José Manuel Fernandes
A retórica dos jovens turcos da direcção do PS não abre espaço a ilusões:
os seus ataques ao "radicalismo neoliberal" da coligação são uma
máscara para a sua própria deriva esquerdista. O PS syrizou.
Há, na política, mistérios insondáveis. No arranque do debate do Programa
de Governo confrontamo-nos com mais um desses mistérios: porque é que o PS
escolheu para abrir a ronda de perguntas ao primeiro-ministro Pedro Nuno
Santos [foto]?
Imagino que muitos leitores nem saibam muito bem quem é Pedro Nuno
Santos, uma vez que os partidos estão cheios de antigos presidentes das jotas
(como ele) e que há imensos presidentes de distritais (ele preside à de
Aveiro). Mas eu posso esclarecer: Pedro Nuno Santos é aquele senhor alto, de
barbas, que apareceu ao lado de António Costa quando ele começou a sua “ronda”
de negociações. Depois foi ele que ficou encarregue da coordenação política das
conversas com os partidos da esquerda. Por fim, é também vice-presidente da
bancada socialista. Um político em ascensão, não se duvide.
Só que Pedro Nuno Santos não é só isto. É também o mesmo deputado
socialista que, em Dezembro de 2011, teve uma tirada que ficou para história da
forma irresponsável como o PS já nessa altura fazia oposição.Vale a pena recordá-la: “Estou a marimbar-me para o banco
alemão que emprestou dinheiro a Portugal nas condições em que emprestou. Estou
a marimbar-me que nos chamem irresponsáveis. Temos uma bomba atómica que
podemos usar na cara dos alemães e dos franceses. Essa bomba atómica é
simplesmente não pagamos. Ou os senhores se põem finos ou não pagamos. E se não
pagarmos e se lhes dissermos, as pernas dos banqueiros alemães até
tremem”. Assim, tal e qual. Porventura pensando que não havia microfones por
perto (falava num jantar de Natal em Castelo de Paiva).
Pedro Nuno Santos, com esta e outras tomadas de posição, sempre fez parte
daquela parte da bancada socialista que muitas vezes mostrava estar mais perto
do Bloco de Esquerda do que do seu próprio partido. Assim esteve até que chegou
António Costa e o promoveu ao secretariado. E até que o mesmo António
Costa lhe deu todo o protagonismo que tem vindo a assumir neste pós-eleições. O
resultado ficou ontem à vista numa das mais desastradas intervenções
parlamentares de que tenho memória em debates desta natureza.
Mas a falta de tino de Pedro Nuno Santos não valeria uma nota de rodapé
não se desse o caso de ele ser um dos que insiste em grosseiras distorções da
realidade para tentar demonstrar o indemonstrável. No fundo o que ele fez ontem
(e depois fizeram também deputados das bancadas do PCP e do Bloco, para além do
sempre inefável João Galamba, para quem os décibeis que atira à cara – e aos
ouvidos – dos adversários parecem ser permanente fonte de inebriamento) não foi
mais do que fizera há uns dias numa entrevista ao Público. Por comodidade, e por não ter
ainda a transcrição da sua intervenção parlamentar, vou partir desse texto.
Numa altura em que o país assiste, entre o incrédulo e o estupefacto à
deriva do PS, em fuga para terrenos que nunca foram os dele, o grupo dirigente
que promoveu Pedro Nuno Santos procura explicar essa viragem com uma viragem
simétrica da coligação, e do PSD em particular. Eis o seu argumento: “afastamento do PSD do centro facilitou”
acordo à esquerda. Esse alegada viragem à direita é depois, na sua opinião,
ilustrada por um conjunto de ignóbeis malfeitorias contra o Estado Social. Só
que há, em todo o seu discurso, um problema: tudo o que diz não é verdade. Nem
sequer é uma deficiente interpretação da realidade: é pura e simplesmente
falso.
Como repetiu esses argumentos no Parlamento, não posso deixar de os
desmontar, ponto por ponto. Não porque uma mentira muitas vezes repetida se
torne numa verdade, mas porque em política o que parece, é. E não quero que,
pelo silêncio, possa parecer que tem razão.
