Alberto Gonçalves
A dona Cristina teima: Pedrógão não está esquecido,
pois não? O dr. Costa balbucia uma salganhada e acaba a pedir vinho verde para
o tempero. Ao largo, o resto dos Costas – esposa, crias e nora – sorri
O PS (o PS dos boatos sobre Sá
Carneiro, o PS do livro censurado de Rui Mateus, o PS da Casa Pia, o PS das
inúmeras habilidades do “eng.” Sócrates, o PS dos telefonemas irados ou doces
aos diretores de informação, o PS que manda na linha editorial dos jornais a
ponto de os tornar irrelevantes ou extintos, o PS que deu à Lusa uma
credibilidade idêntica à do saudoso “O Crime”, o PS que inventou a ERC, o PS
dos resgates à banca e dos saques ao contribuinte, o PS das negociatas
disfarçadas de “desígnios”, o PS sem vergonha da vergonha dos incêndios de
2017, o PS das austeridades viradas na retórica e agravadas na prática, o PS do
blogue Câmara Corporativa, do sr. Abrantes e de incontáveis jagunços que
saltitam nas “redes sociais” e nos espaços de “opinião pública”, o PS da
propaganda descarada, o PS dos paquistaneses travestidos de militantes, o PS
que branqueia o rosto do líder como branqueia cada embrulhada em que se mete, o
PS das prosperidades que terminam em bancarrota, o PS dos srs. Centeno, Ferro e
César, o PS que mais do que qualquer outro partido se confunde com o sinistro
“aparelho de Estado”, o PS enfim que, há dias, criou a agência espacial
portuguesa) quer acabar com as “fake news”.
Olha que bom. O PS, aliás,
aproveitou uma deixa “externa”: o plano contra a “desinformação” aprovado pela
Comissão Europeia em dezembro. Lá fora e cá dentro, o objetivo é comum, leia-se
proteger o cidadão, coitadinho, das falsidades difundidas por fontes duvidosas.
No nosso caso particular, as fontes duvidosas são, escusado explicar, aquelas
de que o PS duvida e que, em troca, duvidam do PS. Num mundo ideal, só haveria
notícias verdadeiras, e por verdadeiras entenda-se aquelas que o PS autoriza e,
de preferência, produz. Por azar, ainda não atingimos tamanha plenitude do Ser.
Por sorte, já faltou mais. Esta semana, tivemos um vislumbre do que será a
informação pertinente, justa, lúcida e escrupulosa do futuro. Falo, é evidente,
da presença do dr. Costa no programa da dona Cristina.
Os cínicos que se dediquem a
avaliar se o episódio é representativo da agonia dos órgãos de soberania, cujas
figuras passeiam jovialmente pela “trash tv”, ou se traduz o estertor das
televisões, que passaram a acolher qualquer pelintra em prol das audiências.
Por mim, limito-me a proceder com sobriedade à descrição de tão relevante
momento. Ou seja, a contar o que vi. E vi o seguinte:
Num cenário que imita uma casa,
a casa de Liberace se este fosse pobre, a dona Cristina abre a porta ao dr.
Costa e inaugura uma série de gritos que pelos vistos são permanentes. No meio
da gritaria, captei a palavra “lindo!” e a frase “um espaço de comunicação que
não é para toda a gente”. Entretanto, o dr. Costa já está sentado e a recordar
um concurso de fantasias que venceu em criança. Provavelmente, acabou em
segundo lugar e uniu-se ao terceiro classificado para fintar a votação. Depois,
parte para divagações sortidas acerca da infância. Insiro um parêntesis para
notar que o “português” do dr. Costa é apenas ocasionalmente perceptível e
frequentemente sujeito a tradução: “pa” significa “para”, “sançal” significa
“segurança social”, “sómairéquecebi” significa “só mais tarde é que percebi”,
“grembombom” não sei o que é, etc. O importante é que, da juventude, ficou-lhe
o gosto pela liberdade, proeza que induz sucessivos guinchos na dona Cristina,
a qual, para aprimorar o glamour, insiste em rir com a boca escancarada. Nisto,
irrompe em cena a mulher do dr. Costa, que ele abraça com as saudades de quem
não a via há dois minutos.
