Gabriel Mithá Ribeiro
A esquerda branca cujos rostos andam pela
universidade e pela comunicação social transformou a pobreza material das
minorias, por tradição circunstancial, em miséria moral que torna a pobreza
endêmica
A troca de opiniões entre, por
um lado, Maria de Fátima Bonifácio (crítica das quotas para as minorias raciais) e, por outro lado, Manuel Carvalho (Público), Marta Muckznic (Observador), Ferreira Fernandes (Diário de Notícias) e um rol de
comentadores foi bastante sintomática da psicopandemia em que vivemos. As
razões são tantas que abordarei apenas algumas.
Uma panóplia de brancos
discutiu com vivacidade clubística o destino das minorias raciais sem que
indivíduos que partilham essas identidades interviessem. Pelo menos, com ou sem
a opinião de «pretos» e ciganos, nada se alteraria numa troca
de argumentos entre brancos. A omnisciência branca ou, em rigor, o narcisismo
branco basta-se a si mesmo.
Este novo paternalismo branco
limitou-se a reciclar o do tempo colonial. Agora já não é o dever moral dos
brancos «civilizar e cristianizar os pretos», mas proteger os
ditos cujos, mais os ciganos, da «discriminação». As raças
inferiores, essas, continuam no quintal, no recreio, infantilizadas.
Em dias de tempestade verbal
como esta, se me sobra algum respeito (ainda assim muito) reservo-o a brancos
que falam em nome próprio, em defesa da sua identidade branca, como Maria de
Fátima Bonifácio. Não me sinto obrigado a respeitar brancos que usurpam
sentimentos, identidades, representatividades de terceiros. Não por uma birra
qualquer, mas porque usurpar identidades alheias é profundamente imoral. A
representatividade social existe para ser tomada a sério. Os homens não representam
as mulheres; os idosos não representam os jovens; os ricos não representam os
pobres; logo, os brancos não representam negros, ciganos ou quaisquer outros.
Quem não respeita isto, não
respeita os outros, não respeita a democracia, não reconhece dignidade às
outras identidades, mesmo quando elas preferem o silêncio, ou sobretudo por
isso. Há sempre razões para silêncios, mesmo quando não são óbvias. O silêncio
pode ser a forma mais inteligente, em certas matérias, para os indivíduos
pesarem custos e benefícios a longo prazo.
É preciso deixar muito claro
que a questão racial tem uma dimensão de dor psicológica para a intimidade de
negros, mestiços, mulatos, ciganos e outros mais, e pode não ser tanto pelas
razões propaladas, antes por uma impossibilidade quase genética de os
indivíduos se descartarem de responsabilidades próprias no seu destino, nos
seus sucessos e falhanços. Trazer tais matérias para a praça pública pode ser
justamente o contrário da solução que a sanidade mental dos indivíduos pode necessitar.
Há matérias em que não se deve ser invasivo da intimidade, sensibilidade,
identidade de terceiros. Se é para ser estridente, desbocado, deixem que as
minorias o façam na primeira pessoa.
Ninguém tem o direito de
forçar um indivíduo a tomar partido, a tomar posição ou a assumir assuntos que
pode querer guardar para si mesmo, para a sua intimidade. Por que razões é que
quando se discute racismo são quase todos brancos? O que hoje se passa é de tal
modo grosseiro que equivale mais ou menos a questionar o filho de pais de
pertenças raciais distintas: Olha lá, tu és do «clube» racial da tua
mamã ou és do «clube» do teu papá? Afinal tu és branco como o teu pai ou
«preto» como a tua mãe?
Por absurdo que possa parecer,
é deste modo que se comportam os atuais sistemas sociais face a situações de
miscigenação racial, e pertenças raciais das minorias em geral. As questões
identitárias foram remetidas para o espaço público por vias de tal modo
patológicas que as nossas sociedades necessitam de uma profunda reforma moral.