Vamos então ao que disse ao Público para demonstrar que “o PSD
abandonou o centro político ao abandonar o consenso nacional na preservação e
defesa do Estado Social”. Usou sobretudo dois argumentos:
·
1. “Nos últimos quatro anos empurrou-se para fora do SNS centenas de
milhar de portugueses com o aumento das taxas moderadoras.”
É falso, rotundamente falso. Primeiro, porque o número de portugueses
isentos do pagamento de taxas moderadoras aumentou nos últimos quatro anos:
neste momento as estatísticas oficiais indicam que há mais de seis milhões de utentes
isentos de pagamento de taxas moderadoras por razões de insuficiência
económica, a que se acrescentarão ainda quase 900 mil doentes crónicos com
idêntica dispensa. Mesmo assim, será que os quatro milhões de utentes que
sobram, os portugueses com menos dificuldades económicas, abandonaram em massa
o SNS por causa das taxas moderadoras? Fui de novo à procura de uma resposta e
não foi difícil de encontrá-la, pois vem na “Avaliação do impacto de políticas
de saúde”, um trabalho realizado por uma equipa dirigida por Pedro Pita Barros,
um académico reputado e independente e publicado no passado mês de Setembro. Aí se diz, taxativamente,
que apenas uma minoria da população afirmou ter sentido dificuldades no acesso
a cuidados de saúde, mas sobretudo por causa do preço dos medicamentos que,
mesmo tendo baixado muito (essa descida ninguém discute), ainda pesam nos
orçamentos de algumas famílias. Dentro dessa minoria, as taxas moderadoras não
evitaram, “de forma generalizada, a utilização dos serviços de saúde”. Mais
adiante escreve-se mesmo que “no campo do acesso a cuidados de saúde, as
barreiras de acesso ao SNS, avaliadas pela utilização e necessidade de
utilização da população, não são significativas para a generalidade da
população e, ao contrário do que frequentemente se assume com base em situações
episódicas, não aumentaram durante o período de crise económica.” Isto são factos
baseados em estudos – o discurso de Pedro Nuno Santos são apenas impressões
baseadas no preconceito.
·
2. “O Governo PSD-CDS, ao abrigo da liberdade de escolha, permite que
se façam contratos de associação com escolas privadas onde nas proximidades
existem escolas públicas mesmo a funcionar abaixo da sua capacidade.”
É caso para dizer que é preciso ter lata. Primeiro, porque boa parte dos
contratos de associação mais discutíveis foram decididos por governos
socialistas. Depois, porque nos últimos quatro anos do Governo de Sócrates se
gastaram 900 milhões de euros com esses contratos, e nestes quatro anos esse
gasto caiu para 600 milhões – e repare-se que é um “gasto” que representa uma
poupança, pois o que o Estado paga por aluno nos contratos de associação é
menos do que gasta por aluno na rede estatal. Por fim, bastaria consultar de
novo os dados oficiais e publicados para verificar que, se
alguma coisa aconteceu durante a última legislatura, foi a diminuição do número
de escolas com contratos de associação: eram 105 em 2009/2010, foram 84 em
2013/2014. Ou seja, um quinto das escolas perdeu esse estatuto. É caso para
dizer: neoliberal era José Sócrates.
Estes são apenas dois exemplos do tipo de mistificação que se tem feito
em torno de uma alegada “destruição do Estado Social”. Até porque os
números, como o algodão, não enganam: o peso da despesa pública social no
PIB situou-se em 2014 nos mesmos 25,2% que tinha em 2010, estando bem acima da
média da OCDE.
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Gráfico preparado por Jorge Costa
|
A única coisa que aconteceu é que se conteve o rápido crescimento das despesas nas áreas sociais, um crescimento que ameaçava de falência todo o sistema. De resto não se tenham grandes ilusões: devido às dinâmicas demográficas, Portugal tenderá a gastar cada vez mais dinheiro com os sistemas de segurança social e de saúde (aqui também por efeito da evolução tecnológica). Se não se fizer nada, deixando o sistema evoluir por si, ele ganhará vida própria e tornar-se-á ainda mais incomportável do que já é hoje.