O tema da conversa segue para
a cozinha. Em seguida, seguem os intervenientes. A sra. Costa, Fernanda de sua
graça, assegura que o marido cozinha muito bem (não duvido: é humanamente
impossível ser-se incapaz em tudo) e tinha imensas namoradas (não comento).
Nisto, empenhado em confirmar as alegações, o dr. Costa já desatou a namorar,
perdão, a cozinhar uma cataplana de peixe e a sublinhar a importância de uma cozinha
limpa. Quanto ao cozinheiro, tanto faz: o dr. Costa não lavou as mãos. Instada
pela dona Cristina a aliviar-se de intimidades, Fernanda diz que “tudo é de
imprevisto” (queria dizer “improviso”, mas dado o meu desconhecimento da língua
em que ela comunica com o cônjuge, não julgarei o deslize com severidade). O
dr. Costa continua a cortar hortaliças.
Acontece uma pausa para
compromissos publicitários, onde se divulga um pedacinho do orçamento destinado
a apoiar as crianças pobres intolerantes à lactose, esse drama social. Os
Costas lembram que a filha também era intolerante a uma substância qualquer. A
dona Cristina comove-se com “as coincidências da vida” e proporciona-nos
assinalável berreiro. O dr. Costa não para de fatiar hortaliças no instante em
que, para surpresa geral com as coincidências da vida, entram na cozinha os
seus filhos e uma moça que, sob o chinfrim da apresentadora, não identifiquei.
Há uma sessão de perguntas e respostas, ilustradas com fotografias de família.
A emoção é palpável. A dona Cristina informa que o dr. Costa gosta de ir à
lavandaria. Ele confirma: gosta muito. De prémio, recebe um puzzle do programa
da Cristina, que em atenção ao público-alvo tem três peças (brinco: tem 20).
De súbito, o registo muda. A
dona Cristina, implacável, questiona o dr. Costa se isto (ser
primeiro-ministro, não fazer cataplanas) é mesmo uma “missão” que ele quis para
a sua vida “na tentativa de ajudar os outros”. Até o dr. Costa se sentiu
atrapalhado com tamanha exibição de sabujice. A dona Cristina recusa abordar
matérias polémicas (o défice “não interessa nada”), arriscando um saltinho a
Pedrógão, a “mancha negra” do mandato do dr. Costa, uma maçada que lhe caiu em
cima, quase como uma camisa que se descoseu na lavandaria. O dr. Costa admite
que foi uma tragédia e que pensa todos os dias naquilo, e que os “sidãos”
(cidadãos) foram generosos e que afinal – interrompe-se todo contente – o peixe
disponível permite mesmo uma petiscada valente: a propósito, ele aprecia
bastante raia. A dona Cristina teima: Pedrógão não está esquecido, pois não? O
dr. Costa balbucia uma salganhada e termina a pedir vinho verde para o tempero.
Ao largo, o resto dos Costas – esposa, crias e, vim a descobrir, nora – sorri.
No derradeiro ato, a dona
Cristina remove “os xapatos” (ela diz assim) e, com berros dilacerantes, propõe
a todos “xentarem-se” à mesa. Confrontado com a ausência de netos, o dr. Costa
denuncia um dos grandes problemas da nossa “siedade” (sociedade), o tempo que
as pessoas demoram a ter o primeiro filho – cerca de 9 meses, da última vez que
vi.
A boa notícia é que ninguém
provou a cataplana. A má é que semelhante mistela era a coisa menos “fake”
desta história.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador, 9-3-2019
O Alberto Gonçalves raramente me desilude mas esta semana superou-se: brilhante, simplesmente brilhante.
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