segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Macroscópio – Ainda ontem, em Berlim


A festa foi bonita. Foram 8.000 os balões luminosos que foram libertados depois de, durante dois dias, terem recordado a divisão de Berlim e as 100 pessoas que morreram a tentar passar pelo Muro.

Mas se agora a festa entusiasmou, nada alcança em dimensão e em significado a festa de há 25 anos, quando inesperadamente o Muro que separava as duas metades da Alemanha, e de Berlim, caiu. Nos últimos dias a imprensa de todo o mundo celebrou a efeméride, umas vezes focando-se mais no evento, outras na Alemanha do presente. De tudo o que foi possível ler e ver, deixo a seguir uma selecção.

Como é hábito no Macroscópio, começo pelo Observador, e começo por maioria de razão. Talvez o trabalho mais original de toda a imprensa portuguesa tenha sido o roteiro que aqui publicamos sobre Berlim Leste, um verdadeiro roteiro da “Ostalgie”. Elaborado por António Araújo, dividiu-se em quatro partes:

·         Berlim, 25 anos depois: Roteiro da Ostalgie, em que visitamos locais o memorial do Muro, o museu de Checkpoint Charlie ou à emblemática torre da televisão.
·    Berlim, 25 anos depois: Mais lugares da Ostalgie, onde o autor nos leva até à prisão de Hohenschönhausen, ao museu da Stasi ou ao parque Treptower, com todas as suas estátuas e baixos-relevos.
·         Roteiro da Ostalgie: onde dormir e comer, o que comprar, com algumas surpresas.
·         Berlim, o Muro e a RDA: os livros indispensáveis, uma bibliografia seleccionada, apresentada com muito critério.

Visitar Berlim será diferente depois de ler este guia. Tal como a compreensão sobre o que foi a RDA, essa montra do socialismo para ocidental ver e que, afinal, mostrava uma realidade bem triste.

A cobertura do Observador foi mais extensa, e dela destaco mais algumas peças:
·      10 filmes para recordar o Muro de Berlim (e a RDA), uma selecção feita por Eurico de Barros;
·  A banda sonora do Muro de Berlim, com sugestões que vão de Lou Reed aos Scorpions, passando por Elton John;
·     Na Europa, o muro não acabou de cair, uma análise de Paulo de Almeida Sande sobre o papel da Alemanha de então e da Alemanha de hoje;
·   A Alemanha, 25 anos depois da queda do Muro de Berlim, um Explicador onde falamos da realidade alemã nos dias de hoje;
·     e por fim uma fotogaleria que termina na festa dos 25 anos.

No quadro dos textos mais analíticos, destaque para “A surpresa da história”, uma opinião de Rui Ramos onde se defende a ideia que “Na queda do muro de Berlim, há 25 anos, muita coisa estava determinada e muita coisa foi acidental, mas tudo foi possível porque ninguém estava à espera”. Como ele conclui:

Porque é que é importante lembrar a surpresa? Porque se Gorbatchev tivesse intenções de desmantelar o comunismo, nunca teria chegado ao poder. Porque se os ocidentais estivessem convencidos de que tudo ia acabar, talvez tivessem sido tentados a “ajudar”, e teriam provavelmente provocado uma reacção. (…) Os homens fazem a história, mas às vezes é só quando não sabem o que estão a fazer que a história acaba por ser feita.

Opinião bem contrastante é a do editorial do último Avante, uma notável antologia do tipo de discurso que os comunistas repetiam antes da queda do Muro, e que hoje só partidos como o PCP ainda mantêm. Repare-se neste extrato:

“Mais do que a ‘queda do muro de Berlim’ o que as forças da reacção e da social-democracia celebram é o fim da República Democrática Alemã (RDA), é a anexação (a que chamam de ‘unificação’) da RDA pela República Federal Alemã (RFA) com a formação de uma ‘grande Alemanha’ imperialista, é a derrota do socialismo no primeiro Estado alemão antifascista e demais países do Leste da Europa e, posteriormente, a derrota do socialismo na URSS.”

É precisamente a partir desta passagem desse editorial que João Carlos Espada discute, no Público, o confronto entre dois tipos de democracia – a democracia de tipo ocidental, como aquela em que vivemos, e a chamada democracia socialista, ou popular, como a que havia na RDA. A nossa democracia deriva de uma ideia modesta, mas essencial: “a principal virtude da democracia — no sentido pluralista ou constitucional — é que não pretende ser um regime perfeito. Por isso está sempre aberta à crítica, à variedade de opiniões, e à mudança gradual sem violência”.

