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Ilustração: José Carlos Fernandes |
De um modo geral, eu prefiro casais que discutem a casais que mantêm a compostura em todas as ocasiões. A capacidade de manter um ar gélido mesmo quando as entranhas estão num vulcão deixa-me sempre um bocadinho desconfiado, porque convém que a vida a dois não seja propriamente um teatro onde cada um de nós exibe o seu talento de actor. A postura "estava capaz de te estrafegar mas repara como continuo a exibir este sorriso cínico na minha cara" não costuma resultar em nada de bom, e sei de casais que se separam sem nunca terem levantado a voz um para o outro.
Não é o caso cá em casa. As pessoas que nós amamos são aquelas que tratamos simultaneamente melhor e pior. Melhor, porque gostamos imenso delas; e pior, porque estamos demasiado à vontade com elas. O amor é um abrir de portas e nem todas as divisões do nosso interior estão bem mobiladas e são bonitas de ver, e por isso há conflitos, palavras duras, por vezes até mesmo crueldade. Suponho que seja assim com todos os casais – é com certeza assim comigo e com a Teresa.
Tanto eu como a minha excelentíssima esposa somos dos que se queixam quando nos pisam, e nesse tango por vezes tão mal dançado que é uma vida a dois (ou, no nosso caso, a cinco) o que não faltam são pisadelas. E então a gente irrita-se, grita, estrebucha, e quando a coisa é realmente grave aproveitamos para amuar um bocadinho no final, esperando que os dias passem e o tempo, que tudo cura, faça o seu trabalho.
Mas no meio dessas nossas animadas discussões há uma coisa que nunca na vida fui capaz de fazer: virar as costas e sair porta fora, mesmo que fosse só para ir ao café desanuviar a cabeça ou à porta do prédio fumar um cigarro. É verdade que o facto de eu não beber café nem fumar cigarros diminui drasticamente o meu leque de desculpas. Mas não é por isso. É porque o acto de sair e bater com a porta me pareceu desde sempre, desde pequenino, de uma violência desmedida.Sei que se eu o fizesse me iria sentir como um cowboy a abandonar o Forte Álamo quando os mexicanos se preparam para atacar. Seria o equivalente a uma deserção. Acho que neste aspecto em particular tenho uma costela estóica: acredito que estar casado é ficar até ao fim. E se um casamento tiver de morrer (às vezes acontece), ao menos que seja olhos nos olhos, e não pelas costas.
João Miguel Tavares, "Domingo - Correio da Manhã", 20-03-2011
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