Em tempos de pós-verdade, os fatos perdem
espaço para versões e opiniões
Selma Santa Cruz
Até algum tempo atrás, quem
abria um jornal ou se conectava a noticiários na TV ou no rádio partia do
pressuposto de que teria acesso a fatos. E durante a segunda metade do século
passado realmente o jornalismo se guiou, ao menos na teoria, pelo princípio da
objetividade na captura e no relato da realidade. Isso implicava, como ensinado
nas novas faculdades que surgiram no período para profissionalizar o ofício, a
necessidade de contextualizar os acontecimentos, oferecendo ao leitor
diferentes perspectivas antes de alinhavar uma conclusão lógica — a fim de que
ele pudesse formar, com embasamento, a própria opinião. E embora sempre se
tenha reconhecido que a isenção nunca pode ser absoluta — já que todo
observador filtra a realidade a partir de sua ótica e repertório — a primazia
dos acontecimentos sobre pontos de vista subjetivos consolidou-se como valor
consensual. Ou seja, na grande imprensa, opiniões deveriam ficar reservadas às
páginas a elas dedicadas e identificadas como tal. A exceção seriam as
publicações que adotam um posicionamento político ou ideológico declarado, como
é o caso da Revista Oeste e de inúmeras outras publicações
mundo afora, territórios assumidos do jornalismo opinativo.
Tudo indica, porém, que esse
ciclo terminou. Como se pode constatar diariamente, está cada vez mais difícil
encontrar na grande mídia, supostamente imparcial, conteúdos que não sejam
apresentados de forma distorcida e politicamente enviesada. Curiosamente,
porém, a despeito de todo o clamor contra as chamadas fake news nas
redes sociais, a complacência é generalizada quando se trata de inverdades ou
manipulações propagadas pelos meios jornalísticos. Talvez porque jornalistas
tendam a se considerar acima do bem e do mal. Julgam-se defensores autonomeados
da opinião pública — embora a maioria das pesquisas indique que a credibilidade
e o prestígio da imprensa estão em queda livre há algum tempo.
Outra razão provável para que
essa distorção esteja sendo ignorada é que qualquer crítica, hoje em dia, à
forma como alguns jornalistas atuam tende a ser qualificada como um ataque
antidemocrático à imprensa como instituição. Tornou-se corriqueiro, no Brasil,
confundir as instituições com as pessoas que as representam. Por isso, quem
aponta malfeitos dos ministros do Supremo Tribunal Federal ou de membros do
Legislativo é tratado como se estivesse atentando contra as instituições em si
— e corre o risco de linchamento virtual ou de entrar na mira dos inquéritos
sigilosos do STF.
O fato de a receita
publicitária ter se tornado o sustento da mídia reforçou a busca pela
neutralidade
Enquanto isso, o descompasso
entre o que acontece de fato no Brasil e a cobertura da grande mídia tornou-se
tão frequente que se tem a sensação, muitas vezes, de que se trata de dois
países. Especialmente ilustrativo dessa disparidade é o Jornal
Nacional, da Rede Globo — e os memes que circulam nas redes sociais
indicam que as pessoas já não se deixam enganar com a mesma facilidade dos
tempos em que não tinham alternativa para se informar. Como ocorreu,
notoriamente, durante o movimento Diretas Já, que a emissora ignorou enquanto
pôde, atitude que deu origem ao refrão “O povo não é bobo, abaixo a Rede Globo”.
O qual voltou à tona, por sinal, mais recentemente, quando os milhares de
brasileiros que tomaram as ruas para protestar contra a impunidade e a
corrupção descobriram que, a acreditar no noticiário do horário nobre ou nas
primeiras páginas dos jornais, as manifestações simplesmente não existiram — ou
tiveram proporção infinitamente menor do que a constatada no local pelos
participantes.
As tentativas de fazer
desaparecer os fatos suprimindo-os do noticiário é recorrente também, como se
sabe, em casos de denúncia de corrupção contra personagens do Judiciário e do
Legislativo influentes no meio jornalístico. E, como a grande imprensa nacional
pauta a internacional, a distorção se reproduz na maior parte dos veículos
estrangeiros — acompanhar o que tem sido publicado sobre o Brasil em veículos
como o norte-americano The New York Times, o inglês The
Guardian, o espanhol El País e o francês Le Monde,
entre outros, chega a ser aflitivo, tão evidente fica a parcialidade ideológica
e o descompromisso com a verdade dos fatos.
Não é de hoje, convenhamos,
que a imprensa mente. “Eu não preciso ler jornais, mentir sozinho eu sou
capaz”, já cantava, nos anos 1980, o roqueiro-filósofo Raul Seixas, em
seu Cowboy Fora da Lei. Vale lembrar também que a tradição do
jornalismo panfletário, porta-voz desinibido de interesses comerciais e
políticos, atravessa os séculos e era dominante até meados do século passado —
no Brasil, por exemplo, Assis Chateaubriand, dono dos Diários Associados,
permanece como símbolo da imprensa como balcão de negócios. A partir dos anos
1950, contudo, o papel central das agências de notícias internacionais
valorizou a busca da imparcialidade, já que elas forneciam conteúdo para
jornais de diferentes países e linhas editoriais. O fato de a receita publicitária
ter se tornado o sustento da mídia de massa também reforçou a busca pela
neutralidade, dada a necessidade de não alienar anunciantes partidários de
qualquer posição.