Ainda no Público, referência a um texto, sempre interessante, de Jorge Almeida Fernandes, “1989,o annus mirabilis do fim do império soviético”. É uma recapitulação criteriosa dos principais eventos que levaram è implosão do mundo comunista, uma sequência que também recordámos no Observador sob a forma de cronologia.

Destaco de seguida alguns trabalhos que me chamaram a atenção em órgãos de informação de todo o mundo:

·   In Reunited Germany, One Town Remains Divided, uma reportagem do Wall Street Journal numa aldeia de apenas 50 habitantes, Mödlareuth, que ficava na fronteira entre as duas Alemanhas e que conservou o seu Muro como memorial;

·    Também no Wall Street Journal, a história muito divertida do homem que provocou a queda do Muro sem o saber - Who Provoked the Fall of the Berlin Wall?. Trata-se do jornalista que fez a pergunta na conferência de imprensa de que resultou a resposta confusa de um dirigente da RDA que precipitou a abertura das fronteiras. Até agora ninguém sabia quem ele era, os repórteres do Journal descobriram-no.

·   No El Mundo é possível apreciar uma das melhores cronologias gráficas da história da RDA e da queda do Muro.

·  O El Pais publicou uma série de interessantes entrevistas, de entre as quais destaco duas: “En la Guerra Fría ganó la libertad”, com o filósofo alemão Rüdiger Safranski, e “La revolución que derribó el Muro ha sido la más hermosa del mundo”, com o advogado e escritor Ferdinand von Schirach.

·  De todas as fotogalerias que vi sobre Berlim com muro e sem muro, utilizando fotografias interactivas onde é possível ver o mesmo local na cidade dividida e na cidade reunificada, talvez a melhor, e a que vos recomendo, seja a do Huffington Post.

·   O New York Times foi até Berlim para contar a história de uma das 100 pessoas que morreram ao tentarem saltar o Muro. On Berlin Wall Anniversary, Somber Notes Amid Revelry é uma excelente reportagem que nos faz reviver um drama humano, que põe um nome nas estatísticas, que mostra como, tantos anos passados, há memórias dolorosas que não desaparecem. São histórias assim que ajudam a perceber melhor o que significava aquela barreira erguida no meio de Berlim.

·  Um belo texto evocativo é o de Daniel Johnson na Standpoint: “The Night I Witnessed Truth Defeat Falsehood”. É um texto tocante e profundo, que termina com um alerta: “Since the fall of the Berlin Wall, the world has become a better place: life, liberty and the pursuit of happiness are now within the grasp of countless millions who could only dream of them before. But any defence of the Western civilisation that has conferred these blessings requires constant vigilance, including reflection on why the ideology that erected the Wall eventually collapsed. Even with the enemy at the gates, the denigrators of the West will not desist.”

·  No Financial Times, Philip Stephens preferiu centrar a sua análise na actualidade: After 25 years Germany needs a foreign policy. Depois de considerar que a vida, apesar de tudo, parecia mais fácil durante a Guerra Fria, quando a Alemanha se abrigava sob o guarda-chuva norte-americano, conclui defendendo a ideia de que, agora, é necessário ser mais incisivo: “Ms Merkel has built her political career on caution – on taking the temperature and weighing all the options before acting. The approach has served her well. But leadership in foreign policy demands something more: an understanding that doing nothing can be more dangerous than doing something, and a readiness to step out in front of the crowd. Consensus may be comforting; it does not impress the likes of Mr Putin.

Termino esta breve selecção de textos com uma referência à opinião de Andrew Nagorski, um antigo correspondente da Newsweek em Berlim e Moscovo, hoje publicada no Wall Street Journal - PutinTries to Undo the Tragedy of the Berlin Wall’s Fall. Nesse artigo defende-se a ideia de que o antigo quadro do KGB na Alemanha comunista tudo fará para tentar fazer os relógios voltarem para trás de forma a reconstruir o poderio perdido da desaparecida União Soviética. Para Putin a queda do Muro teve mais ou menos o mesmo significado que ainda hoje tem para os editorialistas do Avante, com a diferença que ele não deseja o regresso do socialismo, só almeja à reconstrução do Império.

Por hoje é tudo, e julgo que até me alonguei um pouco. Boas leituras.
 
Título, Imagem e Texto: José Manuel Fernandes, 10-11-2014

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