sexta-feira, 31 de maio de 2024

[Aparecido rasga o verbo] À margem do nada

Aparecido Raimundo de Souza

“A margem do nada, às vezes pode ser ‘tudo,’ de repente, nos mostrar, literalmente, que o ‘tudo’ também pode ser ‘nada’”
Carina Bratt

DECIDI PARAR.
Estancar os passos. Dar um tempo em tudo. Me imobilizar. Refazer, voltar no caminho percorrido. Tentar, de alguma forma, ressuscitar os erros cometidos para acertar ou corrigir as merdas que ficaram fedendo pelo caminho. Talvez não haja mais tempo-espaço para o que planejo, porém acho que só o fato de ousar, de me mobilizar nesse sentido, de querer, de estar decidido, já me deixa um pouco melhor. E eu me sinto mais confortável. Não totalmente reiterado ao meu cotidiano, pelo menos, ao meu modo de pensar e ver as coisas, um bocadinho mais tranquilo e ufa!... sossegado.

Sei que no passado cometi muitos erros e outros tantos e infindáveis desacertos e cabeçadas. Feri, maltratei pisoteei corações, atravanquei almas que só queriam o meu bem. Tudo em nome da minha mediocridade pessoal, da insensatez barata e do meu desatino tresloucado. Do egocentrismo bobo, da vontade destemperada e absurda de querer ser mais que os outros, num abrupto inumano e desapiedado, agora entendo, somente magoei. Na verdade, nunca fui realmente nada. Aliás, não somos nada. Generalizando a vida, a nossa vida, cheguei à conclusão de que não passamos de terra ruim sem o adubo magnânimo da perfeição, ou sem o tempero certo, ou no ponto exato, que nos torne único e insubstituível. Apesar disso –, em lado igual –, por qualquer descuido ou deslize, também não podemos ser totalmente prescindidos ou permutados, como coisas sem valor.

Como disse, e repito, eu não sou nada. Nunca fui coisa alguma. Aos setenta e dois, me faltou achar a tal trilha benfazeja; a senda-picada; a estrada-desvão que me levaria ao que conhecemos como “perfeição.” Em geral, todos nós, sem distinção de raça e credo, não passamos de um punhado de barro podre, de “cisco-poeira-suja” contaminada e, como tal, de um momento para outro, poderemos ser levados em um arrebatamento mais despropositado pelo vento, o mesmo que nos acaricia o rosto. Estamos, na verdade, chumbados e manietados ao espaço. Algemados e cativos a um Ser Superior que nos mantém sob seu domínio como se fossemos uma linha esticada de um extremo ao outro do destino. O destino é, pois, um fio tênue e de pouca espessura. Uma espécie de conduto sutil preso engenhosamente ao nada.

Basta um movimento em falso, uma escorregadela e esse fio quase impalpável se arrebenta. O conduto se vai igualmente pirambeira abaixo. Partindo ou se desintegrando lá se vão grudados como pulgas no cachorro, todo o nosso orgulho, a nossa pompa, atreladas à cobiça da ganância e aos percalços da ambição. Tudo se desfalece, se amesquinha e se vê tragado por água rio abaixo. Mas vou parar. Decidi que chegou a hora. E é o que farei. Embargarei as mazelas. Darei um basta nas vulgaridades que povoam o meu ser. Gritarei alto e em bom som da garganta, à voz tonitruante, um “chega pra lá” nos planos mirabolantes que alimento.

Projetos, às vezes destituídos de um fundamento sólido e, em face disso, a nossa cegueira mórbida pode nos levar (e, de fato, nos encaminha, incontinentes), para o fundo cavernoso do poço. Não adianta, pois, sermos mais do que somos na grandiosa voragem desse gigantesco e intransponível ciclo, tipo uma sequência estranha e circunspecta, de aparência incógnita que nos movimenta –, ora nos direcionando para um lado –, ora nos empurrando para outro, a bel prazer do destino. Por isso, é bom parar e eu farei isso. Com o decorrer do passar inexorável do tempo, a gente aprende que a vida é bela e ao mesmo tempo tão simples e dócil, se olhada com carinho e esmero.

A vida é pura, maravilhosa, boa de ser vivida. Entretanto, com a nossa falta de visão, toda ela embasada numa ilogicidade sem par, ou pior, à flor da pele neuroticamente “emotivada,” e não só isso, respaldada, muitas vezes com o nosso mais negro fanatismo interior, com a nossa total falta de luz e senso prático, deixamos passar momentos maravilhosos. Instantes de paz, minutos de harmonia, segundos de tranquilidade. Trocamos, a bem da verdade, todas essas quimeras postas ao nosso alcance, por sonhos bobos; por planos hercúleos; por utopias sem pé nem cabeça; futilidades que só nos capitaneiam para o abismo sem volta da sórdida derrota.

Do destroço ao fracasso, da desventura ao infortúnio, um pulo. Do refrigério portentoso à fereza da desarmonia, do fundo do poço perverso aos braços diros (1) e carniceiros da desgraça, um simples piscar de olhos. Ou nem isso. Fiasco e insucesso andam de mãos dadas, abraçados o tempo todo. Estão sempre dispostos, a qualquer momento, a nos passar uma tremenda rasteira. E, em sendo assim, o tombo, meus presados amigos, a queda é vertiginosa e nunca nos devolve a chance plena da volta triunfal ao mundinho no qual vivíamos antes. Ainda que merencório e capiongo, ou que os próximos a mim me cognominem como um sandeu obtuso e mentecapto, vou interromper a jornada. Estorvar e inabilitar os passos. Agir como Mark Manson e sutilmente ligar o “FODA-SE.”

Uma vez ligado, dar um tempo em tudo. Me imobilizar. Me recompor. Me direcionar. Refazer os passos, adequar ou tentar remodelar o que se quebrou. Afinal, a esperança é a última que morre. Está decidido. Voltarei com tudo ao ontem, à vereda percorrida. Tentarei de alguma forma, ainda que pareça impossível ressuscitar os erros, as aberrações, as anomalias e os disparates cometidos. Pretendo apaziguar as pessoas que sofreram à minha passagem. Em verdade, a pretensão maior, não outra, senão acertar ou corrigir, de algum jeito, tentado desfazer de modo definitivo as merdas e os excrementos que ficaram fedendo pela longa estrada percorrida.

Explicação necessária:

(1) Diros – Termo poético. O mesmo que desumano, cruel, mordaz ou perverso.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, Espírito Santo, 31-5-2024

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