho. Os líderes actuais da UE são todos conservadores, são todos neoliberais, e ainda não perceberam que as coisas estão a mudar no mundo. Começam, contudo, a sentir que pode haver muitas dificuldades, entre a população europeia em geral e os sindicatos, se não houver uma mudança de paradigma. Ninguém quer recuar em relação a tudo aquilo que foi uma das pedras fundamentais do projecto europeu: a justiça social, as conquistas dos trabalhadores e a luta contra a pobreza. Nunca houve no mundo, antes de nós, nada de comparável. Isto não se pode tirar.

Se é possível atribuir culpas, de quem foi a culpa de termos chegado aqui, à necessidade de pedir um empréstimo ao FMI outra vez?
Para responder com isenção a essa pergunta, dir-lhe-ei que as culpas são repartidas. Não interessa nada agora afirmar que as culpas são de uns ou de outros. Gritarmos "Vocês é que foram os culpados", ou vice-versa. Não foi, seguramente, só por causa da crise internacional. A verdade é que as culpas são repartidas. Vamos dizer assim para não entrarmos em polémica. Vamos ter eleições. Veremos quem vai ganhar e quem vai perder. Naturalmente que sou socialista, gostaria que o Partido Socialista ganhasse, mas acima do Partido Socialista ponho o interesse nacional. Não é só agora, pus sempre...

Acha que se não fosse a teimosia do primeiro-ministro poderíamos ter evitado isto? Ou ter pedido o resgate mais cedo?
O primeiro-ministro conseguiu pedir o apoio do Fundo Europeu a tempo e horas e conseguiu uma resposta positiva, que foi o PEC IV. Depois disso, a oposição atirou abaixo o PEC IV. Foi uma grande irresponsabilidade. Se ele podia ter feito isso mais cedo, não tenho elementos que me permitam dizê-lo.
Há aqui um problema que obriga a um pacto PSD/governo, eventualmente, o Presidente da República. Já pediu, aliás, um compromisso..
Sim, acho que o Presidente da República devia ter intervindo e não o fez. E o Presidente da República é - e deve ser - uma garantia para toda a gente. Não pode ficar silencioso. Penso que os dois principais partidos sabem disso. Evidentemente que se eles tivessem a sua "bênção" quanto a um entendimento seria fundamental. Tenho-me batido para que se consiga, um entendimento interpartidário, tentando convencer as pessoas com quem falo de que é indispensável conseguir esse entendimento.

Acredita que vai convencer Cavaco Silva?
Não tenho essa pretensão. Fiz-lhe um apelo, a dizer que era necessário um entendimento. Foi um "apelo angustiado", como lhe chamei. Se não fizer nada, parece-me evidente que tudo fica mais difícil...

Como é que, neste momento, os responsáveis políticos - falo do PS, do PSD e inclusive do Presidente - não se conseguem entender e o senhor conseguiu entender-se com Mota Pinto em 1983 tão facilmente?
Porque as boas relações entre o dr. Mota Pinto e eu próprio dataram de uma fase anterior à coligação entre PS/PSD. Ele foi ministro de um governo a que eu presidi, era ministro do Comércio e depois foi primeiro-ministro de um governo de iniciativa presidencial. O PS ajudou a deitar abaixo esse governo, mas isso não afectou a nossa boa relação. Sempre mantivemos relações de confiança. E tivemos um amigo comum que nos ajudou nessa altura. Foi o dr. Daniel Proença de Carvalho. Ofereceu-nos dois jantares antes das eleições, em casa dele. Era grande amigo de Mota Pinto, seu colega na Universidade de Coimbra. E eu tinha, por razões várias, também uma grande simpatia e estima por ele. Como Mota Pinto e eu nos tornámos amigos, apesar de pertencermos a partidos diferentes, foi fácil resolvermos os nossos problemas. Nunca tivemos grandes dificuldades durante dois anos e meio. E houve imensas intrigas, de um lado e de outro, contra nós. Mas sobrevivemos a tudo, porque havia uma confiança e um respeito recíprocos.

