segunda-feira, 22 de julho de 2019

[Aparecido rasga o verbo] Instante de longos punhais

Aparecido Raimundo de Souza

NÃO VIA NADA ALÉM DO QUE me deveria ser permitido enxergar. Meus olhos se mostravam cansados, e algo que desconhecia fazia-os piscarem intermitentemente. Afastei num esgar repentino a visão do quadro que espiava. Cocei as pálpebras com os dedos da mão esquerda e fechei os ouvidos às vozes que me chegavam deturpadas. As horas no meu relógio de pulso pareciam sem pressa de seguirem os ponteiros, enquanto o dia se fazia pesado na janela que me descortinava a praça da igreja logo em frente. Nela, crianças das mais diversas idades corriam, gritavam e soltavam pipas enquanto moradores de rua se acotovelavam como urubus nas escadas do coreto.

Era a vida seguindo sua trajetória dentro de um sem-limite que se renovava como água de nascente brotando para alimentar o rio que cortava a cidade, serpenteando seu caminho em direção ao mar. Um bando de pombos deixou a cumeeira do telhado e rasgou o céu num alarido de arrulhos descomedidos. Lembrava um moinho triturando a alma da carne. Do infinito, um sol anêmico descia cansativo sobre tudo, como se temesse ser prisioneiro da noite que se avizinhava. Sua presença, ainda que lenta, se fazia latente como uma bofetada no meio da minha cara. Um safanão como um murro de punho fechado.

Às minhas costas, um espelho enorme dependurado em frente ao hall de acesso ao meu apê refletia meu rosto magro completamente distorcido. Havia uma fenda nele, e por essa razão minha aparência se desvirtuava, dando a impressão de que eu fora cortado ao meio enquanto Strauss nem imaginava compor Tu qui regis totum orbem. Queria sair dali correndo, descer as escadas em desabalada carreira e me envolver nas malhas da jovem que me esperava lá embaixo no térreo, agarrada ao portão. Ingerir, de um só gole, a paixão devassadora que nos queima sem medo de nos embriagarmos da beberagem de dois corações batendo na mesma reciprocidade.

Esse contragosto que me atacava, todavia, continuava se instalando em meu ser como o trote de um cavalo veloz. O meu eu pedia clemência. Não queria morrer. Pelo menos naquela hora. Pensava em gritar, mas a vontade sucumbia na garganta como um berro lacônico que não saía boca afora. Tudo continuava desigual. Seguia eu, tíbio personagem, atado a cordas invisíveis, bestificado, pegureiro de devaneios apascentando sonhos ônticos que não se tornavam realidade. E não só isso. Ao descaso de mim mesmo, me distraía, me corrompia não vendo nada, nada além do que deveria ser descortinado diante da minha obstinação.

Não existia um círculo perfeito girando ali ou acolá. Um, dois, três, quatro… O vento ameno persistia entrando devagar, vadio, retouçando pelas paredes como se tivesse sobressaltado por alguma estupefação fantasmagórica. Passava pelos móveis, ociosamente brejeiro. Escangalhava meus cabelos… cinco, seis, sete, oito… O espelho cúmplice se defluía irritadiço, desfigurado, submerso em mácula. De repente, o que dele restou se partiu e se fragmentou em mil pedaços. Uma quizília infernal feriu minha alma, estraçalhou meus tímpanos, magoou meu interior e me pôs em frangalhos.

Tudo girou, girou numa velocidade incontrolável, como se o carrossel do parque logo ali adiante proado à cissura da igreja tivesse saído do seu estado normal, e num instante inexplicável se transformasse numa confusão desordenada. O alvoroço e a bagunça, entrelaçados aos gritos e aos rebuliços das crianças, duplicaram aos pedidos de socorro, nove, dez, onze, doze… Em paralelo, os infantes correram para um lado e para outro, os pais se desesperaram, as mães se esgoelaram pedindo socorro. Transeuntes alheios se misturaram à fervura e ao descompasso, e igualmente como os sem-teto do coreto, emporcalhavam mais ainda a areia sujismunda do parquinho.

Percebi, num minuto voraz, não haver divisão entre pirralhos brincando, cachorros e gatos fazendo suas necessidades fisiológicas sem se importarem com o proibido das placas. E eu ali confinado dentro da sala, estatelado, preso ao chão, não via nada além do que deveria ser permitido desembuçar. Queria sair porta afora, beber a volúpia que fluía do corpo daquela jovem mulher… alcoolizar a afeição, consternar o amor… Sobretudo, perpetuar esse gostar tornando infinita a sua pureza dentro de mim. Entretanto, razões adequadas se conflitaram e se testemunharam numa peleja ímpar e politicamente inadequada. Talvez por isso, ainda agora, acalmada a fuzarca da praça, perdida a moça bonita que me esperava, me flagre como alma penada carregando seu próprio caixão por sobre as sepulturas do meu futuro, com todos os pedaços da minha insensatez, e pior: da atimia que restou espalhada pelos demais cantos do pavimento onde eu me encontrava.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, do Rio de Janeiro. 23-7-2019

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