segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Macroscópio – Um sábado diferente de todos os outros

José Manuel Fernandes
O país que não estava acordado na madrugada de sexta para sábado acordou estremunhado na manhã de sábado ao aperceber-se que, horas antes, o anterior primeiro-ministro José Sócrates fora detido para interrogatório judicial. Não é possível neste espaço recapitular todo o abundante notíciário do fim de semana, mas é possível sugerir um bom ponto da situação informativo: O que já se sabe (e falta saber) do caso Sócrates, aqui no Observador.

Munidos da informação essencial, passemos aos muitos textos de análise e comentário – o que obriga a um Macroscópio um pouco mais longo do que o habitual. Um primeiro grupo, escrito muito a quente, nas horas imediatas ao momento em que a notícia foi conhecida, põe o ênfase na esperança de que a Justiça esteja a actuar com segurança. Foi o que defendeu Henrique Monteiro, no Expresso, que escreveu ser este caso “um enorme desafio à Justiça. Um erro cometido com Sócrates não é igual a um erro cometido com um cidadão qualquer. Tendo sido primeiro-ministro, a sua detenção é a esta hora notícia em quase todos os jornais internacionais e o seu processo vai ser seguido com atenção redobrada.

Numa coluna ao lado, Henrique Raposo seguia uma via semelhante: “uma sociedade deve atacar a jugular dos poderosos, mas convém que a dentada inicial seja logo a dentada fatal. Ou seja, prender alguém implica ter um caso sólido, bem construído e demonstrável. Problema? A nossa justiça abusa da apresentação de casos que não colam em tribunal. A polícia e o ministério público têm revelado uma incapacidade crónica para morder a sério”.

Eu próprio, também na mesma manhã de sábado, disse esperar poder confiar na Justiça. Mas fui um pouco mais longe, reagindo já a alguns dos comentários que tinham sido feitos na noite das televisões e já estavam a inundar as redes sociais. Foi nesse quadro que defendi a ideia de que “a Justiça não se redime nem merece ser condenada só porque deteve José Sócrates para interrogatório. E o regime também não está em causa só porque existe este caso e estas suspeitas”.

De facto muitos dos primeiros comentários que foram emitidos a seguir à detenção não referiam o que era conhecido sobre a vida de José Sócrates – “um dos mistérios que ensombrou a nossa vida política recente foi a evidente desproporção entre o estilo de vida de José Sócrates e os rendimentos conhecidos de um deputado, secretário de Estado, ministro, mesmo primeiro-ministro”, escrevi nessa minha coluna – antes se centraram quase exclusivamente nas circunstâncias da detenção, na sua mediatização e no facto de podermos estar a assistir a violações do segredo de justiça. Um dos textos que mais desenvolve essa linha de argumentação é o de Clara Ferreira Alves no Expresso, A Justiça a que temos direito. Nesse texto defende a ideia de que “o processo foi grosseiramente violado” e que já se praticou o “linchamento público”. Criticou os jornalistas do Sol e do Correio da Manhã e concluiu sobre o processo que “ou ele é perfeito, repito, ou é a Justiça que se afundará definitivamente no justicialismo. Na vingança. No abuso de poder. Na proteção própria.” Os comentários nas rádios e televisões de Pedro Adão e Silva e do seu habitual eco do programa Bloco Central seguiram também esta linha de argumentação.

Outro expoente destas preocupações foi António Marinho, que apesar de muito falar contra a corrupção achou, desta vez, mais importante criticar os juízes. Eis um pouco do que escreveu no Correio da Manhã: “A raiva com que alguns dirigentes sindicais dos juízes e dos procuradores se referiam ao primeiro-ministro José Sócrates evidenciava uma coisa: a de que, se um dia, ele caísse nas malhas da justiça iria pagar caro as suas audácias. Por isso, tenho muitas dúvidas de que o antigo primeiro-ministro esteja a ser alvo de um tratamento proporcional e adequado aos fins constitucionais da justiça num estado civilizado.”