Porque é que Sócrates e Passos Coelho não se entendem?
Isso não sei, como imagina. Custa-me a compreender isso. Tem talvez a ver também com o temperamento de cada um. Mas não quero entrar nesse domínio. Acho, simplesmente, que é preciso que eles se entendam, em virtude do supremo interesse nacional. Tenho vindo a dizê-lo publicamente. Alguns socialistas ferrenhos, meus camaradas e amigos, já me perguntaram: "Você diz que simpatiza com o Passos Coelho?" É verdade, acho que é uma pessoa com quem se pode falar e acho que é necessário falar com ele e, se possível, chegar a acordo - é o líder do segundo maior partido português. Acho que não são os partidos adversos que devem escolher os líderes dos outros partidos. Ser o PSD a escolher um outro líder do PS e dizer "não quero Sócrates", isso não faz qualquer sentido. Só fortalece Sócrates aos olhos dos militantes do PS. E se os militantes do PS disserem "não queremos Passos Coelho" só fortalecem Passos Coelho aos olhos do PSD. De resto, diga-se: em democracia não há inimigos, como nas ditaduras. Só há adversários, que podem ser, em muitos casos, amigos pessoais.

O governo tem mesmo de se entender com Passos Coelho...
Obviamente. Como o PSD com Sócrates. É a regra do jogo democrático.

Quando é que percebeu que tinha de chamar o FMI em 1983?
Quando verifiquei que não podíamos ultrapassar a crise por nós próprios. Tínhamos uma dívida, que estava a ser muito grande e que nós tínhamos a obrigação de ultrapassar. E foi aí que precisámos da ajuda. O PSD e o PS perceberam que tínhamos de tomar medidas de austeridade, como por exemplo cortar o 13.o mês...

Foi uma decisão de quem?
Foi uma imposição dos negociadores e do ministro das Finanças, o professor Ernâni Lopes, que me disse: "Tenho de ir dizer isto à televisão." E eu, que era primeiro-ministro, respondi-lhe: "Quem vai sou eu que, como primeiro-ministro, sou o principal responsável." E fui. Faz com certeza ideia de como os portugueses ficaram zangados comigo.

Os portugueses ficaram danados...
Ficaram furiosos, claro! Em primeiro lugar os sindicalistas socialistas, depois os outros socialistas e ainda os responsáveis das autarquias, que me disseram que era um disparate, precisava de me resguardar. Entendi o contrário. O que tem de ser feito deve ser feito. Isso tem a ver com o sentido da responsabilidade e a honra de um político.

Qual foi o seu pior momento naqueles dois anos difíceis? Foi o "Há fome em Setúbal" gritado pelo bispo de Setúbal?
Achei isso um pouco exagerado, com efeito. Tendo em conta o que se passara no tempo da ditadura e o silêncio de uma parte da Igreja. Nessa altura houve alguma fome e muitas dificuldades. Depois do 25 de Abril havia liberdade. Toda a gente podia dizer o que lhe apetecesse, sem ter problemas. E os comunistas de Setúbal até gostaram que um bispo católico gritasse que havia fome e que a culpa era do governo socialista. Exagerou. Mas, por mim, perdoei-lhe. Enfim, isso pertence a uma polémica do passado...

Mas foi o pior momento?
Foi um momento mau, passou depressa. A Igreja Católica sabe bem como o PS a defendeu durante o PREC. Depois disso tivemos uma grande derrota - porque foram atribuídas ao PS todas as dificuldades do governo PS/PSD. Mas a verdade é que voltei a ganhar as eleições para a Presidência da República, uns meses depois. Outro problema grave que tivemos foi a lei da despenalização do aborto...

Conte-nos essa história.
O PSD era contra, havia ministros do PSD que eram católicos praticantes, absolutamente contrários à lei. A Igreja portuguesa em geral não intervinha, nessa altura, directamente na política. Mas ainda havia lembranças de um passado recente.

