Aparecido Raimundo de Souza
“Todo mundo chora, até um simples mosquito atormentado pela presença de uma lata de Multi Inseticida, ainda que a embalagem esteja vazia.”
Bicó Marajá, de Realengo (Morador de rua)
EM UM CANTO bem lá atrás da sala de aula enorme, esquecida, abandonada à sorte no banco de uma carteira, jazia uma folha de papel. Uma dessas simples 3X4 expulsa da resma por ninguém fazer uso dela. Apenas mais uma entre tantas. Todavia, essa folha, em especial, se sentia diferente de todas as suas demais consanguíneas. Não pelas angústias que carregava, ou pelas palavras que chegavam aos seus ouvidos. Em absoluto. Ela acumulava no âmago do peito e isso lhe afligia, como um látego martirizante. O total estado de abandono e a mais dolorosa falta de companheirismo. Não havia nenhum embaraço em especial, porém, a sua dor se propagava pela história que nunca foi devidamente contada.
Ou melhor, disseminada como deveria. Por assim, ela ouvia nitidamente o coro das algazarras; os sons das carteiras sendo arrastadas; o tec-tec das gotas da chuva; quando caia temporal; as conversas abafadas pelos celulares nos corredores. E não ficavam de fora as vozes barulhentas dos professores; as risadas das funcionárias; o som das campainhas dos celulares; o metálico das moedas dadas em pagamento de algum lanche comprado de última hora na cantina; à música no rádio do carro da diretora; o vai-e-vem dos veículos passando lá fora; tanto de um lado, como de outro; as freadas bruscas dos ônibus (havia um ponto próximo do prédio onde funcionava a escola. Apesar disso, ninguém ouvia as suas dores.
Tampouco alguém se importava, ou dava a mínima para os seus medos e inseguranças. Suas aflições e desesperos. Ela queria (e somente pretendia) ser mais que uma mera expectadora. Na verdade, almejava fazer parte viva e pulsante da história de alguém. Em seus devaneios, lembrou de um caso passado. De uma recordação acontecido fazia anos. Certa vez, e esse “certa vez” se prolongava longevo, a lágrima desgarrada de uma menina triste, macambúzia igual a ela, caiu sem querer sobre seu corpo. Era uma lágrima; verdade seja dita; dorida; de enorme tristeza; de melancolia infinda derramada por uma mocinha que acabara de sair do banheiro da escola e ir se acomodar lá nos cafundós em uma carteira apartada.
A folha de papel, por puro milagre, estava jogada à sorte, esperando ser recolhida por uma das zeladoras que limpavam as dependências, quando as aulas, final da tarde cessavam. Não sabendo como explicar a magia desse acontecimento, por puro acaso, ou milagre, a menina começou a chorar. Num dado momento, uma lágrima caiu em seu corpo. A folha, também por pura sorte do destino, absolveu essa lágrima. Sentiu seu peso, a frieza com a qual saiu do mais profundo da garota, bem ainda, sugou a salinidade que viera junto. Naquele momento, ela não se sentiu apenas uma folha de papel sem nada. Ao oposto, se fez, ou melhor dito, se transformou numa confidente silenciosa da dor e dos percalços humanos da indefesa e desabrigada criança.
De repente, igual a princesinha, a folha de papel se pôs igualmente a chorar. Não por si mesma. Possivelmente pela tristeza pegajosa e pela desinquietação que testemunhava. Ela queria, ou melhor, carecia de oferecer algum tipo de conforto e de atenção à jovenzinha. Incansável, uma pergunta que não calava dentro de si: como poderia? Puxa vida, como, de que forma, tal aspiração se faria real e palpável? Coitada! Não passava de uma simples folha de papel. No entanto, naquele instante de umidade e sal, ela se tornou mais que isso. Se fez uma página em branco diferenciada, cheia de vida, avivada, dona de si, onde novos começos ainda não percebidos poderiam ser escritos e a esperança desenhada em sua melhor forma de expressão.
