Comprei este livro em março
deste ano, quando, de volta do Rio de Janeiro, passei pela cidade do Porto.
Comprei-o na famosa livraria Lello, que ainda não conhecia – apesar de ter
vivido nessa cidade por dois anos, do verão de 1965 ao verão de 1967, e
diariamente passar pertinho duas vezes, indo e vindo da Escola Comercial
Oliveira Martins…
Três séculos de invasões, rebeliões e
outras calamidades do período colonial ao nascimento do Brasil.
Há mais de 500 anos houve um
pequeno povo, oriundo de um minúsculo pedaço da Europa, que descobriu, diz-se
por engano, um pedaço da costa sul-americana. E depois mandou para lá mais
naus. E mais gentes. Por lá atacou índios e foi atacado por eles, aliou-se a
nativos, procriou com índias, trouxe negros da África, procriou com negras,
mandou jesuítas pregarem terra adentro, meteu-se em cultivos e garimpos,
perambulou pelo sertão, navegou por rios parecidos com o mar. Ainda lidou com a
cobiça de outros países europeus sedentos em filar seu quinhão. Tudo isso só
poderia resultar em sangue e crueldade, mas bem misturado com coragem e
sagacidade.
Neste livro, Pedro Almeida
Vieira mostra como um “rato” (Portugal) pariu uma “montanha” (Brasil). Com
ilustrações de Enio Squeff, a obra relata 25 dos mais fundamentais episódios da
História colonial. Conhecer isto, por meio da pena de um português, talvez
ajude a compreender por que o Brasil nasceu quase sem dramas (ao contrário dos
outros países sul-americanos), e depois cresceu assim, como se sabe. A “culpa”,
sempre se pode dizer, foi do português, claro. E o autor, português, até
concordará.
Para baixar em PDF os
primeiros três capítulos, clique aqui.
O autor é o português Pedro
Almeida Vieira e as ilustrações são do gaúcho Enio Squeff. Não gostei das
ilustrações.
Sim, a prosa é deliciosa.
Gostei muito. Uma visão factual da História do Brasil, sem panfletagem nem
nacionalismo bacoco.
Adorei o capítulo 21 “O bode expiatório que se fez herói”, à
página 261, que resgata a verdadeira história do alferes Joaquim José da Silva
Xavier, o Tiradentes.
“Nessa mesma noite, ainda sem
a leitura da sentença, cerca de uma dezena de réus, entre os quais Tiradentes,
entraram naquela tenebrosa sala do oratório. Os restantes se distribuíram por
outras celas. Não era preciso muita inteligência para cada um deles saber qual
o seu destino – ou melhor, a vontade que os desembargadores lhes reservavam.
Uma entrada para o interior do oratório significava um pré-anúncio da pena de
morte.
A leitura do acórdão decorreu
somente na manhã seguinte, durante quase duas horas. Já sem surpresa, os
desembargadores decretaram a morte àqueles que pernoitaram no oratório,
aplicando penas de prisão e de degredo, quase todas perpétuas, à maioria dos
restantes réus. Oito homens acabaram absolvidos, embora fraca valia trouxesse
para dois: tinham morrido entretanto. Para além dos leigos, os desembargadores
também condenaram à morte os padres Rolim, Toledo e José Lopes, sancionando com
prisão perpétua o cónego Luís Vieira e o padre Manuel Rodrigues. No entanto,
segundo as ordens de Lisboa, estes clérigos se recambiaram para a Metrópole,
onde beneficiaram de penas muito atenuadas.
Logo após o acto de leitura, o
único advogado dos condenados solicitou então a apreciação de um recurso,
entregue dois dias depois. Os desembargadores, porém, recusaram liminarmente a
sua análise, mas, num macabro jogo, permitiram a apresentação de segundo
recurso, desde que entregue no prazo de meia hora! E o advogado o fez. Pela
escassez de tempo, mais não pôde que pedir misericórdia para os réus que ‘prostrados
com o peso dos ferros que os oprimem, rompendo os soluços com que os sufoca o
temor da morte, [clamam] pela piedade da Sua Augusta Soberana’. Perda de tempo.
Os desembargadores, os mesmos que julgaram e recusaram o primeiro recurso,
simplesmente indeferiram este segundo pedido de revisão, confirmando todas as
sentenças iniciais.