Estamos a falar do Congresso do PS que decidiu despenalizar o aborto esquecendo que o governo era de coligação...
Sim, nessa altura houve grandes manifestações contrárias dos católicos. O senhor cardeal, na altura D. António Ribeiro, reagiu mal à lei e criou-se uma situação um pouco difícil. Houve uma grande manifestação católica, com velas, à noite, frente à sede do Partido Socialista, no Largo do Rato.

Como conseguiu que a coligação sobrevivesse?
Havia muitos católicos do lado do PSD, possivelmente também havia alguns do lado do PS. Combinei as coisas com o professor Mota Pinto. Disse-lhe que era uma questão que não dizia respeito ao governo, mas tão-só aos partidos. "Vocês votam como querem e o PS vota como quer. Depois se verá. Mas agora não vamos comprometer o governo, que está a funcionar bem e tem tantas coisas importantes para fazer." Foi um pouco difícil, mas o professor Mota Pinto foi compreensivo, apesar de ser contrário à lei. E, realmente, conseguiu-se evitar a crise. Eu era amigo do cardeal Casaroli, o número dois do Vaticano, nesse tempo. Perguntei-lhe se o Papa não me convidaria para uma visita oficial. E ele arranjou as coisas no Vaticano. Fui convidado a ir a Roma em visita a Sua Santidade. O senhor cardeal António Ribeiro também foi, antes de mim, acompanhado pelo senhor bispo de Aveiro, para ver in extremis se o Papa não me receberia. Não conseguiram.

Conseguiu apaziguar os católicos?
Estive com Sua Santidade uma hora e meia a falar dos dois Estados e do mundo em geral, de Angola - cuja situação era muito discutida na altura - e da Europa em especial. A certa altura, quase no fim da audiência, Sua Santidade disse-me: "Sei que há um problema sobre a despenalização do aborto, que nos preocupa. A Igreja é contra, como sabe. Mas aqui em Itália também há uma lei desse tipo, menos prudente do que a vossa. Sei que a Igreja portuguesa não está satisfeita. Mas o importante é que tudo se acalme."

Foi o Papa João Paulo II?
Sim, disse textualmente: "Porque nós tivemos de aceitar uma lei a favor do aborto em Itália mais difícil do que a vossa."

Disse o Papa João Paulo II?
Pois disse. Eu regressei, como calcula, muito satisfeito. Quando em Lisboa os jornalistas me perguntaram se havia um conflito, respondi-lhes: "Não, não há, fui convidado para ir ao Vaticano por Sua Santidade, e falámos das relações Estado a Estado. Tudo correu muito bem."

Esse foi mesmo o momento terrível dessa coligação. Tiveram mais problemas, não foi só esse.
Tivemos mais problemas mas realmente esse foi um dos sérios. Mas houve outros. Todos os dias havia intrigas que vinham no jornal. Nós - o professor Mota Pinto e eu - víamos aquilo e riamo-nos, porque tínhamos plena confiança um no outro. Mota Pinto era um homem sério, rigoroso, impecável. Era também um grande jurista e uma pessoa excelente, bondoso e compreensivo. Tinha origens modestas, mas não sentia o menor complexo com isso. Demo-nos sempre muito bem. Ao princípio pensava: como é possível que um lente de Coimbra, tão ilustre, sendo eu, ainda por cima, um modesto licenciado por Lisboa - na altura havia uma certa rivalidade entre as duas universidades - aceite que eu seja primeiro-ministro e ele ministro de Estado e da Defesa? Mas não, esse problema nunca se pôs. O PS venceu as eleições e Mota Pinto nunca levantou essa questão.

Foi uma amizade muito grande.
Que durou até à morte dele. Aliás, inesperada e que mudou totalmente os dados políticos partidários. Fez imensa falta e deixou-nos muitas saudades. Ainda hoje tenho muita estima pela sua viúva e sigo com grande simpatia as carreiras brilhantes dos seus filhos.