“Trabalhar como
jornalista de centro não deveria ser um ato de bravura”
Ultimamente, contudo, esse
paradigma está caindo por terra. Claramente alinhada com a agenda dita
“progressista”, a grande imprensa parece ter abraçado o princípio de que os
fins justificam os meios. Poderia tratar-se de uma tendência
conjuntural, resultado da radicalização política, tendo em vista que a quase
totalidade dos veículos continua a proclamar oficialmente sua imparcialidade.
Mas uma série de episódios recentes sugere que a mudança veio para ficar.
Em junho, causou espanto a
demissão sumária do editor de opinião do The New York Times, James
Bennet, por ter publicado o artigo de um senador norte-americano que defendia a
repressão de protestos violentos. Estaria o NYT censurando até
mesmo um senador da República?
Essa percepção se consolidou
pouco depois, quando outra editora do jornal, Bary Weiss, divulgou sua carta de
demissão, alegando ser vítima de bullying por não comungar da
opção ideológica da redação. “Existe um novo consenso na imprensa”, denunciou.
“O de que a verdade não é um processo de descoberta coletiva, mas uma ortodoxia
já definida por uma minoria que considera sua missão informar todos os outros.”
Weiss, que fora contratada justamente para contribuir com uma visão mais
balanceada para a página de opinião, justificou assim sua desistência:
“Trabalhar como jornalista de centro num jornal norte-americano não deveria ter
de ser um ato de bravura”.
No Brasil, como se sabe,
jornalistas independentes ou conservadores, como Luís Ernesto Lacombe, entre
outros, também têm sido demitidos por não se adequarem à linha editorial
hegemônica de esquerda. Mas o problema não suscita por aqui nenhum debate, ao
contrário do que vem ocorrendo nos meios especializados na Europa e nos Estados
Unidos, em que especialistas já elaboram, inclusive, teorias para justificar o
novo paradigma. “Será que a era da imprensa imparcial terminou?”, questionou
semanas atrás um dos editores da revista britânica The Economist.
Para uma nova geração nas redações, a resposta não deixa dúvida. “Essa ideia do
jornalismo imparcial, obcecado pela objetividade e pela apresentação dos dois
lados, é um experimento fracassado”, defende Wesley Lowery, da cadeia de
televisão ABC, vencedor de um prêmio Pulitzer, o mais prestigiado da profissão.
Na mesma perspectiva, o
diretor da renomada Columbia School of Journalism, Steve Coll, qualificou a
objetividade, em texto dirigido aos alunos, como “uma velha norma antiquada”. E
a revista da escola, a Columbia Journalism Review, avançou o debate
em sua última edição com uma matéria que inquire “O que virá depois que nos
livrarmos da objetividade no jornalismo?”.
Jornalistas que
acreditam na legitimidade de “editar os fatos” em favor de uma “causa justa”
O argumento de fundo dos que
defendem esse novo entendimento é que “a clareza moral” deveria se sobrepor ao
relato dos fatos. Ou seja, como autodenominados árbitros da verdade, os
jornalistas teriam não só o direito, como também o dever, de “editar” os fatos
quando se trata de defender “a causa justa” e “o lado certo” da História. Mas
não caberia ao leitor decidir que lado é este? Na essência, essa nova visão
embute, sobretudo, a perigosa ideia de que a verdade seria relativa, um
conceito elástico, que pode ser moldado à vontade, conforme os interesses
políticos de cada jornalista.
É claro que jornalistas e
veículos, como todo mundo aliás, têm direito às próprias opiniões — embora
certamente não, como se costuma lembrar, “aos próprios fatos”. O que cabe
discutir é até que ponto é legítimo direcionar a cobertura do noticiário
segundo determinada linha partidária ou ideológica enquanto se mantém,
oficialmente, uma suposta isenção. Ou seja, sem combinar o jogo com quem vai
receber a informação. Sobre essa questão, vale revisitar a história dos
jornalistas Walter Duranty e Gareth Jones, envolvidos com a cobertura política
na União Soviética durante o começo da década de 1930, o período mais violento
dos expurgos e assassinatos em massa de opositores políticos promovidos pelo
ditador Josef Stalin.
Trabalhando como freelancer,
o galês Gareth Jones pôs a vida em risco para investigar e revelar ao mundo o
genocídio de milhões de ucranianos condenados à fome pelo confisco de grãos
ordenado por Stalin. Já Walter Duranty, correspondente do The New York
Times em Moscou na mesma época, que acreditava na falsa promessa igualitária
do comunismo, achou que valia a pena esconder os crimes do regime “em nome da
causa”.
Como retratado no filme Mr.
Jones, da diretora polonesa Agnieszka Holland, que entrou dias atrás no catálogo da Apple TV, o NYT vendeu
a seus leitores a versão mentirosa de Duranty, baseada na propaganda oficial
soviética — que lhe valeu, note-se o despropósito, um prêmio Pulitzer. O jornal
só viria a admitir seu erro quarenta anos depois, na década de 1990, mas a
comissão do Pulitzer, por sua vez, se recusa até hoje a rever a infame
premiação. Jones terminou assassinado pouco tempo depois, supostamente por
agentes soviéticos.
Mas a verdade pela qual deu a
vida acabaria finalmente vindo à tona e hoje é parte da história — o genocídio
conhecido como Holodomor. Uma verdade fartamente documentada e que não comporta
ambiguidades. O que comprova que, como comenta no final do filme a personagem
da jornalista alemã Ada Brooks, que acreditava como Duranty na utopia
comunista, mas apoiou a investigação de Jones: “Existe, de fato, só uma
verdade”.
Título e Texto: Selma Santa
Cruz, revistaOeste, 7-8-2020
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