sábado, 5 de março de 2011

" A revolta no Cairo talvez termine na conquista do poder pelo fundamentalismo islâmico"

'O Egito está livre!', grita a multidão na Praça Tahrir. Cairo, 11 de fevereiro.
 Foto: Ben Curtis/AP/Estado de S. Paulo

O mundo do dr. Vicente
Vicente Jorge Silva é como certos transeuntes com que às vezes nos cruzamos: gostam de puxar conversa, embora a conversa que puxam faça escasso sentido. Excitado pela insurreição egípcia, o dr. Vicente acusa-me no Sol de “reduzir a História e a sociologia ao fundamentalismo vesgo dos seus (meus) preconceitos”. Para cúmulo, preconceitos “racistas”.
Por acaso, preconceituosos e racista parece-me o dr. Vicente. Se sugeri que a revolta no Cairo talvez termine na conquista do poder pelo fundamentalismo islâmico foi só porque essa é a vontade da esmagadora maioria dos egípcios inquiridos em sondagens (ver a do Pew Research Center - Egypt, Democracy and Islam). E porque as associações de psicopatas, perdão, humanitárias do tipo da Irmandade Muçulmana vêm revelando uma capacidade de organização bastante superior às alternativas seculares, aliás ainda por identificar.
Já o dr. Vicente decidiu que o Egipto será um rematado paraíso fundamentado em quê? Aparentemente, apenas na sua cabecinha. A partir do momento em que esta prescreve a universalidade da liberdade e da democracia, é vital que cada habitante da Terra deseje liberdade e democracia, abstractas e puras do modo que o dr. Vicente as concebe.

Numa perspectiva clínica, semelhante processo mental fascina. O dr. Vicente, apoiado em “praticamente tudo o que tem sido dito, escrito e reportado na imprensa internacional” (as leituras do homem não são muito plurais), não se deixa convencer pelas circunstâncias particulares. Para ele, o povo que grita na rua (ou na cozinha) grita sempre por aquilo que o dr. Vicente acha digno de gritaria. Desde que uns milhares se manifestem contra uma ditadura, é impensável que as respectivas exigências impliquem a instauração de uma ditadura diferente e, sob alguns pontos de vista, pior.
Porém, tudo indica ser isso o que está a acontecer no Egipto, pouco indica ser isso o que está a acontecer na Tunísia e juro não imaginar o que possa sair do caos na Líbia ou no Bahrain. Se os iranianos depusessem os aiatolas, seria plausível que daí resultasse um regime mais laico e, espero que o dr. Vicente concorde, menos perigoso. Se os marroquinos depusessem o Rei, é provável que a coisa termine numa teocracia assustadora.
A História, escrita por agentes com vontades diversas e, frequentemente, parra nós incompreensíveis, é assim complicada. Por outras palavras, a realidade raramente é o que desejaríamos que fosse, uma evidência difícil de conspurcar o raciocínio do dr. Vicente, cuja fuga da extrema-esquerda não o privou das palas teóricas com que os radicais vêem o mundo. Nem de propósito, o artigo do Sol intitula-se: Somos todos burros? A educação impede-me de questionar o ponto de interrogação.
De qualquer forma, se não pelo discernimento, as palas do dr. Vicente mereciam um louvor pela coerência. Mas a coerência sofre ligeiramente quando um ex-deputado do PS festeja a queda do partido de Mubarak, até há dias digníssimo membro da Internacional Socialista.
Texto: Alberto Gonçalves, Sociólogo, revista Sábado, nº 356, 02-03-2011
Digitado e editado por JP

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