Para além da amizade, há uma coisa que gostava de perguntar. Não havia também outra elevação nessa altura?
Penso que sim. Tem razão. Nessa altura não havia a agressividade entre os políticos que há hoje. Há uma certa crispação na sociedade portuguesa, evidente, que é muito desagradável. É preciso mudar o estilo, com os políticos, semana a semana, a agredirem-se, sem respeito mútuo, no parlamento. Há palavras que não devem ser ditas. Os eleitores apreciam o respeito dos políticos, uns pelos outros, entre partidos diferentes.

Acha que neste Congresso do PS Sócrates falou mais para o partido do que para o povo?
Bem, as circunstâncias obrigaram-no a isso. Ele tinha acabado de perder a votação do PEC IV. Todos os partidos votaram, sem excepção, contra ele. Sentiu-se um pouco isolado e naturalmente, perto de eleições, quis dar confiança ao seu eleitorado. E conseguiu. Quando está toda a gente a dizer "o Sócrates não, mas o PS sim" ou "pode vir o PS sem Sócrates" é um absurdo. A verdade é que ninguém deve permitir-se dizer isso, nem em relação ao PS, nem ao PSD, nem relativamente a qualquer outro partido. Isto é: quem deve ser o líder de outro partido? Quem escolhe os líderes são os militantes dos respectivos partidos. E não os dos outros. Quando o PSD começa a dizer "Sócrates tem de sair", todo o PS se une para que ele não saia. É a primeira reacção. Se fosse o Passos Coelho, seria a mesma reacção. É inútil e pouco sensato dizer coisas deste tipo...

Querer arranjar líderes para os outros partidos.
E arranjar questões onde elas não existem ou podem - e devem - ser evitadas.

Neste momento o discurso do governo e do PSD e eventualmente de outros partidos não está completamente desfasado do povo e das preocupações das pessoas? 
Acho que está bastante. O Congresso do PS foi um êxito para o PS. Não sei se o eleitorado em geral vai achar tão bom os discursos de Sócrates como achou o eleitorado do PS e, em particular, os seus militantes propriamente ditos. Estão ali para aplaudir. Não sei. Para mim ainda é uma coisa que se está para ver. Quem vota é o povo, que maioritariamente não tem partido. Tem simpatias pelos líderes. Portanto, acho que realmente era bom que os partidos se tornassem mais cordatos, uns com os outros. Seria bom para todos e bom para a democracia. Quando se começam a insultar, as pessoas não gostam. Temem que o regime esteja em causa e a própria democracia. Os mais ignorantes pensam logo que a ditadura era melhor. Havia silêncio. Ninguém se atrevia a criticar. É preciso não ter vivido a ditadura para dizer uma tal blasfémia!

Já fez um apelo ao Presidente...
Angustiado...

Exactamente. Neste momento, até alguns cavaquistas mais empenhados começam a criticar o Presidente da República. O que se está a passar com o Presidente, porque não aparece?
Não sei, terá de lhe perguntar a ele. Acho que agora seria a boa altura para exercer a tal magistratura de influência activa que prometeu. Estamos num momento único da nossa história, e péssimo. É preciso explicar e dizer a verdade, sobretudo sendo economista. Tinha toda a autoridade para o fazer e as pessoas, julgo, estão à espera de ouvir o Presidente. Penso que irá fazê-lo, mais tarde ou mais cedo, e que o deve fazer. Veremos como será. Gostaria que houvesse um acordo entre os partidos que acalmasse as pessoas. Não era preciso haver coligação nenhuma, dada a situação de crispação a que se chegou. Basta haver um acordo entre os principais partidos, para que subscrevam as condições que os negociadores que nos emprestam dinheiro nos venham a pôr. Para lhes dar confiança, a fim de negociar com eles com razoabilidade. E se o Presidente da República disser que acha que o acordo é para ser cumprido, tanto melhor. Aliviava-se a situação, como aconteceu no passado.