Depois de tudo isto, veio um
volte-face, como se este processo quisesse ser uma tétrica ópera-bufa em três
atos. Quando já se preparavam os patíbulos, o presidente dos desembargadores
revelou que afinal tinha em sua posse uma carta régia com instruções expressas
da rainha D. Maria I para que se executassem apenas os cabecilhas, poupando a
vida daqueles que não tivessem feito ‘escandalosa publicidade dos seus crimes’,
nem contribuído ‘com discursos, práticas e declamações sediciosas, assim em
público como em particular’. O absurdo desta reviravolta está no facto de a
ordem da soberana portuguesa ser de 15 de outubro de 1790, ou seja, foi
assinada cerca de um ano e meio antes da leitura da primeira sentença dos
desembargadores no Rio de Janeiro. Assim, num verdadeiro passe de mágica,
aquele louco dia acabou com a leitura de uma alteração ao acórdão inicial que
comutava, para degredo, a pena de morte de doze réus. E apenas se confirmou a
execução do alferes Tiradentes.
Visto então como um bode
expiatório – ainda mais por ser, entre os conjurados, o de menor posição social
–, o enforcamento do alferes consumou-se logo no dia seguinte, no largo
fluminense de São Domingos, sob fortes medidas de segurança. Conta a lenda que
o carrasco, ao passar-lhe a corda pelo pescoço, pediu desculpa. ‘Cristo também
morreu pela causa dos justos’, terá dito Tiradentes.
Se assim foi ou não, pouco
importa, porque o desgraçado alferes acabou por ser catapultado para o topo da
lista dos mártires brasileiros, sobretudo após a proclamação da República
naquele país em 1889. E com a imagem de um Cristo redentor.
(Compreensivelmente, esse enaltecimento apenas ocorreu após o fim da Monarquia
brasileira, uma vez que os inconfidentes mineiros defendiam a criação de uma
república para o Brasil). Tanto assim que, em toda a iconografia que retrata a
sua execução, surge ele com barba e longo cabelo, quando, de facto, morreu
barbeado e quase careca. Naquela época, sempre que uma detenção se prolongava,
rapavam-se as pilosidades dos presos para se evitar a proliferação de
parasitas. Na mesma linha, uma das mais famosas pinturas de Pedro Américo, que
retrata a execução de Tiradentes, datada de 1893, também não corresponde à
realidade. Aí, o corpo esquartejado do alferes, e também com barba e longos
cabelos, aparece retratado em cima do patíbulo, existindo documentos oficiais
que confirmam ter essa brutal operação sido realizada em local mais recatado,
em instalações militares.
![]() |
Tiradentes esquartejado, Pedro Américo, 1893, Museu Mariano Procópio |
Em todo o caso, após o
esquartejamento, um forte contingente de tropas levou os seus restos mortais em
direção a Vila Rica, distribuindo-se as partes em postes nos locais onde o
malogrado alferes declamara os discursos sediciosos. Até chegar à capital de
Minas Gerais, a tétrica comitiva demorou cerca de um mês. Numa das praças do
povoado a cabeça ficaria exposta, apenas por alguns dias, pois ganhou sumiço. E
nunca mais se soube do seu paradeiro.
(…)
Desde os anos 30 do século XX,
os sucessivos governos brasileiros catapultaram a Inconfidência Mineira para o
pedestal da luta histórica pela emancipação, embora, na verdade, tenham
existido outros episódios similares e até com maior peso, designadamente a
insurreição pernambucana, em 1817, e a conspiração baiana de 1798. Talvez
porque foi o único executado, pela sua constância que contrastou com o
pragmatismo dos seus cúmplices, por ser um mártir que facilmente se poderia
heroicizar, Tiradentes viu-se ‘entronizado’ como patrono da nação brasileira
por decreto de 1965. Em Ouro Preto – denominação atual da antiga Vila Rica –,
criou-se o Museu da Inconfidência, e as buscas científicas para identificar as
sepulturas dos conjurados mortos durante o degredo africano intensificaram-se.
Ao longo das últimas décadas, os restos mortais de dezesseis inconfidentes
foram traslados para o panteão deste museu. Ali existe também um cenotáfio, em
honra dos restantes, bem como as sepulturas de Maria Doroteia, a musa de Marília de Dirceu, e de Bárbara
Heliodora da Silveira, mulher de Alvarenga Peixoto, um dos principais mentores
da conspiração. As últimas três ossadas encontradas em território africano –
pertencentes a José de Resende Costa, Domingos Vidal Barbosa e João Dias Mota –
se depositaram em Ouro Preto no dia 21 de abril de 2011, numa cerimônia
presenciada pela presidente Dilma Rousseff, o que demonstra que a Inconfidência
Mineira é porventura o acontecimento histórico mais enraizado, talvez não da
forma mais correta, no imaginário brasileiro.”
9-7-2016
9-7-2016
Agora vou concluir a leitura do segundo volume de "A minha luta"...
ResponderExcluirBoa leitura
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