Deixar em aberto a questão das
identidades raciais, não ser social ou, pior, politicamente invasivo na matéria
para que cada um decida o sentido e relevância que lhes queira atribuir em
função da sua própria identidade é, por norma, a opção mais digna e favorável à
gestão do interior de famílias que integram identidades raciais distintas, uma
realidade crescente nos dias que correm, mas também a opção mais favorável à
gestão de questões inter-raciais que oriente a ação do Estado. O papel pedagógico
do Estado é o de se demarcar do fator racial, regular-se por princípios
universais permitindo que a vida social tenha autonomia na gestão por si mesma
do que é complexo, íntimo.
Colocar sequer a hipótese de
quotas raciais jamais libertará os seus defensores de propensões totalitárias,
violentas, que atingirão os supostos beneficiados, além dessa atitude ser
contrária à dignidade de qualquer moral social, o referente por excelência que
faz funcionar as sociedades. Estas só escapam à anomia (uma forma polida de
dizer loucura) se se orientarem por valores, normas, princípios e regras
universais válidas do mesmo modo para todos. É tão perversa a discriminação
negativa (do passado) quanto a discriminação positiva (do
presente) porque num e noutro caso está-se justamente a perpetuar a
discriminação social, a fragmentação das sociedades, a recusar a unidade do
género humano.
Há outro detalhe da loucura
dos tempos. Ao longo de quatro séculos, negros das mais variadas origens,
estatutos (as comunidades ancestrais africanas organizam-se por linhagens,
isto é, desde a origem que marcam diferenças sociais), línguas, crenças,
hábitos, tradições em África eram, depois, amalgamados nos países de destino da
escravatura como se fossem todos iguais. Bastava serem negros para se
reconverterem numa massa coletiva indistinta homogénea, para desaparecerem
enquanto indivíduos e, com isso, dissolvia-se a singularidade e subjetividade
que a condição humana acarreta. Por ironia, esse passado está hoje bem vivo
pela ação do igualitarismo de esquerda.
Faz parte do
ativismo-progressista insistir em distribuir rótulos de negros vitimizados
a todos os não-brancos. Nessa amálgama cabem o dr. António Costa e demais canecos, mulatos,
mestiços das mais variadas ascendências, africanos de distintas proveniências,
ricos e pobres, sul-americanos, asiáticos, árabes e berberes, animistas,
cristãos ou islâmicos, nascidos dentro e fora do Ocidente, entre múltiplas
diversidades que até podem alimentar conflitos entre elas, no entanto, enquanto
minorias tuteladas pela esquerda ficam compelidas a amar-se entre si e
instigadas a odiar os brancos, a sua nova carta de alforria. Os ativismos
antirracistas e anti-discriminação fazem tábua rasa da multiplicidade de
sentidos de pertença, interesses, hábitos de vida, atitudes, comportamentos,
costumes, tradições, condições socioeconómicas dos não-brancos.
Em matéria de relações raciais
existe, portanto, uma relação direta entre ignorância e defesa convicta de
determinadas posições. E não me estou a referir a Maria de Fátima Bonifácio que
teve a dignidade de se colocar na pele branca, a dela. Estou a referir-me aos
que partilham essa mesma pertença racial, mas que vestem sem pudor a pele
de «pretos», ciganos ou de outras minorias. O tal Rui
Pena Pires que espoletou a atual vaga em favor das quotas para as minorias no
parlamento ou nas universidades faz parte de uma universidade que nunca me deu
uma oportunidade, o que me fez bater com a porta. Há minorias e minorias,
«pretos e pretos», pobres e pobres. O ISCTE-IUL havia de ter vergonha nesta
matéria, uma universidade carregada de brancos especializados em África – a
minha área de especialização – e que fez de mim um proscrito intelectual,
felizmente o preço da minha liberdade. E vejam-se as barbaridades que se
escrevem e dizem sobre África. As quotas não são para os «pretos» e «ciganos»,
são para fabricar esquerdistas.
Mas é importante clarificar
ainda outra questão. O que marca as sociedades ocidentais é o primado do
indivíduo sobre o coletivo, sendo o inverso na tradição islâmica ou na tradição
soviética. Isso para sublinhar que, no mundo ocidental, nunca serão os negros
ou os ciganos enquanto coletivos a «subir na vida», mas todos os
indivíduos de todas as pertenças raciais, e cada um por si. Negros, brancos,
mestiços, pobres, remediados e todos os demais. É por serem assim que as
sociedades ocidentais articulam, melhor do que muitas outras, mobilidade social
com coesão social.