A ideia de pedir um compromisso aos partidos foi sua?
Não, a ideia foi de várias pessoas. Reuniram-se espontaneamente porque estavam ansiosas quanto ao que podia acontecer. Naquele dia, de quarta para quinta-feira, em que chegou a temer-se que houvesse uma corrida aos bancos para levantar o dinheiro, as pessoas começaram a ficar aflitas, os banqueiros em primeiro lugar, mas não só, as pessoas mais variadas, de todas as condições e de todos os partidos. Houve então uma meia dúzia de pessoas que se puseram de acordo para fazer um apelo aos responsáveis dos partidos, para se entenderem entre si, sem se injuriarem nem atribuir reciprocamente as culpas. Por respeito por Portugal e por desejo sincero de que Portugal caminhe bem para um futuro melhor. O que está nas mãos de todos nós.

Mas na Grécia e na Irlanda o FMI não veio trazer grandes alegrias.
É verdade que não veio. Acho, aliás, que os três Estados deviam falar entre si. A União Europeia tem muitas culpas. A Grécia é o berço da nossa civilização. Foi lá que nasceu a filosofia, a democracia e tudo o mais. Devia ter merecido da União Europeia outro respeito. A Irlanda é um país extraordinário, deu um contributo único para o que a América hoje é. E Portugal? Foi quem trouxe a civilização dos outros continentes à Europa, e quem levou a cultura e a religião europeia à China, ao Japão e à Índia, sem esquecer o Brasil. Por isso nos estimam tanto, apesar de serem todos, hoje, grandes países, alguns mesmo, como se diz, emergentes. Somos um Estado com quase nove séculos de história independente, com uma das línguas mais faladas no mundo, em expansão, que merece ser respeitado e ouvido. Estamos há mais de 25 anos na Comunidade Europeia, onde entrámos por direito próprio e depois de termos feito uma revolução de sucesso - que entusiasmou a Europa - e uma descolonização exemplar, aplaudida pelas Nações Unidas. Não devemos, por isso, ter complexos de inferioridade. Temos o direito a sermos respeitados. Portugal é dos países mais prestigiados nas Nações Unidas, membro eleito do Conselho de Segurança, lugar que ganhou contra a Austrália, apesar da sua pequena dimensão, como alguns portugueses estão sempre a dizer... Não devemos ter desses complexos. Os países, como as pessoas, não se medem aos palmos.

Neste momento estamos a ser humilhados todos os dias pelos comissários... 
Não somos tão humilhados como parece. Os portugueses é que se auto-humilham frequentemente com os seus complexos e pessimismo. Portugal tem problemas, é evidente, mas a União Europeia está pior e não se atreveu, até agora, a meter na ordem os mercados especulativos - como devia - nem a defender a nossa moeda comum, o euro. Os líderes europeus não têm estado à altura das suas responsabilidades. Esqueceram a solidariedade e outros valores que são os fundamentos do projecto europeu. Portugal foi atacado depois da Grécia, da Irlanda e da Islândia. Mas outros se seguirão: a Bélgica, a Espanha, talvez a Itália. Onde iremos parar? Aos egoísmos nacionalistas do passado, responsáveis por duas grandes guerras mundiais? Se fosse alemão ou francês não estaria tranquilo. A Alemanha está a esquecer-se que provocou duas guerras mundiais e está a ignorar a reunificação alemã e a solidariedade que lhe foi dada então por toda a União Europeia. A Alemanha não pode querer germanizar a Europa. Tem é de ser cada vez mais Europa, seguindo os exemplos de Adenauer, Schmidt, Willy Brandt e Koln. Esta é a minha posição. Temos de dizer isto muito alto, todos, para salvar o projecto europeu, o mais original e pacífico de sempre.

