terça-feira, 17 de setembro de 2019

[Aparecido rasga o verbo] De lembranças e... Esquecimentos

Aparecido Raimundo de Souza

SEU JUVENAL DE NOVENTA, e dona Catarina, de oitenta e oito, resolveram procurar um médico porque ambos andavam extremamente esquecidos. Nas mínimas coisas a serem lembradas, dentro de casa, dava um branco e pronto. A cada dia, esse incômodo do não atinar com o que procuravam, parecia aumentar e criar formas mais acentuadas e assustadoras.

Chegaram ao ponto de não conhecerem os filhos e netos, quando apareciam para almoçar ou jantar, nos finais de semana, sem contar que seu Juvenal guardava as dentaduras no congelador e dona Catarina metia o gato de uma das netas para dormir no forno de micro-ondas e para se achar, dia seguinte, uma loucura só.

Diante disso, marcaram com um especialista indicado por dona Judite, uma vizinha também idosa (quase na casa dos cem. Dona Judite matara o cachorro e escondera o corpo do infeliz dentro do carro do filho e comunicou a toda a vizinhança que seu papagaio loro sumira da casinha que ficava na porta da cozinha sem deixar pistas) e, no dia aprazado, foram ter com o clínico no endereço que a idosa escrevera num pedacinho de papel de pão e a secretária do cidadão confirmara por telefone.

Depois de papear com o casal por quase três horas ininterruptas, o geriatra explicou:
- Meus amados, não se preocupem. Isso é comum depois de certa idade. Sugiro que ponham imediatamente em evidência essa ideia simples que passarei aos dois. Além do que, como perceberão a coisa em si nada mais é que uma medida barata e, sobretudo, o mais importante, vocês vão se adaptar num abrir e piscar de olhos.  Tenho indicado aos meus pacientes (entre eles dona Judite) com os mesmos sintomas de vocês e folgo em dizer, tem dado certo. Minha mãe, por exemplo, nossa, que loucura! Chegou ao ponto de esquecer quem era o homem deitado ao lado dela, à noite, na cama. E esse homem não outro senão meu pai. Como podem ver... Coisas da idade...

Fez uma pausa breve e continuou solícito e amável como sempre:
- Vejam como é prático. Procurem anotar tudo num caderninho para não correrem o risco de deixarem de lado, ao acaso, as coisas mais triviais que necessitam fazer no dia a dia. Tipo. Hoje, às oito horas, levantar, ir ao banheiro, fazer pipi, tomar banho, escovar os dentes, fazer as necessidades fisiológicas, tomar café, lavar a louça do dejejum.  Ligar o rádio e ouvir o programa Clube do Rei, com músicas só do Roberto Carlos. Às onze horas, telefonar para meu filho, ou filha, e falar com eles sobre tal assunto... E assim por diante... Viram? Como eu disse uma ideia corriqueira barata e eficaz.

Seu Juvenal e dona Catarina voltaram para casa alegres e satisfeitos.  Passaram, a partir de então, seguir à risca o conselho do esculápio.  Anotar tudo o que carecia ser feito. Três semanas depois, quase onze da noite, estão os dois, de mãos dadas, assistindo a um programa de televisão, quando, a certa altura, seu Juvenal se levanta e dona Catarina indaga curiosa:
- Aonde você vai, meu velho?
- Agora deu para me controlar? Era só o que me faltava... Engraçadinha! Já que não deixa de ser bisbilhoteira, apesar da idade, vou ser gentil. Pretendo ir até a cozinha, como sempre faço todas as noites e tomar meu costumeiro copo de café com leite. Você sabe que adoro um cafezinho com leite antes de me recolher aos nossos aposentos reais.

Dona Catarina sorriu um sorriso bonito e franco e fez um pedido a seu marido de tantos e tantos janeiros:
- Você não quer me fazer um favor, já que vai à cozinha?
- Claro, minha gatinha. É só dizer e obedecerei... Manda bala...
- Me traz um pedaço de bolo de laranja que nossa filha Chiquinha nos trouxe ontem?
- Sim, trarei minha princesa. Com todo prazer.

- Pega o seu caderninho e anota. Senão acabará esquecendo...
Seu Juvenal deu uma risada estrondosa e igualmente espontânea:
- Imagine meu raio de sol. Acha, de fato, que me descuidaria de um pedido tão importante da minha eterna e prestimosa namorada?   Vou lá, tomo meu café com leite, e, ao voltar, trago num pratinho seu pedacinho de bolo de laranja.

- Está bem, meu lindo velhinho. Que coisa meiga. Um perfeito gentleman.  Aliás, um cavalheiro, como sempre, desde que começamos a namorar e nos casamos.  Aproveita e coloca um pouco de chantilly.
- Com certeza, minha joia rara. Bolo de laranja com uma pitada de chantilly. Pode ter certeza, não me olvidarei... De mais a mais, sua solicitação, para mim, é uma ordem.

- Não querendo deixar você irritado. Melhor levar anotado na cadernetinha. Toma, aqui está a sua. Lembra meu velho. A sua é a de capa azul e a caneta é a preta. Cadernetinha de capa azul e caneta preta, a sua. A minha é esta aqui, a rosa, e a caneta é a vermelha. Pois bem. Anota.
- Fica fria, minha gatinha manhosa. Não há necessidade...

Meia hora depois, voltou seu Juvenal para a sala com um copo de refrigerante. Dona Catarina, sem levantar a voz, ralhou com seu marido e velho companheiro:
- Eu não falei? Eu não falei? Sabia que se não anotasse, esqueceria. Bem que avisei, anota, anota... Não deu outra... Eu falei... Falei mesmo... Ainda brinquei: cadernetinha azul a sua, caneta preta, a sua. Anota, anota... Qual o quê! Entrou por um ouvido e saiu pelo buraco da outra orelha...

- Calma, minha simpática esposa. Você está nervosa. Não se exaspere. Olhe o coração, olhe o coração... Agora relaxe, respire e me diga: falou exatamente o quê?  O que falou?
- Eu não disse para você anotar na sua cadernetinha quando saiu aqui da sala, para não se esquecer de me trazer, lá da cozinha, o ferro elétrico? E não só ele: cadê a camisa que você queria que eu passasse?
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de São Paulo, Capital. 17-9-2019

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