Nesse tom meio que bucólico, a pacata e tristonha folha de papel em branco lembrou que mesmo o mais simples dos objetos (mesmo uma desprezível e esquecida folha de papel) poderia solver uma nova lágrima, e, nesse ato de sugar, transformar toda a sua infelicidade em harmoniosa esperança de horizontes melhores. E de alguma forma a ser descoberta, ameigar, ou pelo menos tentar tirar do desassossego, da angustia, uma nova alma grandemente vazia e conturbada. Quem sabe, ainda (e isso se consubstanciava num só talvez), fosse o suficiente para que a sua solidão pesada voasse, de vez, para algum lugar distante, bem longe de seu peito dilacerado pela infelicidade de ser apenas e tão somente uma folha de papel abandonada ou esquecida numa carteira de uma sala de aula de uma escola qualquer. Desanimar, nunca. Tampouco gritar a plenos pulmões, como Tisbe, em Shakespeare... “Oh! Perversa, perversa parede...”. Isso, jamais.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Santo André, São Paulo, 14-6-2024
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A crônica O choro de uma simples folha de papel em branco é um conto sensível e introspectivo de Aparecido Raimundo de Souza, publicado nessa magnífica revista em 14 de junho desse ano. A meu ver, o texto mergulha nas profundezas da solidão e do desejo de ser compreendido, mesmo nos objetos mais inanimados. A narrativa se desenvolve em um ambiente de desolação e abandono, onde uma folha de papel, negligenciada e esquecida em uma sala de aula, se torna o centro de uma reflexão sobre a dor, a empatia e a esperança. A história é centrada em uma folha de papel A4, que o Aparecido, grafou como 3X4. Esse gatinho miando, talvez por esquecimento ou mesmo para chamar a atenção (e chamou), em nenhum momento tirou a suavidade de sua escrita, escrita essa que, em sua aparente insignificância, carrega uma profunda tristeza e uma forte sensação de rejeição. Essa folha é personificada com uma capacidade de sentir e refletir sobre o ambiente ao seu redor. Através dos seus olhos metafóricos, a folha observa a vida que pulsa ao seu redor – o som das aulas, as conversas, e até o som da chuva – sem, no entanto, ser parte desse movimento. A pobrezinha se sente isolada e invisível, um reflexo de um sentimento mais amplo e universal de solidão e falta de propósito. O momento crucial da crônica-conto ocorre quando uma lágrima de uma menina triste cai sobre a folha. Esse ato simbólico transforma a folha de papel em uma confidente do sofrimento e da dor da menina. O objetivo do Aparecido, acredito, tenha sido o de explorar com profundidade consciente o conceito de empatia, sugerindo que mesmo os objetos mais simples podem compartilhar e aliviar a dor dos outros. A folha abandonada ao deus-dará, ao absorver a lágrima, se torna mais do que um mero objeto. Ela passa a carregar e sentir a tristeza da menina, se transformando em um símbolo de esperança e conexão. Apropriando ao enlevo de uma linguagem poética e uma construção de imagem rica, Aparecido evoca uma atmosfera melancólica que ressoa com a tristeza e a busca por significado. A narrativa não apenas trata da dor e da solidão, também sugere a visibilidade de uma possibilidade de transformação e redenção. O choro da folha de papel não é apenas um reflexo de sua própria agonia, ou do seu esquecimento, mas nos alerta para um gesto de solidariedade e um desejo profundo de ser útil e fazer parte de algo maior. Aparecido Raimundo de Souza nesse bucólico coligir de palavras, utilizou a folha de papel como uma metáfora poderosa para a experiência humana de ser ignorado e a peleja por encontrar um propósito sólido. A escolha de um objeto tão comum e desprezível como protagonista é uma estratégia eficaz para destacar a universalidade da busca por significado e conexão. Através da perspectiva da folha, o conto sugere que, mesmo em nossa maior solidão, há sempre uma oportunidade para a empatia e a esperança, mesmo que essas oportunidades venham de fontes inesperadas. Em resumo, O choro de uma simples folha de papel em branco é um grito estridente de alerta, um conto tocante que desafia o leitor mais atento e ligado naquilo que lê, a reconsiderar o valor e a dignidade dos objetos e seres que muitas vezes são negligenciados. Através de uma narrativa delicada e reflexiva, o Aparecido nos convida a olhar além das aparências e reconhecer a profundidade e o valor ocultos em cada fragmento de nossa realidade. Resumindo, amei. E me fiz refém da folhinha de papel. Se pudesse, juro por Deus, roubava ela e trazia para guardar dentro de meu coração. Toda vez que me deparar com uma folhinha A-4, vou me lembrar com emoção incontida, o que senti e ainda sinto quando vejo a grandiosidade desse texto que de uma forma bem longínqua, me fez voltar aos ontem de minha infância dentro de meu seio familiar.
ResponderExcluirTatiana Gomes Neves
(Tati)
Sitio Shangri-lá, divisa ES/MG
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