Por isso, é do caminho
cultural da descoberta do indivíduo enquanto tal de que mais necessitam os
segmentos que mais recentemente se vão integrando na tradição ocidental, as
minorias.
Acontece que só é possível
libertar o indivíduo do seu grupo de pertença primário ou natural (racial,
religioso, étnico) quando o meio social é favorável à crítica social, ainda que
ela possa ofender. É tão fundamental a crítica social entre os mais variados
grupos de pertença, quanto – como muito bem explicou Nietzsche – a crítica
virada para o interior do próprio grupo de pertença. A última é a condição
primeira da libertação do indivíduo do coletivo primário a que está filiado,
isto é, nenhum indivíduo é livre se não partir de pressuposto de criticar
sempre que entender o seu grupo de pertença, a sua religião (pessoal, familiar
ou dos ascendentes), o seu estado, os que no quotidiano estão mais próximos de
si, as suas origens. Sem isso não existe liberdade que, no Ocidente, ou é
individual ou simplesmente não existe. E não existindo nas sociedades livres e
dinâmicas, o indivíduo não se consegue afirmar.
A desgraça negra, cigana ou
islâmica que há décadas as empurra para a guetização é justamente filha do
paternalismo da esquerda. O texto de Maria de Fátima Bonifácio deixou isso a
nu. A esquerda impede, e de forma dolosa, qualquer crítica vinda de fora às
minorias raciais, étnicas ou religiosas. Quem o faz é logo «racista»,
«islamofóbico», entre outros rótulos que visam o seu silenciamento e, se
possível, assassinato social da branca ou branco que arrisque tal ousadia.
Desse modo, não apenas o indivíduo
pertencente a minorias sensíveis não se liberta do seu coletivo guetizado, como
ainda quem pertence a uma minoria está interditado de criticar os seus grupos
de pertença ou, no mínimo, o aparelho ideológico em peso (imprensa,
universidades, ensino, partidos políticos, intelectuais, meios artísticos)
desincentiva fortemente tais ousadias.
Mesmo que tenha razões de
sobra (querer estudar, viver tranquilo, trabalhar, estar em casa em segurança e
sem ser incomodado pela música do vizinho, educar os filhos e filhas, entre
outros), o pobre não pode criticar o pobre, o negro não pode criticar o negro,
o cigano o cigano, o islâmico o islâmico, por aí adiante. Todos só podem
criticar o branco. É assim que a esquerda, a nova escravocrata, os educa a
afundarem-se nos seus bloqueios e traumas.
A esquerda branca cujos rostos
andam pelas universidades e pela comunicação social – Rui Pena Pires,
Boaventura Sousa Santos, Manuel Carvalho, Ferreira Fernandes, Daniel Oliveira,
Fernanda Câncio, Isabel Moreira, Alexandra Lucas Coelho, entre tantos outros –
transformou a pobreza material das minorias, por tradição circunstancial, em
miséria moral que torna a pobreza endémica. Estamos perante um grupo de
indivíduos com rostos e nomes concretos (fora os internacionais) que mais tem
produzido pobreza, instabilidade social, violência, desintegração social entre
as minorias. Sujeitos moralmente patológicos.
Claro que estas matérias não
se esgotam aqui. Mas é por uma profunda diferença na orientação da moral social
(matéria para outros textos) que são contranatura – e ainda bem! – as
aproximações entre a direita e a esquerda. Não vejo qualquer problema moral,
bem pelo contrário, na aproximação entre a direita moderada e ideias e
movimentos que uns apressados rotulam de extrema-direita. Antes
vejo um problema moral profundo na aproximação entre a direita moderada e a
esquerda moderada e qualquer outra esquerda, as últimas moral e
intelectualmente falidas e, por isso, nociva para as sociedades.
Título e Texto: Gabriel Mithá
Ribeiro, Observador,
10-7-2019
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