Nós não temos sido todos muito cobardes, os países do Sul?
Não direi cobardes, direi que aceitámos a "teologia" dos mercados, a loucura dos mercados, a especulação dessas agências de rating que são ilegais e irresponsáveis, ao serviço de interesses inconfessáveis, que podem criar graves problemas a um país, de um momento para o outro. Nem os Estados Unidos parecem escapar... Não somos só nós. Portanto, é preciso defendermos a Europa em primeiro lugar, e a Europa tem de mudar de paradigma, como disse o presidente Obama. Ainda ontem, por exemplo, se ouviu algo extraordinário. Berlusconi, imagine, ficou indignado contra a França quando perante milhares e milhares de fugitivos do Norte de África, que entraram como imigrantes na ilha de Lampedusa, pediu legitimamente auxílio à Europa, que lho negou. Então disse, sem papas na língua: "Se é assim, podemos sair da União Europeia." Para a Itália dizer isso, país fundador da Europa dos 6, é porque a Europa está muito pior do que se pensa. Os actuais governantes europeus que aparecem nas fotografias das cimeiras a rir-se muito não ficam na história com esse sorriso. Ficarão na história com péssimos retratos.

Acha que ficam como os coveiros da Europa?
Se chegarem lá, talvez. Mas espero que não.

Mas são os países do Sul que deviam levantar-se, fazer fileiras?
Devem conversar, claro que sim. E falar alto. Porque devemos todos trabalhar a sério para salvar a União Europeia da decadência para onde caminha...

PS e PSD vão assinar um acordo. Vamos ter um anacronismo que é uma campanha eleitoral onde há um programa comum aos dois maiores partidos?
As duas coisas não são confundíveis: as negociações com a União Europeia e o FMI por um lado; e os programas eleitorais dos partidos por outro. Há uma série de medidas que são aceites por ambos os partidos, pela força das circunstâncias. Mas fora isso, há evidentemente programas diferentes, quanto ao futuro. Há quem ponha o acento tónico em menos Estado e mais privado e há quem ponha o acento tónico num Estado melhor, mais ético e ao serviço dos cidadãos, sobretudo dos desempregados, com trabalho precário e dos mais pobres.

Foi o senhor que convenceu o professor Boaventura Sousa Santos, que está muito mais à esquerda, a assinar o apelo?
Não o convenci. Dei-lho a conhecer, o que é diferente. Boaventura Sousa Santos é um grande sociólogo, de reputação internacional, um homem que sabe politicamente o que quer e não se deixa convencer por ninguém. Limitei-me a mostrar-lhe o texto do apelo, num momento particularmente delicado da vida nacional. Trata-se apenas de um apelo aos partidos para que se entendam e dialoguem uns com os outros. É a falar que as pessoas se entendem. E em democracia não há inimigos. Há alguns adversários.

Mas o Bloco está contra isso e Boaventura Sousa Santos está muitas vezes próximo do Bloco. 
Está próximo do Bloco, é certo. Mas como grande intelectual que é, sabe a importância que tem o diálogo em política e pensa pela sua própria cabeça. Nunca tive a pretensão de o convencer seja do que for. Gosto muito, aliás, de conversar com ele e de o ouvir.

Voltando à vaca fria. Porque é que não pode haver uma coligação agora como houve em 83-85? Por causa dos maus feitios dos líderes do PS e do PSD?
Os tempos mudaram. Na altura do Bloco Central, houve um dado excepcional: a amizade e a admiração recíproca que existia entre o professor Mota Pinto e eu próprio. E, além disso, confiança. Hoje a política está um pouco inquinada, há uma crispação entre os protagonistas difícil de ultrapassar. No parlamento por vezes comportam-se como se estivessem num circo, não têm consideração uns pelos outros. É mau para todos e, sobretudo, para o nosso país, no seu conjunto. Num parlamento democrático não pode haver inimigos. Isso era quando havia ditadura, e os oposicionistas eram metidos na cadeia, espancados, alguns até foram mortos. Portanto tínhamos de ser inimigos, pela força das circunstâncias. Em democracia é outra coisa. Há regras que se cumprem e cordialidade entre os adversários. É assim que deve ser em democracia. É útil para todos que os políticos aceitem as regras de cordialidade que devem existir - para bem de todos - e sejam capazes de se entender entre si, por diferentes que sejam os seus interesses e convicções.

