João Miguel Tavares
Sem ironias, António Costa revelou-se um negociador admirável, de uma
estirpe que o país não conhecia desde o professor Oliveira Salazar.
Depois de António Costa ter
enganado os eleitores (com uma coligação de que não se sabia), ter enganado o
PSD e o CDS (com reuniões que não queria) e ter enganado o presidente da
República (com um acordo que não havia), resta uma única esperança para
Portugal: que António Costa prossiga a sua admirável senda de aldrabice
política e consiga no futuro próximo enganar igualmente o Bloco de Esquerda e o
Partido Comunista. As intrujices de Costa nunca deveriam ter chegado tão longe,
mas já que chegaram, é rezar para que continuem, na expectativa patriótica de
que quem vira quatro vezes à esquerda acabe por regressar à direcção certa.
Sem ironias, António Costa
revelou-se um negociador admirável, de uma estirpe que o país não conhecia
desde o professor Oliveira Salazar. Tal como a formiga de José Afonso, Costa
furou, furou, furou sem parar, transformando uma derrota por muitos numa
sucessão de vitórias por poucochinho. E a verdade é que neste momento, apoiado
num acordo com mais buracos do que um queijo suíço, ele já conseguiu içar meia
perna para o cadeirão de São Bento, perante a comoção generalizada da esquerda
lusitana.
Conta-se que Manuel Alegre,
recordando a sua infância em Argel, terá mesmo derramado uma lágrima sobre o
documento, enquanto abraçava espiritualmente Jerónimo de Sousa. O mesmo
Jerónimo de Sousa que declarou acerca de tão histórico acordo — o tal que nem
orçamentos de Estado dá garantias de aprovar — que ele foi aceite por
“unanimidade informal”, um género de unanimidade que o PCP costuma obter sempre
que não leva propostas a votos. Parece que é isto a “solução estável, coerente
e credível” que o presidente da República exigiu.
Receio bem que a esquerda
portuguesa não tenha cura: ela irá sempre preferir um soneto a um quadro Excel,
e nunca acreditará que a política não é um dos ramos da literatura. O
entusiasmo juvenil que por aí anda, após António Costa ter ido à televisão apresentar
um novo programa socialista corrigido com 70 medidas que variam entre o aumento
da despesa e a diminuição da receita, não pára de me espantar. Segundo os
socialistas, o país está péssimo e a austeridade da direita foi uma tragédia. E
no entanto, tão horroroso horror foi suficientemente eficaz para que o PS tenha
agora dinheiro para acomodar no seu programa o faustoso pagamento do apoio do
Bloco e do PCP.
Após vários flic flacs e
mortais encarpados, chegamos a isto: o actual programa da coligação PSD-CDS tem
mais medidas de Mário Centeno do que o próprio programa do PS. Mas quem se
chateia com isso? Tirando Francisco Assis, Sérgio Sousa Pinto e poucos mais, o
Largo do Rato vive dias felicíssimos. É a vitória de Maria Antonieta: “Não há
pão? Comam acordos históricos.” Nada ali está quantificado, não há qualquer
visão de fundo para a economia portuguesa, nem um só micróbio reformista
sobreviveu. Sobrou apenas o objectivo de travar a austeridade e acabar com as
privatizações. É uma pura coligação negativa — mas, ainda assim, a esquerda
canta e dança, vaporosa e feliz.
Oh, sim, este é um acordo
absolutamente novo. Mas é um acordo absolutamente novo para nos manter num
Portugal absolutamente velho. Se António Costa acreditar naquilo que está a
assinar, estamos tramados. Para utilizar uma linguagem que a esquerda conhece
bem, este é o protótipo de um acordo reaccionário — uma triste união de forças
conservadoras que tem como único objectivo manter um status quo que o país já
não consegue pagar.
Título e Texto: João Miguel Tavares, Público,
10-11-2015
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