Neste quadro o normal, para mais num dirigente de um partido de esquerda
que está sempre a falar dos mais pobres, seria que este defendesse a
necessidade de dar realmente atenção aos que menos têm. E se preocupasse a
sério com a sustentabilidade dos sistemas de protecção social. Mas não. A
visão de Pedro Nuno Santos na mesma entrevista ao Público não deixa até de ser
muito peculiar: “É a classe média que precisa, antes de mais, de um Estado
Social forte, público e universal, tendencialmente gratuito. E é essa classe
média que, com a degradação dos serviços públicos, mais sofreu nos últimos
quatro anos. E é para a classe média que o PS fala, quando fala da defesa do
Estado Social.” Venha a mim, que a vida dos pobrezinhos, como toda a gente
sabe, é um mistério…
É caso para dizer: que confusão que deve ir naquela cabeça! E é caso para
ficarmos ainda mais espantados quando sabemos que foi este o dirigente que
António Costa escolheu para abrir o debate com o primeiro-ministro, em vez de o
fazer ele próprio, como líder e como sucedeu nas outras bancadas (que, na
resposta, literalmente o atropelou, o que face ao nível de desligamento da
realidade nem era difícil.
Mas não nos enganemos: se o discurso deste dirigente do PS é
particularmente desequilibrado, ele reflecte, no essencial, o pensamento e a
estratégia de António Costa. O que se pretende é criar a ilusão de que não foi
o PS que se moveu para a esquerda, abandonando o centro e a sua tradição
reformista, deitando fora pelo caminho a parte mais inovadora do seu programa
eleitoral para conseguir o apoio condicionadíssimo das outras esquerdas, mas
que foi antes o anterior executivo que tinha um “radicalismo ideológico
neoliberal” que tornou impossível qualquer diálogo. Infelizmente esta retórica
– em que o próprio Francisco Assis alinhou – levou o PS a sentir-se e a pensar
como uma espécie de Syriza mais bem comportado, abrindo caminho à ala mais
radical de que Pedro Nuno Santos é apenas um dos rostos mais visíveis.
Como já escrevi e rescrevi, um dos maiores pecados do anterior governo
foi ser menos reformista do que o necessário e menos liberal do que o exigido
num mundo competitivo como o nosso – em algumas frentes, há socialistas
europeus com políticas mais liberais do que, na prática, as aplicadas por
Passos Coelho (veja-se, por exemplo, o que Renzi está a fazer com as leis
do trabalho em Itália). Se alguma coisa distingue Portugal é vivermos num
ambiente cultural arcaico, iliberal tanto à esquerda como em boa parte da
direita, um mal antigo que explica muito do nosso atraso político e económico.
Pouco antes das eleições, num almoço que tive com os correspondentes da
imprensa estrangeira em Lisboa, perguntaram-se se o programa de Centeno não
poderia ser o programa de que a esquerda socialista e social-democrata europeia
anda à procura há mais de uma década. Disse que achava pouco provável, mas
estava longe de saber que era apenas uma cortina de fumo. Na verdade, como
disse Álvaro Beleza, também ele dirigente socialista, numa entrevista este fim de semana, o que se passa é que
“esta direcção do PS é uma deriva esquerdista”. Pois é. E vamos todos pagar
muito caro por isso, se é que já não estamos a pagar.
PS. Já depois de esta crónica estar
escrita, foi conhecido o teor da moção de rejeição do Programa do Governo
apresentada pelo PS. A sua linguagem não podia ser mais radical, reduzindo a
acção do anterior governo a uma deriva “para implementar uma agenda
radical e experimentalista, que foi muito além do que o programa previa, não
por necessidade, mas por uma consciente e deliberada opção ideológica”. Mais:
para o PS isso aconteceu não em nome da “sustentabilidade das contas
públicas, mas sim a alteração da relação de forças”. Se não soubéssemos que foi
o PS que negociou o memorando da troika, que tinha metas para o défice que
foram sendo suavizadas ao longo do seu período de vigência (ou seja, ficou-se
aquém da troika neste como em muitos outros pontos), até poderíamos acreditar
nesta história da carochinha. Mas isso é impossível: não só se trata
de uma tentativa grotesca de reescrever a história, como mostra até que
ponto o actual PS passou a utilizar a mesma linguagem radical da
extrema-esquerda.
Título e Texto: José Manuel Fernandes, Observador,
10-11-2015
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