Uma entrevista a Nuno Garoupa, publicada também pelo Expresso, olhava para as circunstâncias da prisão de forma diferente. Primeiro referia que “há uma nova geração de magistrados muito mais sensível à opinião pública”, mas não era isso que fazia deste caso um caso mediático: “Nós é que vivemos num mundo mediático. Em Portugal como em qualquer parte do mundo. Temos sido testemunhas de imensos circos mediáticos semelhantes em Espanha, França e Itália, sem que os comentadores do costume se queixem”.

Por fim defendeu a ideia de que existir já um julgamento pela opinião pública não é negativo:
A opinião pública pode e deve fazer um julgamento político, independentemente do julgamento legal e judicial. A política e a justiça não são a mesma coisa. Assim como a justiça deve fazer o seu julgamento sem interferência da política, a política – o governo da polis – deve fazer o seu julgamento. O maior disparate que existiu em Portugal nos últimos anos, e não o ouvi nem em Espanha nem em Itália, é tentar que o julgamento político siga ou esteja sujeito aos mesmos critérios do julgamento penal. (…) A presunção de inocência e o 'in dubio pro reo' são princípios jurídicos, não são, não devem ser e não podem ser princípios políticos.

O director do jornal I, Luis Rosa, foi mais directo nas suas críticas a alguns comentadores. Eis o que ele escreveu na edição de hoje: “O mais extraordinário em toda a argumentação utilizada por boa parte dos comentadores de esquerda é a transformação da detenção de José Sócrates numa violação do Estado de Direito. "Se este exagero judicial acontece com um ex-primeiro-ministro, imagine-se o que pode fazer um juiz ao cidadão comum!". Esta extraordinária inversão das prioridades (como se o juiz ou o procurador fosse mais perigoso que o arguido) pretende, não tenhamos dúvidas, desvalorizar e descredibilizar os indícios que foram recolhidos contra Sócrates.”

Já o director do Diário de Notícias, num texto intitulado “Dos escombros”, opta por um tom mais prudente, quase a meio caminho: “Quando acontece lá fora, lamentamos não suceder aqui. Quando acontece, ficamos assustados, desorientados, nalguns casos céticos, embora a dúvida seja sempre uma boa conselheira até à palavra final.

Um outro tema em torno do qual rodaram muitas discussões foi o de saber até que ponto o regime pode estar em causa com este processo. Essa foi uma das preocupações de Rui Ramos aqui no Observador, mas uma preocupação que não se centrou no comportamento da Justiça neste caso, antes vem detrás e remete para questões mais substantivas: “O regime sobreviveu a tudo até agora, do BPN à Face Oculta. Mas ninguém sabe ao certo, num copo quase a transbordar, qual vai ser a gota de água a mais.” E explica o porquê dos seus receios:

Não é possível excluir um ajustamento do poder político. Os últimos casos judiciais, com as doses certas de histeria político-mediática, podem servir para muita coisa. Por exemplo, para atear finalmente um surto de populismo contra os partidos e as ideologias tradicionais. O que falta? Que mais gente na classe política sinta que está na altura de apear-se deste comboio e tentar apanhar o próximo. Nesse momento, por pânico ou por oportunismo, os mais inesperados rearranjos poderão tornar-se possíveis.

Helena Garrido vê, no Jornal de Negócios, “Um regime em colapso e a renascer”. Mas pede para não se recear a mudança: “A consciência do abalo a que estamos e vamos estar sujeitos não nos deve meter medo. Nem a nós, cidadãos comuns, nem à justiça, nem às lideranças. Não se pode criticar a justiça porque não funciona e, ao mesmo tempo, porque funciona. Se há justiça para fazer, que se faça justiça, sem medo nem enviesamentos. Justiça pura, cega.”

João Pereira Coutinho, no Correio da Manhã, também se distancia dos alarmismos: “O regime está a apodrecer e Salazar não tarda? Uma pergunta destas só faz sentido num país onde a justiça era tradicionalmente incompetente para lidar com suspeitas graves sobre políticos e outras figuras maiores. Não quando a separação de poderes funciona – e a justiça também.”

