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Ilustração: Sofia Dias |
Onde é que começa e acaba a traição?
Cá está uma das perguntas mais complicadas com que nos confrontamos no dia-a-dia. Se sempre foi difícil ser sincero, então com a net a sinceridade ainda passou a ser mais dúbia.
Ser fiel é difícil. A oferta é muita. E não falo só de pessoas, falo dos estímulos que recebemos diariamente. Como todos de repente queremos ser tão apelativos, tão de bem connosco e com os outros. Vendemos tão insistentemente o nosso bem-estar que os outros quase acreditam em nós (mesmo que nós ainda não tenhamos passado a acreditar).
O que está escrito até aqui parece um texto de apresentação de uma nova «clínica» de estética ou de um spa. Ou então também podia ser um daqueles workshops de auto-ajuda... Eu ainda vou fazer vida com isso...
A net é a nossa amante mais regular. Qualquer um já espera mais surpresas dela do que da pessoa com quem anda. Porque a net é uma súmula de gente, de cabeças, de corações. A net é um PBX das almas tão complexo que eu, se pudesse, tornava-me recepcionista deste PBX...
Reparem, as pessoas partilhando a chamada «vida a dois» perdem privacidade. Há quem goste e quem nunca se habitue. Há quem ache que nasceu para ter alguém e quem sinta que, por mais que tente, nunca vai conseguir adaptar-se às regras de um casal. A net é por isso a privacidade com que sempre se sonhou. É certo que ele/ela pode vir pôr um braço no nosso pescoço e sufocar-nos com o olhar lançado sobre o computador, mas há formas de contornar isto. Uns a verem TV, outros nos chats da vida.
Já vos confessei que nunca estive num chat. E isso é quase contraditório para mim que gosto da surpresa. O problema é que o chat está quase sempre impregnado de engate e o engate seduz-me pouco. Nem quando fui uma mulher sozinha. O que eu gosto é de ouvir as pessoas ou, se quiserem, ter espaço para lhes ler os pensamentos mais demoradamente. Aquela conversa do «Olá... por aqui? De que é que gostas?... Quanto medes?», isto não é o meu livro. E já agora isto é ou não traição? Se calhar não o é conscientemente, mas a curiosidade talvez seja o ponto de partida para o fim de muitas rotinas. De muitas relações.
Voltemos a esse espaço que muitos passaram a habitar, a net: há quem viva nela e fique satisfeito com o que recebe: uma relação virtual. Há quem nunca saia disso por medo que no confronto com o real se perca a magia. É tão fácil enganar um olhar à distância com uma fotografia que nos favorece... mas quando a distância se encurta? Já pensaram na irreversibilidade desse momento? Fatal. Depois nem as dietas nos salvam. As pessoas que foram enganadas assim nunca mais perdoam a quem as iludiu.
E volto à pergunta que queremos evitar: uma relação assim, mesmo quando nunca se concretizou, mesmo quando trouxe desilusão ao olhar, era ou não o princípio de uma traição? Acho que sim. Mesmo que depois evolua para uma amizade (também há histórias felizes a acabarem na amizade).
A net, essa amante silenciosa, rouba-nos às vezes o primeiro sorriso da manhã, o primeiro arrepio, o primeiro olá - mesmo que escrito. E há quem acorde a pensar no que vai dizer quando abrir o computador, como há quem se levante a meio da noite porque a impaciência não dorme. É então que a luz que vem do computador e quase nos fere o olhar amacia a inquietação que crescia na cabeça. «O que está do outro lado? Ela estará? Ele virá?»
Se calhar um dia vamos ter de partir os computadores e os telemóveis para centrar o olhar na pessoa que está à nossa frente. O mundo parece estar cheio de pequenos traidores, são aqueles dos pequenos delitos, mas que correm pelo prazer de ver o perigo à espreita.
Qualquer dia, a traição vai deixar de ser crime. Espero que seja só quando o Amor mudar de nome.
Oh God, make me good, but not yet!
Cidália Dias, Revista Notícias Sábado, 16-10-2010
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