Não há qualquer diferença no nível de abjeção
entre ver João Oliveira no meio da rua a defender Maduro ou o líder do PNR a
defender o fascismo.
João Miguel Tavares
Quando digo que somos todos
demasiado complacentes com o PCP estou a incluir-me nesse “todos” – e por isso
publicamente me penitencio. Também eu tenho dificuldade em resistir à pele
tisnada de Jerónimo de Sousa, aos sulcos campesinos da sua face, aos impecáveis
passos de dança de um profissional dos bailes, ao notável reportório de
pregões, máximas e analogias populares. Álvaro Cunhal metia medo. Carlos
Carvalhas metia dó. Jerónimo de Sousa parece o avô escanhoado da Heidi –
austero por fora, amável por dentro. É assim que eu o imagino. É assim que
quero que ele seja. É assim que nós, ex-jovens que não vivemos o Verão Quente
de 1975, que temos de ir ao Google ver como se escreve Soljenítsin, para quem a
URSS era apenas o país dos louros que o Rambo metralhava, gostamos de olhar
para o PCP. Não como um partido, mas como um pedaço de memorabilia. Uma
agremiação de amigos da classe operária para a qual olhamos com um misto de indulgência
e nostalgia.
É impressionante a força desta
armadilha sedutora. Não sou só eu que me predisponho a ser enganado – é o
próprio PCP que promove essa ambiguidade. Nas entrevistas aos seus líderes, há
sempre um véu entre aquilo que dizem e aquilo que realmente pensam. Quando
algum comunista mete o pé na argola – Bernardino Soares a declarar que a Coreia
do Norte talvez seja uma democracia, por exemplo – há sempre um sururu, mas
logo surgem os paninhos quentes: o PCP já virou oficialmente costas ao
estalinismo; a ditadura do proletariado tem nuances; e por aí fora. As posições
internacionais, onde o PCP-troglodita mais facilmente se manifesta, são
deixadas para artigos obscuros no Avante!. Perante as câmaras de televisão, só
ouvimos defender os direitos dos fracos e dos trabalhadores. E quem está contra
os direitos dos fracos e dos trabalhadores?
E, no entanto, esta
complacência tem um custo, como se viu esta semana. Uma agremiação chamada
Conselho Português para a Paz e Cooperação – mais uma daquelas instituições,
como Os Verdes, que finge ter autonomia do PCP, mas que se limita a ser uma
mera extensão para efeitos propagandísticos – resolveu promover uma “ação de
solidariedade” para com “o povo da Venezuela”. Tradução: uma manifestação em
defesa de Nicolás Maduro, contra aqueles que pretendem – e cito – “atacar o
processo bolivariano e as suas realizações” (basicamente, todos os esfomeados
do país). A esta bonita iniciativa juntou-se, imaginem, a Banda do Exército,
porque alguém inventou um “ato protocolar” de comemoração do Dia da
Independência da Venezuela junto à estátua de Simon Bolívar. Repare-se na
perversão do empreendimento: à boa maneira soviética, os meios do Estado são
colocados ao serviço da propaganda comunista e da defesa de um regime abjeto.
Ora, convém que sejamos
claros, até porque das fotos do evento consta o próprio líder parlamentar do
PCP, João Oliveira: isto ultrapassa em muito os textos trogloditas do Avante!.
É uma vergonha para o país. E devia ser uma vergonha para o PS. Não há qualquer
diferença no nível de abjecção entre ver João Oliveira no meio da rua a
defender Maduro ou o líder do PNR a defender o fascismo. Para a próxima vez,
talvez José Pinto-Coelho possa recrutar a Banda do Exército para tocar o hino
da Mocidade Portuguesa. São níveis absolutamente equivalentes de repugnância –
e, numa altura em que a Venezuela “bolivariana” se afunda e o PCP sustenta o
Governo em funções, sublinhar isto é uma obrigação moral.
Título e Texto: João Miguel Tavares, Público,
8-7-2017
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