De resto há mesmo quem esteja entusiasmado, como Camilo Lourenço, no Jornal de Negócios: “É hora de mandar os políticos dos últimos 40 anos para casa (please "Saiam da Frente!") e dar lugar a uma nova forma de fazer política. Que passa, inevitavelmente, pela emergência das novas gerações. Se tivermos a coragem de fazer essa "revolução", Portugal será um país completamente diferente daqui a 15 anos. Vamos a isso?“

Passemos agora a um terceiro conjunto de textos, estes mais centrados na figura de José Sócrates. Nalguns casos percebe-se que os seus autores sentem chegado o momento de recordarem como nunca desistiram de investigar Sócrates, ou de confontrá-lo valentemente com as suas políticas. É o que faz Octávio Ribeiro no Correio da Manhã, elogiando a sua equipa, “um punhado de jornalistas competentes, persistentes, rigorosos e corajosos, manteve hasteada a bandeira da luta pela igualdade perante a lei, pela transparência, por uma democracia mais saudável, em suma, pela Liberdade de Imprensa. Foram anos de chumbo em que só a verdade dos factos nos valia.

No Sol, outro jornal que também publicou muitos textos de investigação, o director, José António Saraiva, num texto intitulado “O Vale e Azevedo da política”, recorda as suas experiências pessoais com Sócrates e os vários casos em que se viu envolvido, para defender que “por estas e por outras, foi-se percebendo que José Sócrates, tal como não distinguia entre a verdade e a mentira, não destrinçava entre o bem e o mal, podendo envolver-se nas maiores trapalhices.”

No Expresso, José Gomes Ferreira, depois de recordar como confrontou o antigo governante com algumas das suas políticas, acaba a considerar que “o tempo, esse grande clarificador, faz sempre o seu trabalho”. E que só se “surpreende quem não quis ver os sinais”.

Aqui no Observador João Marques de Almeida foi direito ao assunto: “Um dia, paga-se a factura. Sei que todos hoje dizem que até prova em contrário Sócrates é inocente. Formalmente, é verdade. Mas para mim Sócrates é culpado de muita coisa e de coisas muito graves”. 

Helena Matos também olhou para o legado do antigo primeiro-ministro, e fê-lo de uma forma desafiadora: “A culpa não é de Sócrates. É nossa”. Por quê? Porque convivemos e tolerámos muitas coisas que não deviam ser tolerados. Recuando a um passado não muito distante, dá os seguintes exemplos:
Sentados em estúdios de televisão, rádio, nos jornais, blogues… todos os dias dirigentes socialistas e seus compagnons de route repetiam que tendo sido encerrados os processos e investigações só por má-fé se poderia questionar a licenciatura domingueira de Sócrates, a novela das suas duas fichas na Assembleia da República, os projectos para as casas da Covilhã, a nomeação para o Eurojust do procurador sobre o qual recaíra a suspeita de ter transmitido informações processuais a Fátima Felgueiras, o Freeport, a Cova da Beira…

Haveria porventura mais textos relevantes a citar, mas esta foi a minha escolha. Mesmo assim, antes de acabar, gostava de referir mais dois textos, ambos com o se quê de surpreendentes e ambos publicados no Diário de Notícias (e, por isso, sem links para o texto completo). O primeiro saiu na sexta-feira, antes da detenção, foi escrito por Fernanda Câncio e começava assim: “Há uma revolução em curso na justiça portuguesa: vai tudo preso. Que é lá isso de fortes indícios e provas inquestionáveis, que é lá isso do in dubio pro reo…” O outro saiu hoje, era assinado por Sérgio Figueiredo, actual presidente da Fundação EDP e futuro director da TVI, e intitulava-se simplesmente “Gosto de Sócrates”.

São talvez leituras a mais só para uma noite, mas deixo aos leitores do Macroscópio a selecção. Desejo-vos bom descanso. 
Título e Texto: José Manuel Fernandes, 24-11-2014

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