Tem sido acusado de às vezes dizer bem de Pedro Passos Coelho. Quais são as melhores qualidades do líder do PSD? 
Temos velhas relações, dado que o conheci, muito jovem, na juventude do PSD. Sempre foi, comigo, uma pessoa cordial e aberta. Acho-o simpático, mas nunca tive com ele grandes relações de intimidade. Ultimamente tivemos alguns encontros, para estabelecer algumas pontes necessárias. Sem dificuldades. Acho-o uma pessoa bem-intencionada, embora, para meu gosto, demasiado neoliberal. Mas isso nunca impediu um diálogo construtivo entre nós.

E Sócrates também o devia fazer?
Não me cabe dar conselhos ao primeiro--ministro. Só ele lhe pode responder à sua pergunta. Mas para Portugal, no momento crítico em que vivemos, seria bom que os líderes dos dois principais partidos se pudessem entender minimamente.

Acha que o PS já está condenado a perder as eleições depois desta derrota que foi chamar o FMI, tentando tudo por tudo para não o fazer?
Sinceramente, acho que não. Não sou adivinho, mas julgo que está ainda tudo em aberto. Um dos dois grandes partidos ganhará, não sei se com maioria absoluta. E aí é que pode estar o busílis, uma grande complicação. Veremos...

Mas para ganhar as eleições, o que é que o PS deve fazer?
Não sou competente para responder à sua pergunta. No PS, julgo, há bons técnicos de marketing. Mas as próximas eleições são diferentes de todas as outras. Portugal está a viver uma crise grave. É essencial, por isso, falar a verdade aos portugueses, todos os portugueses. Esclareçam-nos primeiro como é que a situação está. Seria muito desagradável se fosse agora o Fundo Monetário Internacional ou o Fundo Europeu que viessem dizer-nos: "Há este buraco aqui que não estava previsto, ninguém sabia que existia. E há mais este ali." Os portugueses querem a verdade, e não propaganda eleitoral. Querem também conhecer a estratégia para sairmos da crise. Não basta fazerem-nos apertar o cinto, é indispensável dizerem-nos para onde vamos e como. Não basta "simpatizar com um líder e embirrar com o outro". Porque os portugueses, julgo eu, pensam que a situação, e como a resolver, transcende as simpatias e as cores partidárias.

O próprio PS tinha de assumir onde é que errou?
Obviamente. A autocrítica, neste momento, impõe-se. E fica sempre bem.

Surpreendeu-se com a decisão do seu amigo Fernando Nobre ser cabeça-de-lista do PSD por Lisboa?
Quando me fizeram essa pergunta respondi: "Fiquei estarrecido." Não creio que deva acrescentar mais nada. Como se recorda, durante toda a campanha mantive-me sempre calado. Limitei-me a dizer ao Sócrates - e a escrever - quando me informou sobre a escolha do candidato do PS, que considerava um grande erro, para ele e para o PS. E depois nunca mais me pronunciei sobre o assunto.

Mas havia alguns chamados soaristas, incluindo a sua filha Isabel Soares, que apoiaram Fernando Nobre...
Soaristas não sei o que seja. A minha filha, que para mim é muito querida, sempre se declarou socialista. Nunca soarista. Tem o grande mérito de pensar pela sua cabeça e de ser uma excelente pedagoga, saiu ao meu pai e talvez um pouco à mãe, não a mim. Tem uma vida muito ocupada e só excepcionalmente se ocupa da política. Apoiou, de facto, Fernando Nobre, porque tinha por ele consideração e simpatia. Foi, de resto, na minha família mais próxima, a única que o fez. A minha mulher, por exemplo, não o apoiou, ao contrário do que os jornais disseram...

Achou estranho que Fernando Nobre fosse para as listas do PSD como candidato a presidente da Assembleia?
Achei, já o disse. Fiquei estarrecido. E mais não quero dizer... Pareceu-me ser algo de extemporâneo e absurdo.

Se José Sócrates perder as eleições de 5 de Junho deve abandonar a liderança do PS?
Isso deve ser ele a decidir junto das instâncias do PS. Durante os 13 anos que fui secretário-geral do PS, perdi algumas eleições mas não deixei de ser secretário-geral do PS, nem nenhum camarada mo sugeriu.

