Péricles Capanema
O ministro José Luís Barroso,
presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), tocou em ponto delicado,
silenciado e óbvio: “Temos preocupação que a facultatividade [do voto]
possa produzir a deslegitimação dos eleitos na possibilidade de um elevadíssimo
índice de abstenção”. Depois, aludiu a questão circunstancial: “Embora
ache que deva se considerar, sim, uma eventual anistia de multa, ou considerar uma
justificação dos que não compareceram por fundado temor de contração do vírus
por se sentir grupo de risco.” Em resumo, seria bom deixar de multar
quem não apertar os botões na urna em 15 e 29 de novembro próximos.
Vou tratar do óbvio
silenciado, levantado para surpresa minha por José Luís Barroso: o temor de o
voto facultativo deslegitimar no Brasil as eleições e os eleitos. De outro
modo, que o povo, soberano reverenciado na mitologia revolucionária, dê as
costas para o processo eleitoral, desvalorizando o mandato dos
escolhidos. “Tô nem aí”, diria um jovem. Repetindo o ministro para
fazer de clareza solar a afirmação dele — existe generalizado temor de que o
voto facultativo possa deslegitimar os eleitos pela possibilidade de
elevadíssimo índice de abstenção.
Qual seria o índice de
abstenção no Brasil com o fim do voto obrigatório? Ninguém sabe. Meu palpite,
70-75% de abstenção em média, considerando todas as eleições. Um pouco menor
nas votações para presidente e governadores, quem sabe prefeitos de grandes
cidades, subiria a abstenção nas legislativas.
Já tratei do assunto em vários
artigos: não acho que o voto facultativo deslegitime a eleição e desvalorize os
eleitos entre nós — todo mundo está cansado de saber que o voto vale pouco. À
vera, expulsaria a fraude política silenciada e puxaria para o proscênio a
realidade, mesmo desagradável, e a transparência. O voto obrigatório perpetua o
embuste que cobre a representação, faz aparentar interesse onde não há, tange
para a urna sob pena de punição ou distribuição de pequenos prêmios, multidões
desinteressadas; todo mundo fica obrigado a votar debaixo de vara; se não o
fizer, multa, proibição de praticar atos normais da vida civil. O soberano (o
povo) é quase tratado como marginal perigoso, que precisa de vigilância
minuciosa.
Veja o que acontece ao
desvalido eleitor se deixar de votar, exercício de um direito, transmutado em
dever penoso, e não justificar (alguns exemplos, não é tudo): não pode se
inscrever em concurso público; não receberá vencimentos, remuneração em emprego
público, autárquico ou de paraestatal, de empresa ligada ao Estado; proibição
de participar em concorrências públicas; proibição de tirar passaporte,
carteira de identidade, renovar matrícula em instituição fiscalizada pelo
Estado; proibição de empréstimo na Caixa Econômica Federal; proibição de
participar em ato para o qual se exija quitação do serviço militar ou do
imposto de renda. Em suma, amolação e atraso de vida para o pobre cidadão
desamparado. Retrocesso.
A maioria dos países adota o
voto facultativo. Entre eles, Estados Unidos, França, Inglaterra, Itália,
Japão, Alemanha, Espanha, Portugal. Ninguém lá teme deslegitimar eleições nem
desvalorizar eleitos por causa da abstenção. Entre a minoria que adota o voto
obrigatório, além do Brasil, figuram Argentina, Bolívia, Equador, Paraguai e
Egito.
Entre nós, o voto facultativo
baratearia as eleições (o custo proibitivo das campanhas é o maior fator de
corrupção na política), melhoraria a representação, traria maior proximidade
entre eleitores e eleitos. Apesar da evidência, o político brasileiro, direita,
centro e esquerda, no caso, deputados federais e senadores, em geral foge da
aprovação do voto facultativo como o diabo da cruz. Tem pavor de tratar do
assunto. Quando pressionado, dá evasivas; poucas vezes se diz pronto a aprovar
qualquer PEC a respeito. Há poucas exceções, às quais aqui homenageio. Não
custa lembrar, voto obrigatório (determinado pelo artigo 14, § 1º, I da
Constituição) não é cláusula pétrea. São elas: a forma federativa de Estado; o
voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; e os
direitos e garantias individuais.
Sem dúvida, o voto facultativo
traria eleitos com votações pequenas, acabaria com muitos candidatos
folclóricos, forçaria atitudes de sobriedade e modéstia nas casas legislativas,
silenciaria blá-blá-blás de participação popular (inautêntica). Enfim, sanearia
muita coisa. Mas é pregar no deserto, para desgraça nossa existe sólida maioria
na Câmara dos Deputados e no Senado contrária à sua adoção, unida na
preservação do entulho autoritário. Panaceia? De modo nenhum, melhoraria algum
tanto a representação política, já é ganho ponderável, um avanço civilizatório,
de que nos privam os eleitos (por nós).
Viro a página. O ministro
Barroso levantou tema de enorme importância: a legitimidade. Deixou evidente
que a legitimidade, mesmo em situações perfeitamente legais, pode ser ofendida
e é dever dos homens de bem evitar a ofensa. Com o voto facultativo, opina o
ministro, as eleições teriam igual força constitucional e legal, mas faltaria
legitimidade aos eleitos, pouco sufragados.
Para ele, situação grave a
evitar. Ele tem razão num ponto essencial, a legitimidade não se assenta
exclusivamente na lei. Assenta-se também, completo, em outras realidades; se
olharmos para o Direito Natural, negado por tantos, tem ali raízes.
Concretamente, o que é legitimidade? Vai aqui conceito caseiro, sujeito a
bombardeios, é a conformidade com a ordem.
Ordem, via de regra, nascida
da natureza, da História, do fato moralmente justo. Qualquer situação, brotando
da desordem, irrompe ilegítima. É útil recordar, existem a legitimidade e a
ilegitimidade da ordem social, das leis, das condições sociais, das dinastias e
não apenas das reais. Viver dentro da legitimidade é das mais importantes
condições para a consecução do bem comum. E, por ricochete, dos bens
individuais. É, contudo, assunto para outra ocasião.
Volto ao fulcro, não fujamos
do óbvio. É notório, o eleitor brasileiro, desinteressado de política e
eleições, sem apetência pelos pratos oferecidos, em sua boa maioria, não
votaria se não fosse tangido, debaixo de vara, para a urna. É inafastável a
pouca representatividade dos eleitos, a mais do claro fracasso democrático,
fatos em nada ofuscados pela tentativa de tentar tapar o sol com a peneira
mediante a adoção do voto obrigatório. Haveria mais legitimidade em nossos
processos eleitorais com a adoção do voto facultativo; a verdade e a
transparência, hoje evitadas, iluminariam melhor o processo eleitoral.
Título e Texto: Péricles
Capanema, ABIM,
27-7-2020
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