Eva Gaspar
Não, não vou desvendar a
trama. Nem sei se há trama, se trama for um emaranhado pensado, organizado, com
padrões que se repetem, como um casaco de tricot. Pode ser um novelo caótico e
sem sentido. Podem ser coincidências, porque elas existem. Pode ser assim
porque o mundo virou aldeia. Há, no entanto, um fio. E muito se passa por ele.
Em 1998, nasce um fio que vai
de Portugal ao Brasil para levar mais longe a internacionalização da então maior
empresa portuguesa. Lançado num novo ciclo de
privatizações, o fio deu muitas voltas, assistiu ao fim do casamento
ibérico na Vivo e ao casamento forçado com a Oi, e emaranhou-se entre PTs: na
Portugal Telecom e no Partido dos Trabalhadores de Lula da Silva.
Presidente do Brasil entre
2003 e 2011, Lula continua em 2014 a ser perseguido pelo "Mensalão"
que persegue a PT que perseguia fazer bons negócios no Brasil para si e para os
seus acionistas, entre os quais o BES e a Ongoing. Em 2012, o publicitário Marcos Valério – o
mais duramente condenado no caso de compra de votos de políticos com dinheiro
desviado de empresas públicas (e não só) – apresentou uma denúncia. Acusa Lula
de ter negociado, em 2005, com Miguel Horta e Costa, então presidente da PT, o
pagamento de sete milhões de reais (2,6 milhões de euros) para o PT brasileiro.
A PT nega. Lula, há nove meses convocado pela
Polícia Federal para depor, ainda não compareceu.
Por esse fio passou, além de
Horta e Costa, António Mexia (ministro das Obras Públicas, entre 2002 e 2004) e
Ricardo Salgado, presidente do falecido BES e accionista de referência da velha PT, todos eles arrolados como testemunhas de defesa de José
Dirceu, o-todo-poderoso chefe da Casa Civil de Lula, que acabou também
condenado no "Mensalão".
Em Outubro de 2013, Lula
trouxe esse fio de volta a Portugal ao escrever o prefácio e apresentar o livro
do mestrando José Sócrates. Na concorrida plateia do Museu da Electricidade,
património da EDP presidida pelo ex-ministro António Mexia, estava Pinto Monteiro, ex-Procurador-geral da República
(PGR) que cumpriu a ordem de destruição das escutas que conservavam conversas
entre o então-primeiro-ministro e Armando Vara, condenado em Setembro no âmbito do processo
Face Oculta.
Aproveitando a estadia em
Lisboa, Lula levou esse fio ao Solar dos Presuntos, onde jantou com o
empresário Emílio Odebrecht. Com Odebrecht, o fio volta ao Brasil, onde a
construtura com o seu nome é agora acusada de receber até 1600% do valor de
mercado em obras contratadas pela Petrobrás.
O novelo da Petrobrás tem sido meticulosamente desenrolado
por um juiz de Curitiba, Sérgio Moro, que há três semanas deteve para inquérito
empresários das grandes construtoras do país. É o caso da Camargo Corrêa cuja
holding é dona da Cimpor. De fora ficou a Andrade Gutierrez de Otavio Azevedo, accionista de referência da Oi que neste
Verão obrigou à revisão de alto a baixo das condições da fusão com a PT depois
de se ter dado conta de que os 900 milhões investidos pela empresa nos
Espíritos Santos, entretanto caídos do altar, podem ser tara perdida. Terá sido
também o Dr. Otavio quem forçou Zeinal Bava a dizer "tchau" à Oi (com
uma indemnização simpática, ao que parece).
A linha de investigação do
juiz Moro segue as empresas suspeitas de pagarem "luvas", e tem sido
apoiada por um poderoso aliado, importado dos Estados Unidos. A delação
premiada pode parecer um contra-senso moral – "pior do que o criminoso é o
cúmplice que o denuncia" – mas a possibilidade de
a comunidade aliviar a sentença das sardinhas a troco da promessa de
entrega de tubarões tem permitido à justiça brasileira mergulhar em águas mais
profundas.