Como é que a Europa vai sair disto, da crise do euro?
Temos hoje uma Europa de 27 países, dos quais 24 são extremamente conservadores. Se fossem democratas-cristãos ficaria radiante; mas não, são populistas, populares e cada vez mais neoliberais, no plano económico e social. Estão a conduzir a União Europeia para a decadência e para a desagregação. É uma tragédia para a Europa e para o mundo. Os partidos socialistas também não estão bem. Alguns deixaram-se converter à "terceira via" de Blair, confundindo a política com o negocismo... Sempre pensei que política e negócios são incompatíveis. Quem quer ganhar dinheiro não vai para a política, que é um serviço público orientado por princípios éticos em que o que conta são as pessoas e não o dinheiro. Esta, quanto a mim, é a ética republicana e socialista, que sempre segui. Quando, depois do 25 de Abril, regressei a Portugal, tanto o Zenha como eu, que éramos profissionalmente advogados, resolvemos devolver à Ordem dos Advogados os nossos cartões, porque pensámos que, sendo ministros e deputados, não devíamos continuar a ser advogados e a defender interesses privados. Até hoje.

Defende que os políticos nem sequer deviam exercer advocacia?
É isso mesmo. Porque os advogados defendem interesses privados e os políticos interesses públicos. A confusão entre as duas coisas dá geralmente mau resultado.

Mas nem PS nem PSD conseguem impor isso.
Não conseguiram até hoje. Mas deviam fazê-lo. Agora, em tempo de crise, era uma boa altura, porque quem quer ganhar dinheiro a sério não deve ir para a política. Na política perde-se normalmente dinheiro, não se ganha. Foi o que sempre me aconteceu a mim.

Jorge Coelho na Mota-Engil, Pina Moura e Vitorino...
Não cito nomes nem me permito julgar ninguém. Limito-me a dizer que a política é uma coisa e os negócios são outra, e que não é salutar que haja confusão.

Na última sondagem da Marktest, 86% dos portugueses apontam Sócrates como o principal culpado da crise. O PS já não vai conseguir ganhar estas eleições?
Não sei. Mas as sondagens nunca me impressionaram muito. Porque em política, as circunstâncias mudam muito rapidamente e obrigam a repensar as opiniões das pessoas. A imprevisibilidade é a regra.

O que pensa da recusa do PCP e do Bloco de Esquerda em se reunirem com a troika?
Muito mal. Porque voluntariamente põem--se à parte da política portuguesa. Isolam-se no pior momento e será difícil que os trabalhadores os compreendam neste seu gesto tão displicente...

Cavaco Silva também é muito criticado pelos portugueses na gestão da crise. Surpreendeu-o que o Presidente tivesse ficado calado tanto tempo? 
Confesso-lhe que não o compreendo neste silêncio, quando o país mais necessitava de o ouvir. O Facebook, de que tanto fala, não compensa o desejo popular de ouvir o Presidente, num momento tão angustioso como o que atravessamos.

Aceitou o convite feito aos ex-Presidentes da República para comemorar o 25 de Abril em Belém. Num momento como este, que significado pode ter esta comemoração?
Aceitei-o sem a menor hesitação. Felicitei, de resto, o Presidente por ter tido a ideia de realizar um acto de homenagem, sempre devido, aos capitães de Abril, no dia da Revolução dos Cravos, convocando os três ex-Presidentes para estarem ao seu lado, num acto patriótico e em que o apaziguamento político é tão necessário.
Ana Sá Lopes, jornal “i”, 23-04-2011

Cobra-real, a cobra mais venenosa do mundo
O veneno do Sr. Soares:
"Acho-o uma pessoa bem-intencionada, embora, para meu gosto, demasiado neoliberal."
Eu também gosto muito do Lula, embora, para meu gosto, demasiado grosso.
Aprecio demais o Sr. Soares, embora ache que já se foi, mas ainda não lhe disseram.

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