Sem verdadeira surpresa, as
gravações das denúncias dos dois delatores-chave neste processo, Alberto
Yousseff e Paulo Roberto Costa – se quiser pode ouvi-las no Youtube
graças a violações do segredo de justiça – levam a partidos políticos. Levam, por exemplo, ao actual
tesoureiro do PT, João Vaccari, que tomou o lugar de Delúbio Soares porque este
ficara também literalmente preso na teia do "Mensalão". Antes,
Delúbio estivera envolvido noutra "Máfia de Vampiros", um conluio de farmacêuticas
e figuras ligadas ao Estado brasileiro que vendia derivados de sangue
humano a preços exorbitantes. Nessa trama estava a Octapharma, que, até há pouco, pagaria 12 mil euros por mês
ao seu conselheiro consultivo para a América Latina.
"Nunca me perguntou nada
de Justiça. Falámos de livros, das viagens dele, falou do Lula", disse
Pinto Monteiro sobre o almoço com José Sócrates, dois dias antes de o
ex-primeiro-ministro ser detido para interrogatório.
Pouso o meu fio. E constato.
Que há gente no espaço
mediático que parece mobilizada em apenas discutir a forma da detenção de José
Sócrates para que não haja tempo para falar sobre o conteúdo – sobre as razões que a precipitaram.
Que há gente que não perde a
oportunidade para se queixar de que é o "mexilhão" que sempre paga e
que no momento em que dois grandes – colossos – dos negócios e da política são
detidos passam apenas a ter dentes para morder supervisores, polícias e juízes.
Que há gente que argumenta que
num Estado de Direito não se pode aspirar a julgamentos justos quando a rua
também julga. Tomado à letra, isso significaria que só o "mexilhão"
anónimo pode ser levado à barra dos tribunais. Significaria ainda que ser-se
"too big" é ter na mão um salvo-conduto para a impunidade.
Há gente também que, perante
suspeitas de crimes graves, diz temer uma República de Juízes e uma
transferência ilegitima do poder executivo para o judicial e que, há uns meses,
aplaudia de pé as decisões do Tribunal Constitucional que, entre outras,
impediram coisas aparentemente tão exclusivas de governos como tributar rendimentos
provenientes de subsídios de desemprego a partir do momento em que estes
superam o equivalente ao salário mínimo recebido e devidamente tributado por
quem está no activo.
Muita desta gente fala em
mesas redondas em televisões que mandaram operadores de câmara para o
aeroporto. Parecem salas de chuto onde se deplora a qualidade da droga.
E depois há Daniel Proença de
Carvalho. O advogado de Ricardo Salgado e de José Sócrates (não o é neste caso
porque o seu habitual cliente não lhe pediu, mas estará por dentro
porque um dos seus representa o motorista do
ex-primeiro-ministro), membro de órgãos sociais de mais empresas do que dá para contar
com dedos de mãos e pés, receia que, com tantos e complexos processos, o
juiz Carlos Alexandre não consiga dar conta do recado e se contente em ser o "herói dos tablóides".
Daniel Proença de Carvalho
acha também que a decisão de prisão preventiva não faz sentido,
designadamente porque "o perigo de fuga parece ridículo". E por quê?
"É evidente que o engenheiro José Sócrates, se não quisesse comparecer
perante as autoridades, não teria feito a viagem de Paris para Lisboa naquele
dia, e porventura teria feito para outro país qualquer", disse na TSF,
rádio do universo Controlinveste a que preside. Mas, afinal doutor, quem teve primeiro
acesso às fugas do segrego de justiça? Os jornalistas ou o
ex-primeiro-ministro?
Talvez a democracia portuguesa
nunca tenha estado tão viva. Não falta contraditório. Sobra contradição.
Título e Texto: Eva Gaspar, Jornal de Negócios, 28-11-2014
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